quinta-feira, 27 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11769: Os nossos médicos (54): Respostas ao questionário: José Colaço (CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) , Fernando Costa (BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, mar73 / set74) , e Rogério Cardoso (CART 643 / BART 645, Bissorã, 1964/66)

1. Respostas ao questionário sobre os nossos médicos (*):

José Colaço [, ex-Soldado Trms, CCAÇ 557, CachilBissau e Bafatá, 1963/65]

  Luís, não tenho fontes credíveis que possam contrariar o camarada J. Pardete Ferreira mas,  do que se passou com a minha companhia,  parece-me que em princípio iam quatro médicos por batalhão, porque o que retenho na memória é que em cada companhia ia um médico: no caso da minha companhia fazia parte integrante o tenente médico miliciano Dr. Rogério da Silva Leitão e creio que a 555 também tinha um médico e a 556 também e com a CCS seguia também um médico,  creio que com a patente de capitão.

 Em referência à CCAÇ 556 podes colher informações através do ex-alferes Jorge Rosales e da CCAÇ 555 através do ex-furriel Norberto Gomes da Costa, ambos elementos da tertúlia. 

Quanto à CCS do  batalhão 558,  foi para Moçambique mas sei que se reúnem em almoços anuais de convívio.

Se isto puder ajudar,  faz uso dele.

Um abraço
Colaço

PS - No arquivo geral do exército é possível saber se as companhias iam integradas de médico ou não e o José Marcelino Martins com os conhecimentos que tem e a ajuda da Teresinha,  da Liga dos Combatentes, desenleia essa meada,  de certeza.


Fernando Costa [, ex-fur mil trms, CCS/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, mar73 / set74]

Amigo Luís Graça,

O Batalhão 4513 (Guiné 73/74) só tinha um médico, que estava em Aldeia Formosa. Não havia 3,  como vem  referido no texto.

Fernando Costa
Ex-Furr Mil CCS/BCAÇ 4513

Rogério Cardoso  [, ex-fur mil, CART 643 / BART 645, Bissorã, 1964/66]

Camaradas, vou responder pela ordem:

(i) 4 médicos no Batalhão;

(ii) Ficaram toda a comissão

(iii) Cart 642- Drº Raul Silva, Otorrino-Porto (falecido);

 Cart.643- Dr. Manuel Lourenço R. Campos, Albergaria na Velha:

Cart.644 - Dr. José Luis Barbosa, Espinho;


(iv) Fui consultado várias vezes.

(v) Não havia enfermaria.

(vi) Ao HM 241, fui uma única vez.

(vii)  Sim,  fui evacuado para o HMP, por ferimentos em combate.

(viii) Não.

(ix) Sim,  a população era atendida diariamente.

(x) Centenas,  por mês.
________________


24 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11756: Os nossos médicos (52): Com o pessoal do meu batalhão, partiram, em 24/4/70, no T/T Carvalho Araújo, très alf mil médicos: Vitor Veloso, José A. Martins Faria e Eduardo Teixeira de Sousa (António Tavares, ex-fur mil, CCS/ BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72)

19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11731: Os nossos médicos (51): O BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) teve pelo menos 4 médicos e prestava assistência à população civil (Benjamim Durães)

18 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11724: Os nossos médicos (50): Os batalhões que passaram pelo setor de Farim tinham um número variável de médicos, de 1 a 4... Quanto ao HM 241, era só... o melhor da África Ocidental (Carlos Silva, 1969/71)

14 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11704: Os nossos médicos (47): Qual era a dotação médica de um batalhão ? Três médicos por batalhão, diz-nos o ex-alf mil méd J. Pardete Ferreira (CAOP1, Teixeira Pinto; HM 241, Bissau, 1969/71)

(...) Questões:

(i) Quantos médicos seguiram com o vosso batalhão, no barco ?

(ii) Quantos médicos é que o vosso batalhão teve e por quanto tempo ?

(iii) Lembram-se dos nomes de alguns ? Idades ? Especiallidades ?

(iv) Precisaram de alguma consulta médica ?

(v) Estiveram alguma vez internados na enfermeria do aquartelamento (se é que existia) ?

(vi) Foram a alguma consulta de especialidade no HM 241 ?

(vii) Foram evacuados para a metrópole, para o HMP ?

(viii) Tiveram alguma problema de saúde que o vosso médico ou o enfermeiro conseguiu resolver sem evacuação?

(ix) O vosso posto sanitário também atendia a população local ?

(x) (E se sim, o que é mais que provável:) Há alguma estimativa da população que recorria aos serviços de saúde da tropa ?...

Guiné 63/74 - P11768: Parabéns a você (594): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11754: Parabéns a você (594): Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11767: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (17): Jovens politicamente atentos

1. Mensagem do dia 24 de Junho de 2013, do nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67):

Cartas de Amor e Guerra

Nota prévia:
[A publicação de vastos excertos da minha correspondência de guerra tem, como único objectivo, o de dar a conhecer alguma coisa da vida mais pessoal de UM soldado, EU neste caso, enquanto combatente numa certa guerra e num determinado tempo histórico, com os seus amores, amizades, ideias políticas, formação cultural e religiosa, etc.
Não serve, hoje, para travar qualquer batalha, muito menos de cariz político-ideológico. Porventura, também terá algum interesse para possíveis investigadores que queiram caracterizar certo tipo de combatentes, não mais do que isso.
Actualmente, como é natural, sou uma outra pessoa, tenha conservado ou não algo da minha maneira de ser e de pensar de então. Não apago nada, antes tenho orgulho do “eu” que ressalta desta correspondência de amor e guerra, mas seria abusivo que quem me lesse me pensasse, hoje, a “figura” esparramada no conteúdo desta correspondência de há mais de 46 anos.
O mesmo digo sobre o que se passa com a parceira destas cartas, a minha querida namorada / companheira de então e até hoje.]

Manuel Joaquim


CARTAS DE AMOR E GUERRA

17. Jovens politicamente atentos

Bissorã, 1966 > Praça com monumento a Raimundo Serrão, Governador da Guiné (1949 – 1953) e Estação dos Correios. 
Foto retirada, com a devida vénia, de “Rumo a Fulacunda”, blogue de Henrique Cabral (fur mil CCaç 1420) 

Bissorã, Nov.-17-1965
Agradavelmente, minha querida, li a tua última carta mais pelo espírito de contemporização consciente que demonstras perante certos pequenos conflitos que surgem entre nós do que por qualquer outro motivo.
(… … …)
Tanto tu como eu devemos andar com os nervos à flor da pele. O mais pequenino desentendimento pode provocar uma “explosão” (…). Mas nada de grave acontecerá.
Já cá recebi os cigarros. Agradecido por não teres deixado fugir a oportunidade de me presenteares, (…).

(…), isto cá vai correndo. (…), continuo sem me ressentir fisicamente do esforço que me é exigido.
A temperatura é tolerável. Embora durante o dia faça um calor de rachar, respira-se agradavelmente logo que desaparece o sol. E as noites chegam a ser bastante frescas. Estamos na época do cacimbo. Até Maio não chove. Por mais incrível que pareça, já bati o queixo com frio por duas vezes. Mas isto só sucede em operações no mato.
Às vezes somos obrigados a estar horas seguidas na mais completa imobilidade e, se isto sucede quando estamos molhados - atravessar pântanos com água pelo pescoço é um martírio – então o friozinho aparece renitente. (…) pouco tempo depois de o sol nascer, o calor começa então a apertar numa progressão de espantar.
(… … …)
A diferença horária é, no respeitante à Metrópole, de uma hora mais cedo durante a hora de inverno de aí e de duas horas na de verão. As noites são praticamente iguais aos dias. Pelas 5.30h da manhã começa a amanhecer e anoitece pelas 17.30h. Tanto o amanhecer como o anoitecer são bastante rápidos (mais ou menos meia hora).

Já há tempos te disse que Bissorã é uma vilazinha sede de concelho. Antes de rebentar a insurreição dizem que tinha uma vida bastante movimentada. Agora está um pouco paralisada. Deve ter uns dois mil e tal habitantes. Praticamente, a população é negra como não podia deixar de o ser. Há cá alguns comerciantes brancos mas não são portugueses, são emigrantes libaneses. Estes, com alguns caboverdeanos, são a elite cá da terra. Estão aqui duas companhias aquarteladas. Os sargentos vivem em casas particulares. Aquela onde estou é bastante boa e espaçosa. Se me esquecesse de que à volta existe a floresta cheia de guerrilheiros (à volta da vila, não da casa) pensaria que estava hospedado numa boa pensão. É que até as refeições são servidas num pequeno restaurante. Não temos messe. (…).

Centro de Bissorã, nos inícios da década de 1970. A marca (O), à esquerda - baixa da foto, identifica a casa onde habitei durante um ano (Out./65 – Out./66)
Foto do cap mil Carlos Oliveira, cmdt. CCaç 13, retirada com a devida vénia do website leoesnegros.com.sapo.pt/ de Carlos Fortunato, fur mil CCaç 13.

As operações fazem-se, normalmente, de noite (…) prolongando-se pelas primeiras horas da manhã. Regressamos completamente arrasados de cansaço. É que além da tensão psíquica há sempre uma caminhada (…), pelo meio da selva e dos pântanos, a abrir caminho. Depois descansa-se.

Já tive a sorte de em 15 dias fazer uma só operação. Foi aquela sequência de dias de sorna! Levantamo-nos quando queremos, ninguém nos chateia e chegam-se a passar dias a dormir, comer, ler, ouvir música e, como não podia deixar de ser, a escrever.

Não imaginas o cansaço que se apodera de nós depois de uma operação. Para fazeres uma ideia digo-te que, uma vez, ainda na operação mas já no regresso a Bissorã, sofremos um ataque. Está claro que a primeira coisa a fazer é atirarmo-nos para o chão e procurar um abrigo qualquer. Pois, nesta altura, um soldado da minha secção, com as balas a assobiarem por cima de nós, adormeceu! Dei por isto quando senti ressonar a meu lado. Tínhamos passado toda a noite a andar!

Ao regressarmos, o chuveiro e a cama são uma obsessão. Mais nada lembra. Acontece às vezes chegar correio nesta altura. Os olhos abrem-se a custo, olha-se para a carta, põe-se em cima da mesa-de-cabeceira e dá-se meia volta para “o reino de Morfeu”.

Ainda hoje presenciei um facto destes. Um camarada chega do mato, lava-se, estira-se na cama. Chega correio da mulher. Apesar de já há alguns dias andar preocupado com a falta de carta (…), só aconteceu isto: abre o sobrescrito, tira a carta e … o envelope cai para o chão, as folhas ficam-lhe em cima do peito e o rapaz cai num profundo sono. (… … …).

(…), penso que te dei uma ideia mais exacta do que é a nossa vida por aqui. Surgem bons momentos que amenizam a dor que, lá bem no fundo, habita estes corpos lançados abruptamente numa guerra estúpida. Relembram-se peripécias passadas, contam-se anedotas, joga-se, procura-se por todos os meios esquecer, tentar esquecer a posição actual em que nos encontramos.

Bissorã, 1966 > O “restaurante” do Sr. Maximiano e da D. Maria ou a célebre tasca / messe de sargentos. Comia-se bem (pelo menos no meu tempo).
© Rumo a Fulacunda, blogue de Henrique Cabral (fur mil CCaç 1420)

E já que estou a falar dos meios de passar o tempo, lembro-te que há uma falta imensa de notícias da Metrópole. Não no aspecto pessoal mas no geral. E vou fazer-te um pedido. Talvez, de vez em quando, o possas satisfazer. Era nem mais nem menos que o envio de jornais e revistas. (…). Aqui, um jornal de há quinze dias lê-se com a mesma sofreguidão com que aí se lê o diário da tarde ao sair do prelo.

Quando estiveres disposta a fazê-lo e tiveres possibilidade, manda-me o “Diário de Lisboa” [*] ou o “República”[*] ou os dois, de dias diferentes, e a revista “Seara Nova”[*]. Se em qualquer outro jornal, ou mesmo nesses, achares um assunto que julgues interessar-me podias recortá-lo e mandar-mo numa carta.

Esse tal “Manifesto da Oposição Democrática”? Não tens possibilidades de o recortar de algum jornal? Gostava de o ler. A revista “Seara Nova” é mensal. Quanto a qualquer outra revista peço-te que não gastes dinheiro de propósito para ma enviares. (…). Que dizes? (…). Desculpa todo o trabalho que com este pedido te possa vir a dar. (…), esse teu possível gesto contribuiria para amenizar um pouco as agruras desta vida. (…).

Meu amor, por hoje fico-me por aqui (…). Uma carta diferente (…). Com ela poderás acompanhar-me melhor. E imaginarás mais facilmente o ambiente em que vou passando estes longos dias à espera de te ir cair nos braços, respirar fundo e gritar-te:
- É agora, minha querida! Estou livre! Vamos para a frente! Construamos o nosso mundo!

Ajuda-me a suportar todo este Inferno!
Todo teu, apaixonadamente, beijo-te e abraço-te. Até sempre!
M.

[*] [Os “Diário de Lisboa” e “República” (jornais diários) e a revista mensal “Seara Nova” estavam ligados à oposição política ao Governo e ao regime do Estado Novo, declaradamente os dois últimos. Em 1965, era Oliveira Salazar o chefe do Governo. Marcelo Caetano suceder-lhe-ia em Setembro de1968.]


Vale de Figueira, 24 – Nov. 1965 
(… … …). 
Satisfazendo o teu pedido, segue o Manifesto da Oposição. Deu que falar pelo país inteiro, alarmado com a liberdade da sua publicação em todos os jornais diários. O que não quer dizer que não tivesse havido prisões, originadas pela simulada liberdade de imprensa (…). Ao tomarmos conhecimento do seu conteúdo fica-se de boca aberta, apalermado. Como foi possível ter passado à célebre censura portuguesa? Mas a verdade é que passou. Mais para fazerem crer ao nosso povo que goza de completa liberdade e que o governo actual, pacífico e sempre atento às necessidades e aspirações desse mesmo povo, o escuta para depois decidir se deve atendê-lo. 
São eleições livres, como apregoam à boca cheia … e a publicação deste Manifesto não foi mais do que uma armadilha atirada ao povo. Pretexto para justificarem essa afirmação de liberdade, verídica quanto a eles, asquerosamente vergonhosa e mentirosa quanto a nós. 
Alguns dos candidatos pelo círculo de Braga (…) já lhes caíram nas garras e pagam essa liberdade nas masmorras de Caxias. Foram os únicos que levaram por diante, até onde lhes foi permitido e possível, as suas manifestações. Conservaram-se em acção, firmes nos seus propósitos até à última hora. Por fim, sem auxílio dos outros círculos que foram ficando pelo caminho, a única alternativa que lhes restava era também desistir. (…). 
E cá continuamos na mesma, senão pior ainda. A situação que se respira na metrópole é bastante difícil. (…). O descontentamento é geral. (… … …). 
Agora, ponto final nestes assuntos e vamos falar de nós. 

(…), fiquei imensamente satisfeita com a tua última carta, a que escreveste aí em 17 do corrente. Uma tranquilidade tão grande, confiança, alegria quase invulgar para os que se encontram em tais situações. Até o trabalho me corre melhor, (…). 
(… … …). 
Agora, meu amorzito, pelas tuas indicações sobre a tua situação (…), “controlo” mais acertadamente as tuas actividades. Sei que enquanto estou na minha repartição, tu tens umas horas de folguedo, de liberdade. Enquanto durmo, tu te debates, tu estás jogando a tua vida. E como todos, esse jogo é incerto. Tanto se pode ganhar como perder. (…) nós cremos que a sorte nos favorecerá e o prémio desse jogo será a tua sobrevivência, a tua saída, ileso, desse inferno. (… … …). 

Os jornais e revistas que me pedes e outras que tenho, enviar-tos-ei logo que possível. Já tinha pensado nisso. Só o que me não ocorreu é que poderia recortar os assuntos que te pudessem interessar e mandá-los por carta. Como tenciono, agora, mandar-te uma encomenda em caixote, aproveito para te mandar algumas revistas e jornais. 
(… ……). 
Recebe os mais ternos e carinhosos beijos e abraços da tua N.


Na imagem supra: 
“Manifesto à Nação" > cabeçalho de um doc. político extenso (mais de 5000 palavras), publicado no “Diário de Lisboa” de 15 de outubro de 1965.
Fonte: Fundação Mário Soares > Imprensa diária > Fundo DRR-Documentos Ruella Ramos.

Na imagem abaixo:
“Manifesto à Nação” > Excerto deste doc. onde se fala da política ultramarina então seguida pelo governo português.


[Dizem ainda os signatários deste “Manifesto à Nação” que na campanha eleitoral para as eleições legislativas teriam de aludir ao “Caso do Relatório da ONU contra Portugal”. E sobre este assunto declaram:]

"O país tomou conhecimento através de uma nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros - que diga-se de passagem ilustra bem os métodos habituais do regime para quem a opinião pública interna não conta – da existência de um relatório elaborado pelo Secretariado da ONU a pedido do Comité de Descolonização, e no qual ao que se diz, além de se citarem “tendenciosamente textos oficiais”, de “erros de facto” e de “insinuações”, se fazia “pela primeira vez” um comentário analítico de modificações na composição do governo português. 
Através da nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros não se fica a conhecer mais do que brevíssimos tópicos do Relatório da ONU e da resposta do governo português. No entanto, há um facto inacreditável que avulta sem contestação: é que o governo português exige, em nome da justiça, uma ampla divulgação do seu documento igual à que obtivera, ao que parece, o texto das Nações Unidas. Está certo: deseja-se que o mundo possa conhecer e aquilatar das razões do Governo mas, paradoxalmente, nega-se, do mesmo passo, esse direito ao Povo Português – que pareceria dever ser o primeiro dos interessados em conhecer e meditar os documentos em presença! 
Quer dizer: a uma avidez de publicidade no exterior corresponde uma cruel e desprestigiante negação da mesma publicidade no plano interno. Com a diferença: é que, segundo os jornais portugueses depois informaram, a ONU corrigiu o erro publicando a defesa do Governo enquanto o nosso Povo continua na ignorância - sem saber em que consistiu o ataque que nos foi feito e, bem assim, as razões de defesa invocadas”.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11732: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (16): Aerogramas e insuficiência das mensagens

Guiné 63/74 - P11766: Convívios (518): 6ª jornada da Tabanca da Ajuda Amiga, no Forte da Lage, em Paço d' Arcos, Oeiras, 5ª feira, dia 27 de junho (Carlos Silva)




1. Mensagem do nosso amigo  e camarada Carlos Silva, membro da direção da ONGD Ajuda Amiga  [, foto à esquerda]


Data: 25 de Junho de 2013 às 08:20
Assunto: Tabanca  da Ajuda Amiga: convívio 27-06-2013


Amigos & Camaradas

Na próxima 5ª feira temos a 6ª jornada da Tabanca da Ajuda Amiga no Forte da Lage, em Paço d' Arcos, [Oeiras].

Segue a ementa.

Devem telefonar previamente para a Dª. Emília, telemóvel 917 248 557, para informarem qual o prato preferido.

Um abraço e até 5ª feira para quem vai
Carlos Silva

___________

Nota do editor:

Guiné 63/74 - P11765: Convívios (517): Amargos chocolates no último Encontro da 2.ª C.ª/BCAÇ 4512, dia 1 de Junho de 2013, em Fátima (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), com data de 16 de Junho de 2013:

Camarada e amigo Carlos Vinhal:
Com os meus cumprimentos, envio-te em anexo um texto, ilustrado com algumas fotografias, alusivo ao encontro dos ex-combatentes da 2.ª Companhia do Batalhão 4512, a que eu pertencia, que esteve sediada em Jumbembém, Farim, Guiné,de 1972 a 1974, que teve lugar no passado dia 1 de Junho em Fátima.
É uma espécie de acta do evento que põe em evidência emoções fortes desse dia, num misto de alegria e alguma tristeza, atentas as circunstâncias ali expressas.
Coisas de ex-combatentes!

Um abraço
Manuel Sousa


“AMARGOS” CHOCOLATES! 
SENTIMENTOS DE EX-COMBATENTES!

Volvido todo este tempo, cerca de quarenta anos depois, após a guerra colonial, é ver os ex-combatentes, ano após ano, a percorrerem quilómetros a partir das mais diversas localidades do país, e mesmo do estrangeiro, a convergirem para um ponto de encontro, ávidos de se encontrarem e confraternizarem com companheiros de armas, movidos por esses sentimentos recíprocos de afectividade que perduram no tempo tantos anos depois.

É aí que recordam, entre efusivos cumprimentos, bom repasto e alguns copos bem bebidos, as peripécias de guerra em que se viram envolvidos em campanha, ao serviço da Pátria.

Recordam também os episódios colaterais à guerra colonial, como, por exemplo, o seu relacionamento com as bajudas, no caso da Guiné, com as crianças e a população nativa em geral e, ainda, dos bons momentos, apesar de tudo, passados entre companheiros de luta.

Em suma, recordam esses instantes que lhes absorveram parte dos verdes anos da juventude, em que, pela irreverência própria da idade, e alguma irracionalidade até, se consideravam imortais, por paradoxal que pareça, mesmo sabendo que a todo o momento uma bala lhes poderia trespassar o corpo ou uma mina poderia explodir debaixo dos pés, fazendo-os desaparecer.

Impelidos por esses laços de amizade que nos unem, vincados, portanto, por essas adversidades em que nos vimos envolvidos, no passado dia 1 de Junho teve lugar o nosso encontro anual, da 2.ª Companhia do Batalhão 4512 que esteve em campanha em Jumbembém, Farim, Guiné, de 1972 a 1974.

Este ano o local escolhido foi Fátima.
Acompanhem-me nas emoções deste dia:

Depois da concentração da maior parte dos ex-combatentes, os do norte, no parque de estacionamento do Jumbo da Maia, segui-se a viagem de autocarro, rumo a Fátima.

Fizémo-nos à estrada, de autocarro, em direção a Fátima. 
(Foto de Eduardo Augusto da Silva)

O encontro com os ex-combatentes do centro e sul do país foi junto à Capelinha das Aparições, sendo um pouco perturbado o silêncio daquele local de oração com os efusivos cumprimentos entre todos pelas saudades acumuladas ao longo do ano, e durante quarenta anos em relação a alguns que pela primeira vez se juntaram a nós.

Ponto de encontro junto à capelinha das aparições em Fátima, onde se nota a presença de alguns ex-combatentes. 
(Foto de Eduardo Augusto da Silva)

Seguiu-se a homilia na Capelinha das Aparições pelas intenções da multidão habitual presente e em especial pelos ex-combatentes já falecidos, quer em relação aos nossos companheiros, quer quanto a outro contingente que combateu em Moçambique.

Depois da missa, retomámos o autocarro em direcção ao restaurante “Truão” situado nos arredores de Fátima.
Entremos pois e vejamos o que o dia nos reservou neste local.

À entrada do restaurante “Truão”. 
(Foto de Eduardo Augusto da Silva)

Uma vez já instalados à mesa, já a petiscar as “entradas”, o nosso anfitrião António Bastos, pediu-nos que nos levantássemos e que ficássemos em silêncio em homenagem aos nossos companheiros falecidos. As emoções ficaram ao rubro, com o derramamento de algumas lágrimas aqui e ali, quando, surpreendentemente, através da instalação sonora do restaurante, ecoaram os acordes do “toque de silêncio” que se prolongaram durante cerca de três minutos.
Seguiu-se em uníssono a reza de um “Pai Nosso” por alma desse nossos companheiros nesse momento solene e de pesar.

Todos em silêncio, durante cerca de três minutos, enquanto se ouviam os acordes do “toque de silêncio” através da instalação sonora do restaurante.
(Foto de Eduardo Augusto da Silva)

- Uma salva de palmas para todos (os falecidos). - Bradou o nosso “Rio Mau” após a oração.

A salva de palmas pedida não se fez esperar e soou por toda a sala.

Ainda tomados pela comoção do momento, retomámos então as “entradas” e as hostes iam ficando animadas, como é habitual nestas alturas, em são convívio, entre a jantarada e uns copos bem bebidos ao longo da tarde.

Momentos do convívio. 
(Foto de Eduardo Augusto da Silva)

No final do dia, ao microfone, o nosso anfitrião António Bastos preparava-se para dar por terminado o convívio, altura em que eu interferi, quebrando o guião que estava estabelecido, para transmitir uma mensagem que era, no fundo, dar-lhes conta, a todos os companheiros, de um texto que enviei aqui para o blogue, onde tinha sido publicado poucos dias antes (P11626)*.

Tomei então a palavra, fiz uma pequena introdução saudando todos os camaradas, especialmente aqueles que, quarenta anos depois, pela primeira vez, se tinham juntado a nós, e saudei também, particularmente, duas pessoas especiais que se encontravam na sala.

Feita esta introdução, fiz a alocução da mesma mensagem, uma espécie de acta que lavrei sobre o convívio do ano anterior, por razões excepcionais que podereis verificar, cujo texto a seguir transcrevo no essencial:

“À MEMÓRIA DE UM COMPANHEIRO EX-COMBATENTE

No dia 26 de Maio de 2012, teve lugar o último encontro de ex-combatentes, relacionado com a minha 2.ª Companhia do Batalhão 4512, cuja comissão decorreu nos anos de 1973 e 1974 em Jumbembém, Farim, na Guiné.

O evento teve lugar na freguesia de Ruivães, Vila Nova de Famalicão. O ponto marcado para a concentração da maior parte do pessoal, para seguir depois todo junto até Ruivães, foi no parque de estacionamento do Jumbo da Maia.

À medida que uns e outros iam chegando, sucediam-se os efusivos cumprimentos entre todos os companheiros de luta, uns pela saudade acumulada durante o último ano, outros, pelo menos um, por ter sido a primeira vez que se juntavam a nós.

Nestas alturas é incontornável falar-se de episódios de guerra, e não só, que nos marcaram durante a nossa comissão em campanha durante dois anos da nossa juventude…

…Depois da concentração, à hora marcada, partimos para Ruivães, onde fomos recebidos pelo anfitrião organizador da festa, na sua própria vivenda, o também ex-combatente, nosso companheiro, José Carvalho de Sousa.

Este nosso companheiro era emigrante na Suíça que, juntamente com a esposa e a filha, D. Goretti e Alzira, respectivamente, ao longo de vários anos em que estes encontros se têm vindo a suceder, viajava expressamente daquele pais para Portugal e vice-versa para se juntar a nós nestes dias.

Era um companheiro alegre e bem disposto que nos brindava e mimava com os chocolates da Suíça que com satisfação nos distribuía, ora no autocarro em viagem para o local previamente estabelecido, ora já no restaurante da festa.

No ano anterior, em 2011, no decorrer do encontro na Mealhada, o nosso amigo José Carvalho de Sousa manifestou o desejo de ser ele o organizador da festa de 2012. E assim foi.

Esperava-nos então em Ruivães um encontro inesquecível:

A recepção aos ex-combatentes foi feita com a contagiante alegria deste nosso anfitrião na sua bonita vivenda que construíra com as suas poupanças de emigrante em local nobre da freguesia de Ruivães, ali junto ao adro da igreja paroquial.

Seguiu-se a homilia habitual naquela igreja em homenagem aos nossos companheiros já falecidos e, à saída, para nossa surpresa, assistimos à exibição da fanfarra dos Bombeiros Voluntários locais.

Entrámos depois no salão paroquial, paredes-meias com a mesma vivenda, onde nos foi fornecido um lauto banquete por uma empresa de restauração, abrilhantado, para mais uma surpresa nossa, por um conjunto musical lá da terra.

Seguiram-se algumas intervenções de camaradas que, invariavelmente, aludiam à excepcional organização da festa por este nosso companheiro, perante a sua esfuziante alegria e alguma emoção que nos contagiou a todos.

Eu próprio intervim, revelando a todos o projecto em curso do meu livro PRECE DE UM COMBATENTE, prestes a ser concluída a sua edição, cujas histórias ali relatadas eram comuns a todos nós.

O nosso amigo anfitrião comeu, falou, dançou, transpirou, emocionou-se, distribuiu os habituais chocolates, ofereceu lembranças, entre as quais umas garrafas de bom vinho.

Enfim, era manifesta a felicidade que lhe ia na alma pela festa que nos proporcionou, totalmente a expensas suas, pois não aceitou um cêntimo que fosse de ninguém.

Terminada a festa, nos dias imediatos, regressou à Suíça com a família de onde tinha vindo propositadamente para organizar a festa, embora com o apoio de dois camaradas, o Bastos e o Carneiro.

Volvidos cerca de dois meses, nos primeiros dias do mês de Agosto, voltávamos a Ruivães em circunstâncias bem diferentes!:

Fomos despedir-nos do nosso inesquecível camarada José Carvalho de Sousa que acabava de ser “mobilizado”, desta vez para integrar o exército de Deus lá no Céu.

Ele tinha-se despedido de nós, de facto, conscientemente ou não, há dois meses atrás quando, rejubilando de alegria, nos recebeu.

Já não tive oportunidade de lhe oferecer um livro, visto que o primeiro que recebi foi precisamente no dia do seu funeral, quando regressei a casa.

Fiz questão de o oferecer mais tarde à família.

A sua figura ficará gravada de forma indelével nas nossas memórias enquanto por cá andarmos.

Até um dia companheiro. Maio de 2013”

Terminada a minha mensagem, dados os seus contornos, espontaneamente atroou pela sala uma longa salva de palmas em homenagem ao nosso amigo José Carvalho de Sousa, entre soluços e algumas lágrimas, mais evidentes nas duas pessoas especiais que, como disse, se encontravam no local. O silêncio caiu novamente na sala no meio de toda a comoção, em contraste com a animação que se sentia naquele final de convívio.

Depois da morte deste nosso companheiro ficou em nós a tristeza de, nos futuros convívios, nunca mais sermos mimados pelos chocolates com que ele sempre nos brindava.
O mesmo era dizer que ele nos tinha deixado para sempre.

Recuando um pouco, ao momento da concentração no princípio do dia, no Jumbo da Maia, eis a minha primeira emoção do dia que me tocou particularmente:
Ali chegavam também, para minha grande surpresa, a esposa e a filha do nosso saudoso companheiro, vindas expressamente da Suiça para se juntarem a nós neste dia, as duas pessoas especiais que estavam na sala a que antes me referi.

Com elas traziam, imaginem, o que me sensibilizou ainda mais, além de admirar a sua coragem em terem vindo, a cestinha dos chocolates com que aquele saudoso camarada sempre nos brindou ano após ano.

Para terminar, e era aqui que eu queria chegar, além de vos apresentar a “acta” do convívio deste ano, a presença deste nosso companheiro, enquanto esteve entre nós, era indissociável dos chocolates com que habitualmente nos brindava.
Porém, a simpática oferta desta guloseima por parte da esposa e da filha este ano não esteve associada à sua presença, para tristeza de todos nós.

Atentas estas circunstâncias, “amargos” chocolates aqueles!

Terminado o convívio, em que foi patente ao longo de todo o dia a alternância de momentos de alegria e de tristeza, a que estive atento e aqui tentei reproduzir, finalmente a fotografia de família para a posteridade e, depois, o regresso a casa.

Foto de família no final do convívio para a posteridade. 
(Foto de Eduardo Augusto da Silva)

Foi um dia de emoções fortes!
Coisas de ex-combatentes!

Junho de 2013
Manuel Sousa
____________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 25 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11626: In Memoriam (151): À memória do meu companheiro ex-combatente José Carvalho de Sousa do 4.º Pelotão/2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Manuel Luís R. Sousa)

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11761: Convívios (516): Último lembrete para o 3.º Encontro dos Bedandenses, a levar a efeito no dia 29 de Junho de 2013 na Mealhada (António Teixeira)

Guiné 63/74 - P11764: Os nossos médicos (53): Homenagem ao pessoal da saúde do meu BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74 (Juvenal Amado)


Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74) > Alf mil médico Vieira  Coelho, ou simplesmente dr. Vieira Coelho. [, Presumo que seja o dr. Mário Jorge Silva Vieira Coelho, especialista em ortopedia e traumatologia, com consultório no Porto (LG)].

Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74) > Da esquerda para a direita: dr. Pereira Coelho mais alferes mil Vasconcelos, Veiga e Parente

Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74) > Fur mil enf Graça mais os seus ajudantes, Santos e Correia, na enfermaria.

Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 ( Galomaro, 1971/74) > O enfermeiro Catroga, prestando à população civil cuidados de enfermagem comunitária, ou "em ambulatório"

Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 ( Galomaro, 1971/74) > Enfermeiro Catroga e o Padre Nuno

Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 ( Galomaro, 1971/74) > Natal de 1973 > Dr , Narcíso, Alf Farinha, Sardeira, Catroga, Correia e André.

 Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 ( Galomaro, 1971/74) > O alf Vasconcelos e o Médico Vieira Coelho

Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro >  CCS/BCAÇ 3872 ( Galomaro, 1971/74) > Pessoal de saúde de prevenção no decorrer de uma operação.

Fotos (e texto): © Juvenal Amado (2013). Todos os direitos reservados.


1. Fotos enviadas pelo Juvenal Amado [, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74; natural de Alcobaça, vive em Fátima]:


Camaradas,  este é um pequeno contributo para o tema [Os nossos médicos] mas também uma homenagem devida por nós todos.

Um abraço
Juvenal Amado


2. Os nossos médicos, por Juvenal Amado


No dia 18 de Dezembro de 1971, o  dr. António Pereira Coelho embarcou no Angra do Heroísmo integrado no Batalhão 3872, rumo à Guiné.

Penso que já estava em Galomaro no início de Fevereiro de 1972 quando o batalhão lá chegou, pois no mesmo dia assistiu um camarada da CCS/BCAÇ 2912 ( batalhão que fomos render), que teve o azar de bater com a cabeça no funda bolanha quando aí mergulhou.

Contava ele  há uns tempos no grupo dedicado a quem passou por Galomaro: 

Caros amigos deste extraordinário Grupo de convívio à distância, hoje decidi contar-vos uma história pessoal:

“Eu não sou muito preciso em datas mas, no dia em que os "periquitos" do BCAÇ. 3872 chegaram a Galomaro ( ao principio da noite ),  nessa tarde eu fui tomar banho à "bolanha" que ficava à saída de Galomaro e à esquerda na estrada para Bafatá, num dos "mergulhos" bati com a cabeça no fundo da referida "bolanha",  fiz uma luxação na cervical e no dia seguinte fui evacuado para o Hospital de Bissau onde permaneci cerca de um mês.

Passei à disponibilidade com uma má postura na cervical e,  passados uns anos tive que ser operado no Hospital Santa Maria,  em Lisboa. Fiquei com uma parcial mas acentuada deficiência física que, ao longo dos anos,  foi aumentando e, há dois anos a esta parte, estou confinado a uma cadeira de rodas e impossibilitado de sair de casa. 

É esta a minha recordação,  viva e diária, de GALOMARO... DESTINO... E PASSAGEM.”

Este camarada é pois um dos que está possivelmente fora das estatísticas oficiais uma vez que passou à disponibilidade isentando o exército da responsabilidade quanto à sua deficiência adquirida em tempo de serviço.

O referido médico esteve sempre presente nas nossas aflições. A mim tratou-me de um violento ataque de paludismo e outros pequenos achaques, que me fizeram estar internado na enfermaria três vezes.

Montou uma sala onde passou a fazer pequena cirurgia e tentou inclusive debelar uma epidemia de furunculose que atacou os soldados de Galomaro entre o 9º  e os 12 meses de comissão. Vi casos de camaradas com vários furúnculos na cova do braço ou por detrás do joelho, nas costas, no pescoço etc. Quem não foi atacado pela maleita gozava com os outros,  dizendo que se tinha ouvido no rádio que vinha mais um carregamento dessa praga para o 3872.

Na verdade era muito doloroso e incapacitante e inicialmente chegaram a ser internados na enfermaria, mas com o propagar do problema acabaram por ficar nos respectivos abrigos. O dr P. Coelho chegou a enviar amostras de pus para ser feita uma vacina para o problema.

Estava sempre disponível para nós bem como o atendimento às populações. Mulheres grávidas, meninos com infecções após a circuncisão, promoveu a vacinação das populações bem como a debelar doenças sexualmente transmíssíveis, como aconteceu após festa da tabanca ter havido o perigo de contágio em larga escala dos seus habitantes. Acabou dessa forma à nascença com possíveis propagações mais alargadas.

Mais tarde foi transferido para o hospital de Bafatá como director e,  juntamente com a sua esposa que também lá se juntou a ele, continuou a cuidar das populações.

Ele também foi o responsável por nós praças termos direito a comprar uma garrafa de uísque por mês e a tê-lo disponível na venda a copo na cantina. Até à data o referido, nem pelos nossos narizes passava e tínhamos que pedir a um furriel se nos dispensava alguma. “Problemas de distribuição”.

Em Galomaro foi substituído pelo dr. Vieira Coelho, que ficou connosco até ao fim da comissão.

Também esse médico deixou amigos e o respeito dos soldados que com ele privaram ou dele necessitaram.

O dr Pereira Coelho e o dr Vieira Coelho evitaram muitos problemas de saúde e actuaram firmemente, evacuando camaradas quando assim era exigido, por essas razões ficaram na memória de todos nós.

Se não estou em erro, no tempo do 3972 o médico sediado na sede do batalhão prestava serviço médico às companhias operacionais, não tendo porem a certeza se o Saltinho não seria assistido por médico de Bambadinca.

Bem hajam por isso.
_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11756: Os nossos médicos (52): Com o pessoal do meu batalhão, partiram, em 24/4/70, no T/T Carvalho Araújo, très alf mil médicos: Vitor Veloso, José A. Martins Faria e Eduardo Teixeira de Sousa (António Tavares, ex-fur mil, CCS/ BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72)

terça-feira, 25 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11763: Bom ou mau tempo na bolanha (15): Os verdes anos (Tony Borié)

Décimo quinto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Quase todos os antigos combatentes, quando escrevem as suas memórias, mencionam os companheiros que estiveram a seu lado, durante o horroroso conflito armado por que passaram.

É uma verdade, todos, mesmo todos, se fecharmos os olhos por momentos, recordamos o amigo, aquele que não era muito amigo, e até aquele que era mesmo um pequeno inimigo, e fazemos isso, talvez porque naquela altura, estávamos numa idade jovem, eram os “verdes anos”, ainda estávamos a gravar no pensamento tudo o que era novo, as pessoas que nunca tínhamos visto antes, umas que eram parecidas connosco na sua maneira de proceder, outras não, algumas eram instruídas e absorvíamos as suas palavras que para nós era novidade, outras que eram rudes na maneira de se exprimirem, mas com bons sentimentos, enfim, sem nos apercebermos estavamos a frequentar, embora num cenário perigoso, uma boa “escola da vida”.


O Cifra teve um amigo no cenário de guerra, que nunca o mencionou aqui, e também nunca lhe colocou qualquer nome de guerra, e não é agora que lho vai pôr, porque sempre respeitou o seu sofrimento, portanto vai tratá-lo única e simplesmente por “amigo”, era das ilhas, falava com um sotaque diferente, também era primeiro cabo operador cripto, sofria a ausência da sua esposa e um filho que deixou nas ilhas, todos os dias procurava um local um pouco afastado, colocava-se de joelhos, quase sempre com a cara virada para o que julgava ser a ilha de onde era oriundo, murmurava umas lamúrias, que devia ser rezar, chorava, de vez em quando levantava a cara e as mãos e fazia umas preces em voz alta.


Este amigo que trazia a fotografia da esposa e do filho sempre consigo, fez um pequeno quadro onde colocou essa fotografia, e sempre que entrava de serviço, esse quadro era posto na mesa onde decifrávamos as mensagens. De vez em quando o Cifra via-o a falar sozinho, e questionado, dizia que falava com a esposa. Escrevia um aerograma por dia para ela e talvez para a família, um maço de cigarros durava-lhe para três dias, bebia um pouco de vinho, na altura da refeição, não ia para a tabanca, não convivia com mais ninguém, a não ser com o pessoal da cifra ou das transmissões. A sua roupa estava sempre impecável, e dizia que era assim que a sua esposa queria que ele andasse. Durante dois anos nunca criou problemas com ninguém, por outras palavras, vivia o seu mundo de saudade da sua família, sofrendo e criando alguma angústia.

O Cifra, sempre pensou que este amigo, sim, sofreu com a guerra, sofreu tudo o que aquela zona de conflito onde estava estacionado lhe provocava, menos talvez o contacto directo com os guerrilheiros, que os militares de acção tinham, mas tirando essa vertente, este amigo sofreu todas as horas, todos os dias que foram a sua estadia em Mansoa. O seu aspecto, no final da comissão, era de uma pessoa com muito mais idade do que na realidade tinha, criou algumas rugas e já caminhava um pouco curvado.

Dizia que era oriundo das “Flores”, a ilha mais linda dos Açores, e mais perto de outro continente.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11750: Bom ou mau tempo na bolanha (14): "Tarrafo", um livro, um documento (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

1. Excerto de mensagem de Cherno Baldé, com data de 16 do corrente:

(...) Juntamente envio dois textos e algumas imagens de Bissau, para publicação no blogue da TG, se assim o entenderem. 

O primeiro texto, sobre os acontecimentos de Cuntima, em Novembro de 1976, é uma promessa antiga mas que só agora foi possível concretizar, o segundo é um 'fait divers' popularizado na época colonial e o resto são imagens sobre a actualidade da cidade de Bissau. (...)

Entretanto, a 21, o Cherno envia-nos outra mensagem, nestes termos:

Junto envio a versão final do texto sobre os acontecimentos de Cuntima, Nov 1976. A última que enviei não contem as alterações do texto que de resto não são significativas.

Um abraço amigo e aceitem os meus agradecimentos pela publicação do meu aniversário [, em 20 de junho,]  que, no fundo, mesmo se não é exacto, sempre nos comove a simpatia vinda de terceiros.


Li o texto sobre os acontecimentos de Cuntima (referentes a novembro de 1976), e fiquei sem fôlego. É mais um caso da violência de Estado, praticada por homens do PAIGC, e mais concretamente por um dos heróis do PAIGC, Quemo Mané, comandante das FARP, dois anos depois da "transferência" de soberania das mãos da antiga potência colonizadora para os novos senhores de Bissau.

No Arquivo Amílcar Cabral, no sítio Casa Comum, projeto desenvolvido pela Fundação Mário Soares,  há uma foto de Quemo Mané, disponível aqui, para além de outros documentos com referência a ele  É uma foto expressiva (e só não a  reproduzo diretamente, porque  tenho de pedir autorização para o fazer). Quemo Mané  tinha fama se ser um homem temperamental e violento. É um histórico da guerrilha: ele e Arafan Mané, são considerados os que "dispararam os primeiros tiros contra um quartel do exército colonial", em 1963, na região de Quínara.

O texto de denúncia,  escrito e enviado pelo Cherno Baldé (e há  muito prometido!), preocupou-me: por um lado, é inegável o seu interesse para o nosso blogue, e para a nossa memória comum, dos portugueses e dos guineenses que fizeram a guerra colonial; por outro, o Cherno Baldé vive em Bissau, tem mulher e quatro filhos e eu não tenho a certeza de que ele fica seguro, dando a cara... Foram estas minhas apreensões que  lhe transmiti, logo no dia 19:

(...)  É impressionante o teu relato dos trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976. Diz-me se o comandante do PAIGC ainda está vivo, bem como outros intervenientes que identificas E se podemos publicar o poste, em teu nome, na tua série, com toda a segurança... Presumo que tenhas as várias versões dos acontecimentos, de um lado e do outro... Onde estavas nessa época ? Em Bafatá ?...

Ainda há tempo alguém de Contuboel, que fez tropa no nosso lado,  me contou coisas (horríveis) do tempo, pós independência, em Bambadinca: ele assistiu, por exemplo, ao julgamento popular e à execução de um cipaio do meu tempo... Falou-me também da morte horrorosa e indigna de um régulo da região (...) . É importante falar deste período negro da história da Guiné-Bissau, com depoimento sérios, autênticos, honestos como o teu... Vejo que os fulas estão a perder o medo de falar. Ainda é preciso muita coragem.... Tenho grande admiração por ti e por todas vítimas do terror e da violência de Estado (...)


Ao que ele me respondeu, da seguinte maneira, corajosa e desassombrada:

(...) O Quemo Mané já não se encontra entre os vivos, pois de outro modo teríamos ouvido falar dele no decurso dos acontecimentos que sacudiram a Guine ultimamente. Comparados com o Quemo Mané, o terror da guerrilha, todas as figuras que protagonizaram acontecimentos militares na Guiné, depois de Nino Vieira -  os Ansumanes, os Tagmes, os Verissimos, os Zamoras e Antónios - são figuras de segundo ou terceiro plano, no contexto da guerra de libertação.

Mas é claro que sempre haverá riscos porque o partido existe sempre, os amigos e companheiros, a família, etc.,  o que não deve constituir motivo suficiente para impedir a publicação de acontecimentos que foram públicos e do conhecimento geral da população. Exceptuando o Quemo, no texto não aparecem nomes reais, e no texto que te envio agora, acrescentei um parágrafo nas notas finais, onde aparecem os nomes dos protagonistas. Procedam conforme acharem melhor, por mim tanto faz, eu já vivi o suficiente para não continuar fechado no medo de possíveis represálias. As versões podem variar mas o acontecimento é factual e como tal é relevante.

Acontece que o trabalho de escrever e publicar está sempre acompanhado de riscos de erros e de interpretação. Depois da publicação do poste sobre o Capitão Carvalho,  recebi uma mensagem no facebook de uma ex-esposa que, ao mesmo tempo, queria encorajar-me e refutar factos que eu vi com os meus olhos, mesmo se era criança. Afinal o homem ainda está bem vivo e em Portugal.


Um abraço amigo, 
Cherno Baldé. (...)

A minha resposta só poderia ser esta:

Grande Cherno, mereces todo o nosso apoio, apreço e solidariedade. O nosso blogue é muito conhecido e considerado. 
Um abração, amigo e irmão. 
Luís.

Estamos então em condições de publicar hoje, num único poste, o notável e inédito documento que ele nos pede para publicar no nosso blogue (que também é dele, e de todos os guineenses, homens e mulheres de boa vontade, que querem construir connosco as pontes do futuro sem destruir os vestígios dos bons e dos maus momentos do nosso passado comum).  Embora extenso, é importante que se publique na íntegra, num só poste, para manter a unidade de leitura. Naturalmente, estamos abertos à publicação de outros testemunhos, de outras fontes, que contestem, ou corrijam, ou complementem, ou melhorem esta versão que contem as recordações de Demburri Seidi quando jovem, em Cuntima, novembro de 1976.



Guiné > Colina do Norte >  Mapa 1/50 mil (1956) > Posição relativa de Cuntima, junto à fronteira com o Senegal.

Info: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


2. Cuntima, Novembro de 1976 > A revolta das milícias

Texto © Cherno Baldé (2013)

Introdução

A tradição africana diz que um lobo sem dentes, na floresta, é um lobo morto. Tudo o que acontece na vida tem as suas causas e consequências porque a ponta inicial de um fio leva, necessariamente, à sua ponta final. Se o caminho recto leva o viajante esclarecido ao objetivo almejado, os erros e a perfídia de uns podem conduzir a perdição inglória d’outros.

No prefácio do seu livro sobre Gêngis Khan e a invasão Mongol do séc. XIII, o romancista soviético V. G. Yan diz que “a obrigação moral de um cidadão que testemunhou acontecimentos extraordinários é de os transmitir e revelar aos demais cidadãos de forma escrita ou então se não está instruído na arte de registar palavras épicas num papel com a ponta deslizante de uma pena, então que transmita as suas recordações a quem o possa fazer, para que sejam impressas em superfícies consistentes à intenção das gerações vindouras. E quem não procede assim é semelhante ao homem avarento que colocou toda a sua riqueza num alforge e a enterrou num lugar desértico, quando as mãos frias da morte já estavam a acariciar-lhe a face”.

Ultrapassado o período de medo, de dúvidas e de incerteza quanto a pertinência de o fazer, é este o sentimento que nos anima ao tentarmos transmitir os acontecimentos de Cuntima, na certeza de que os caros leitores compreenderão as nossas limitações pessoais e humanas para revelar em toda a sua dimensão esta tragédia humana, mesmo se, no contexto global, não representa um caso de excepcional grandeza.


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Cuntima > Aspeto geral da povoação ao tempo da CART 3331 (1970/72). Na sua maioria a população era de etnia Fula, de religião muçulmana; havia uma pequena minoria Mandinga. Foto do álbum do ex-1º cabo Vitor Silva.

Foto: © Vitor Silva (2008). Todos os direitos reservados.


Contextualização

Em finais de 1976, a Guiné-Bissau, por um lado, ainda está a saborear os festejos do 2º aniversário da sua independência, conquistada a ferro e fogo pelo PAIGC, na sequência de uma guerra sangrenta que parecia não ter fim (1), com graves consequências humanas e sócio-económicas dos dois lados da barricada. 

Mas, por outro lado, ainda não se recompôs do choque psicológico causado pela mudança abrupta da situação que conduziu o país de uma guerra brutal e sem quartel, para uma paz podre e sem garantias de protecção das partes saídas de um confronto fatricída, pese embora a existência de um acordo de paz fictício que, se serviu para salvar a face, a honra e a dignidade de Portugal, como país colonizador, trará tudo menos a desejada paz entre os Guineenses.

No nordeste, em chão fula, ainda o espírito das populações procurava compreender e medir a dimensão real do drama ligado aos últimos acontecimentos e da reviravolta da situação onde, de repente, os antigos turras assumiam, para certas pessoas, a insuportável figura de heróis nacionais, de grandes patriotas e de combatentes de liberdade da pátria, reclamando para si o mais que discutível estatuto de melhores filhos da nação e, por essa via, privar aos outros os mais elementares direitos de liberdade, de justiça e de cidadania.

Neste panorama ainda incerto de mudanças e de inversão de valores, os antigos soldados nativos do exército colonial em geral e as ex-milícias em particular faziam figura de infortunados. Desarmados pelos seus antigos patrões, privados dos seus direitos, feridos no seu orgulho de homens e de combatentes e sem os meios de sustento a que estavam habituados, pareciam náufragos espalhados na vastidão do oceano das suas (des)ilusões. Perseguidos e desorientados, uma boa parte tinha sido obrigada a refugiar-se no Senegal, na região fronteiriça do Casamança, de onde muitos seriam presos e recambiados de novo para a Guiné no quadro de um acordo que permitia, ao vizinho do norte, liderado pelo pragmático presidente L. S. Senghor, grande poeta e humanista, participar na disputadíssima predação dos recursos haliêuticos nacionais.

Para o partido vencedor, que tivera o tempo necessário para pensar e delinear a sua linha de acção, o objectivo a atingir estava bem definido: Marcar posição, assentar alicerces, alargar e consolidar as estruturas do novo poder saído da luta. E era importante fazê-lo, sobretudo, nas zonas onde as populações não tinham aderido à luta, através de medidas de choque para marcar os espírítos e, desta forma, evitar o surgimento de contestações organizadas. 

O relato que se segue,  faz parte desta estratégia de terror e de intimidação deliberada a populações indefesas e executada com mestria e sangue frio, bem à maneira da guerrilha que assumiu o poder na Guiné em 1974, com o beneplácito do exército português. Muitos dirão que não, cada um suas razões, cada um seus argumentos.

Em Cuntima, pequeno aglomerado fronteiriço que tinha sobrevivido à guerra de fronteiras de 1973, nada fazia prever que nos dias seguintes seria o palco de acontecimentos que iriam marcar o período pós-colonial e perturbar a pacata vida da aldeia e suas gentes. A região vivia a despedida da época das chuvas e nas áreas alagadas de cultura de arroz, as premissas de uma boa colheita que se avizinhava já se faziam sentir pelo cheiro aromático do arroz novo e pela cor amarelada dos campos a perder de vista nas extensas planícies de terras baixas, rodeadas de verdes cinturas de palmeiras dendém. Com o fim da guerra as aldeias tinham sido repovoadas, todas as bolanhas tinham sido recuperadas e parecia não haver limites para criar a prosperidade tão almejada e recuperar o tempo perdido. Mas, nem todos pensavam assim, helás!

Dia 14 de Novembro - o ataque ao quartel

Ódio, coragem e perfídia

Na noite do dia 14 de Novembro de 1976, um grupo constituido maioritariamente por ex-milicias, cegos de raiva e de ódio, mas muito mal equipados, cujo material bélico se resumia em catanas de uso doméstico, facas de mato e algumas granadas, apostando no efeito surpresa, decide atacar e neutralizar o destacamento militar do PAIGC colocado em Cuntima.

Ao entrarem na aldeia, uma parte dirige-se para a casa de Sissão Seidi, uma decisão que será fatal a este pacífico aldeão que era colega de alguns dos elementos do grupo. Põem-no ao corrente das suas intenções, isto é,  atacar e neutralizar os homens do PAIGC e, de seguida, com as armas que iriam recuperar, liquidar todos os que, na aldeia e seus arredores, colaboravam com o partido.

Quando o grupo deixa a casa para dirigir-se ao seu alvo, o Sissão vai a casa do Comité da tabanca e, em segredo, conta-lhe tudo o que tinha ouvido dos assaltantes. O Comité apercebe-se de toda a gravidade da situação e sabe que não pode perder tempo, rapidamente, decide passar para o outro lado da fronteira, situada mesmo ao lado, levando consigo a sua família, mas antes de partir informa o incrédulo Sissão de que só voltaria em caso de derrota dos assaltantes.

O grupo aproximou-se em silêncio, encoberto pela escuridão da noite, consegue eliminar a sentinela e penetrar no interior do quartel, apanhando de surpresa os seus ocupantes. Os guerrilheiros do PAIGC reagem bem à investida, refeitos da surpresa inicial e melhor armados, obrigam os assaltantes a bater em retirada de uma forma dispersa e desorganizada. De acordo com a testemunha, o ataque teria durado cerca de 3 horas o que, manifestamente, parece exagerado, tendo em conta a disparidade das forças em presença.

O dia começa a amanhecer e os primeiros raios de sol começam a pintar de amarelo o horizonte claro do fim da época chuvosa. E, nas horas que se seguiram à retirada, alguns elementos do grupo assaltante entram, de novo, na morança de um antigo colega, também ex-militar, impelidos talvez pelo desejo de implicar o maior número de pessoas e convencem-no, desavergonhadamente, que já tinham feito o essencial do serviço, mas que, sem munições suficientes, não conseguiram limpar todos, pelo que, se ele tivesse uma catana bem afiada e um pouco de coragem,  podia ir dar o golpe de misericórdia aos feridos que estavam amontoados no quartel. Sem pensar duas vezes e empurrado pelo ódio que nutria pelos novos senhores, o homem não hesitou e com uma catana nas mãos correu para o local indicado, sem saber que se tratava de uma armadilha para o perder.

Quando chega ao quartel, encontra os guerrilheiros a porta da entrada, armados até aos dentes. O que fazer? Recuar? Tarde demais, ele precisa pensar rapidamente numa saida. Com as akas [, Kalashnikov,] apontadas, perguntam-lhe o que procurava ali aquela hora. O homem responde que vinha a procura de ajuda para socorrer um filho que tinha sido mordido por um cão vadio. Parece uma saída razoável, mas não será. Os guerrilheiros estão apressados, pedem a sua identificação e informam-lhe que no momento não tinham tempo para o ajudar, mas que voltasse mais tarde, juntamente com o seu filho.

No rescaldo do ataque das milicias

Medo e horror em Cuntima

Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o por ao corrente do que sucedera durante a madrugada. O enviado encontra a morança vazia de gente. Mas, na tarde do mesmo dia, informado sobre o falhanço do ataque e a debandada das milícias, conforme prometera, o Comité regressa com a sua família a Cuntima. O Comandante do destacamento dá-lhe ordem de prisão imediata, por comportamento suspeito. Inquirido sobre as razões que tinham motivado a sua fuga precipitada na noite anterior, confessa que tinha sido informado pelo seu vizinho, Sissão Seidi, mas que, lamentavelmente, não pudera prevenir as autoridades porque os assaltantes eram numerosos e bem armados. Disse ainda que fora obrigado a fugir devido a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça e que regressara após a confirmação de que o perigo tinha sido afastado. Ordenaram-lhe para os conduzir a casa do tal Sissão Seidi, onde os dois seriam presos e amarrados à moda do PAIGC, isto é,  mãos para trás e o peito bombeado à frente, estilo peito de pomba.

Na manhã do dia 16 de Novembro chegou em Cuntima o responsável militar da zona norte, o famigerado Comandante Quemo Mané, que assume a direcção das operações e manda convocar toda a população de Cuntima e seus arredores. Querem o máximo de gente e para se certificar que todos estavam presentes, guerrilheiros armados passam revista em todas as casas e sitios passíveis de albergar um ser vivo, querem todos, mulheres, velhos e crianças.

Os dois prisioneiros são colocados no meio da assembleia reunida. O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima. 

Que diabo o teria arrastado para as malhas do partido, ele que sempre fora um camponês simples, honesto e trabalhador, distante das lides políticas e das intrigas que esta engendra nos homens mais ambiciosos. Não servira na tropa colonial apesar dos benesses, do ronco e da fama que o estatuto augurava no meio social fula. Toda a sua família estava presente, a mãe, duas esposas, os filhos e o irmão mais velho. Com voz trémula, explicou tintim por tintim como os assaltantes o tinham acordado durante a noite, os seus intentos e as ameaças proferidas. O Comité da aldeia também repetiu a sua versão e as palavras trocadas com Sissão naquela fatídica noite,  bem como os motivos que o impediram de alertar os homens do destacamento.

Não foi preciso ouvir mais e, se calhar nem era preciso, o Comandante levantou-se e, com a frieza de quem estava habituado a tomar decisões graves, disse que,  pelos comprovados actos de rebeldia e traição à Pátria, os dois homens deviam ser fuzilados e imediatamente.

Ao ouvir as palavras “pá mata!” da boca do Chefe militar, a assistência ficou literalmente congelada. A rapidez e a dureza da decisão tinham surpreendido tudo e todos, mas quem conhecia o Comandante Quemo Mané durante a luta, sabia que com ele tudo era simples, rápido e demolidor como o turbilhão de vento em dia de tornado tropical. A semelhança da grande maioria dos Comandantes do PAIGC, apesar de rotundo analfabeto (2), subira na hierarquia militar por mérito próprio, distinguindo-se pela sua coragem, brutalidade e violência extremas, uma inteligência fora do comum e pelos sucessos acumulados nas operações que dirigia.

Deram ordens para que todos fossem presenciar o acto no centro da aldeia, mas antes de os levarem, um grupo de homens do partido dirige-se ao local onde estava o Comandante a fim de interceder a favor do Comité da aldeia, provavelmente, pela lealdade e serviços prestados no passado. Assim, no local da execução da sentença, só compareceu o assustado Sissão, diante de uma dupla de homens armados com metralhadoras de fitas metálicas, contendo perto de uma centena de balas. O caso não era para menos.

Tudo estava a postos, os dois guerrilheiros com as armas apontadas, o Sissão à frente,  com as mãos amarradas e olhos fixos nos seus carrascos, a população em pé, envolta em silêncio e no céu o Deus dos homens a registar mais uma crueldade humana. O Comandante da zona que ficara retido pelos colegas do partido para deliberar sobre a sorte do Comité, ao entrar no recinto, grita para os dois executantes:
- O que estão a espera, acabem com eleǃ

Os tiros sucedem-se ensurdecedores, o corpo de Sissão é projectado para trás com o impacto das balas das metralhadoras que continuaram a cuspir fogo até transformar o corpo num autêntico manto de retalhos. A poeira e o cheiro acre da pólvora invadiram o recinto. De seguida, um dos guerrilheiros pega no corpo inerte do defunto Sissão, tendo-o arrastado até ao pé da família, diz a estes:
- Aqui está o corpo do vosso cão, agora podem levá-lo, se quiserem!

Da multidão, ninguém proferiu uma única palavra, ninguém teve a coragem de sussurar a mais pequena lamentação, os guerrilheiros atentos ao menor gesto de indignação. Perguntaram se havia alguém que estivesse descontente com o que acabara de assistir. Como ninguém respondia, foram autorizados a dispersar-se no preciso momento em que se ouviam os gritos de desespero vindos da concessão de Sissão Seidi, cujos familiares a muito custo tinham conseguido conter a dor pela perda do seu ente querido.

Na tarde do mesmo dia, o Comissário Político da zona convocou todas as mulheres cujos maridos estavam ausentes, refugiados algures no Senegal, e que, eventualmente, podiam ter feito parte do grupo assaltante e intimou-os a deixar Cuntima para se juntarem aos seus maridos, pois que não tolerariam mais a presença de pessoas que viviam na aldeia, mas, ao mesmo tempo, passavam informações para fora. Mais que intimação,  era uma ordem que ninguém podia ignorar. As mulheres partiram levando consigo os filhos para um destino incerto.

Na manhã do dia 17 de Novembro, foram buscar o homem da catana para as averiguações que se impunham. O homem foi amarrado ao estilo peito de pomba e a população foi novamente convocada para mais um julgamento público. Perguntaram-lhe porque não voltara com o filho conforme tinham combinado, o homem confessou que na verdade ele tinha sido enganado pelos assaltantes e que a sua verdadeira intenção era liguidar os homens do PAIGC aos quais ele odiava com todas as suas forças e que,  mesmo depois de morto,  continuaria a odiar. De certa forma, a coragem deste homem desesperado tinha compensado a humilhação pública da população de Cuntima.

Levaram o homem ao mesmo sitio do dia anterior, a cabeça e o rosto encapuchados com um chapéu (sumbia) e para o executar, estavam novamente os homens das metralhadoras. O homem pediu para ver o seu filho mais novo. Retiraram-lhe o chapéu que cobria o seu rosto e,  durante alguns segundos,  olhou para o filho, depois pediu para que o cobrissem de novo e em voz alta, para que todos pudessem ouvir, disse que estava pronto para morrer. 

Acto continuo, o comandante deu ordens de fogo e a cena repetiu-se de novo. Como ninguém reagia e olhando para a multidão silenciosa, o Comandante aproveitou para informar a população aterrorizada de Cuntima que para ele e para o seu glorioso partido não custava nada e não constituía qualquer problema riscar a aldeia e a sua população rebelde do mapa da Guiné-Bissau. Com esta mensagem curta e clara,  tinham dado por encerrado o capitulo da revolta das milícias em Cuntima, mostrando assim a determinação do partido em impor a sua ordem.

A operação de procura dos assaltantes continuou nos dias que se seguiram. Durante as buscas, encontraram um dos assaltantes, gravemente ferido, a quem entregaram aos pais e que viria a sucumbir, poucas horas depois, dos seus ferimentos e, provavelmente, por falta de assistência mêdica. Como dizem os árabes, quem não consegue defender, com as armas, o seu ponto d’água, perdê-lo-á; quem não ataca o inimigo com todas as suas forças, sofrerá a humilhação da derrota com todas as suas amargas consequências.

Actos desesperados e suicídas,  como este, tiveram lugar em outros lugares do território, no período que se seguiu à proclamação da independência, sobretudo junto à linha da fronteira com o Senegal. Actos isolados e mal preparados que estavam condenados ao fracasso e cuja autoria, sistematicamente e sem uma explicação plausível, era atribuída à FLING, fazendo reviver velhos fantasmas do passado, aumentar o grau de crispação das novas autoridades e, em consequência, multiplicar a violência de represálias cegas, perseguições arbitrárias e execuções sumárias que marcaram a vida desta jovem nação que, para muitos, constituía um modelo exemplar de uma luta popular bem sucedida, contra o colonialismo em África e no mundo.

Bissau, 12 de Junho de 2013

Recordações de Demburri Seidi (3), tradução e texto de Cherno Baldé.
______________

Notas de C.B.:

(1) Na minha infância, povoada pelo espectro da guerra e das fugas constantes de um lado para o outro, quantas vezes não perguntara, a mim mesmo, se a minha vida estaria condenada a ser vivida assim no meio de uma guerra sem fim. Pela experiência dos mais velhos, sabiamos que no passado nem sempre tinha sido assim e sofriamos a bem sofrer,  com a guerra que nos minava a vida pelo medo de morrer em cada minuto, vivendo no improviso e na incerteza do momento, em abrigos imundos, quentes e húmdos, onde todos os ruídos eram ampliados ao máximo, rastreados e identificados a tempo, não fossem silvos de uma granada de obus a caminho ou de uma bala perdida na noite escura.

Para afugentar uma aldeia inteira, qual manada de bovinos na planície, bastava ouvir gritar na noite: “Aí estão eles!”. Não era preciso perguntar, toda a gente sabia quem eram “eles”. Uma vez, um dos meus tios ouviu o grito durante a noite e fugiu nu, como tinha nascido, e foi a mulher que lhe cobriu as vergonhas, no caminho, com o seu pano de cima.

(2) A propósito conta-se uma pitoresca estória sobre o Comandante, que aconteceu no período pós-independência. No término de uma aula rotineira, um Professor dá aos seus alunos um TPC (trabalho para casa) em que pede para citar exemplos de alguns animais voadores. Em casa, o filho pediu o apoio do Comandante, seu pai, para a conclusão do mesmo.
─ Isto é muito fácil ─ diz o pai ─ ponha os nomes de peixe e lagarto.

Na escola, durante a correção dos trabalhos o Professor pergunta ao seu aluno:
─ Quem te ajudou a fazer o trabalho?
─ O meu pai ─   responde o aluno, com uma ponta de orgulho.
─ O teu pai é um burro ao quadrado ─ diz o Prof.

A criança não diz nada e em casa conta tudo ao pai. No dia seguinte, o Comandante vai a escola armado com uma pistola e pergunta ao Professor:
─ O peixe voa ou não voa?
─ Voa ─ responde o Professor ─ mas debaixo d’água.

O Comandante pergunta de novo:
─ O lagarto voa ou não voa?
 ─ Voa ─ responde o pobre professor, com a voz a tremer ─ mas debaixo d’água.
─ Afinal quem é o burro ao quadrado? O burro ao quadrado é o professor que não sabe o que diz e a quem o diz ─ responde este.

Devagarinho, o Comandante coloca a pistola na cintura das calças e diz ao professor:
─ Agora continua a dar as tuas aulas e não te metas com antigos combatentes se não queres levar com uma bala na tua cabeça de burro ao quadrado ─  acrescentou antes de sair.

Um provérbio árabe diz: "Não menospreze uma criança frágil, pode ser que seja filho de um leão".

(3) Em 1974, Demburri Seidi (nome fictício) fez parte de um grupo de jovens que fugiu para juntar-se às fileiras do PAIGC, no mato. Após a independência, fez preparação militar em Canchungo, mas rapidamente chega a conclusão que, com o fim da guerra e sem instrução escolar, as suas hipóteses de subir na hierarquia militar eram praticamente nulas.

 Aconselhado por pessoas amigas, decide trocar a farda pelos estudos, colecciona alguns livros e escolhe a localidade de Cuntima, que dista a poucas horas da aldeia dos pais, para a sua formação escolar. E, sem querer, vai testemunhar os trágicos acontecimentos que se seguiram ao ataque de Cuntima (4) que acabamos de descrever e que marcaram a sua vida e sobre os quais, ainda hoje, não consegue falar sem que os seus olhos se encham de lágrimas.

(4) Comandante do destacamento de Cuntima - Capitão Madiu Kim;
Responsável da segurança – Sana Queita;
Comité da tabanca  ─ Samba Seidi;
Fuzilados ─ Soarê Seidi =Sissão Seidi; e Abbaro Candé = Homem da catana.
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11730: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (44): A mulher mandinga e o soldado português