1. Em mensagem do dia 14 de Julho de 2013, o nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), enviou-nos mais este pensamento voador...
Seguindo o ditado que diz:
- Vale mais uma boa foto, do que mil palavras, o Cifra, continuando a contar as histórias do senhor Aniceto, dirigindo-se não só aos antigos combatentes, mas também às pessoas que não acreditam no que lhe dizem, aquelas que andam sempre desconfiadas, que só o que vêm é que é verdade, como se explicou no princípio, vale mais uma boa foto do que mil palavras, portanto vamos primeiro “falar a tal mentira”, que é todo aquele blá, blá, blá, onde diz que, para os que vivem no mundo onde se fala inglês, vão dizer, com toda a certeza:
- Mr. Aniceto, has a flock of sheep with different colors!
No mundo onde se fala francês, dizem:
- M. Aniceto, possède un troupeau de moutons avec des couleurs différentes!
Onde se fala germânico, friamente dizem:
- Mr. Aniceto, hat eine Schafherde mit verschiedenen Farben!
No mundo que se fala espanhol, entre dois ou três “zzz”, dizem:
- El señor Aniceto, tiene un rebaño de ovejas con varios colores!
Os chineses, põem os pauzinhos de parte, se estiverem a comer, e depois dizem:
Perceberam? Não?
Deixem lá, pois o Cifra, também não percebeu, pois tem alguma dificuldade em pronunciar, os pontos e as vírgulas!
E nós portugueses, dizemos:
-
O senhor Aniceto, tem um rebanho de ovelhas com diferentes cores!
Sim é verdade, como anteriormente aqui falamos, e nunca é demais repetir, porque foi verdade, o senhor Aniceto, quando era novo, percorreu todas aquelas savanas e bolanhas da Guiné, sempre de G-3 em posição de tiro, carregado de granadas, às vezes sem comer, e com o camuflado roto e todo molhado. Claro que na altura não lhe fazia grande diferença, mas hoje o reumatismo e não só, não lhe dão descanso e tem que visitar o doutor mais vezes do que o normal.
Presentemente vive com a filha, o genro e três netos, que são dois rapazes e uma rapariga, na vila, mas também passa algum tempo na companhia da sua esposa Etelvina, a quem carinhosamente chama “patroa”, na casa que era de seus pais, lá nas Beiras, onde tem um pequeno rebanho de ovelhas e uma cabra, que ele não sabe se é da carqueija, dos pampilhos, ou das papoilas, que elas comem lá na montanha, começaram a ter diferentes cores na lã, algumas são azuis, outras cor de rosa, outras amarelas e até tem algumas verdes, e ele como bom combatente que foi, treinou a referida cabra, para guardar as ovelhas, dos lobos, e até de alguns ladrões, que os há lá na montanha.
Um destes dias, o senhor Aniceto, na sua inocência, quando visitou o doutor, na vila, contou à Lola, a empregada do doutor que está a atender as pessoas, depois de lhe dar os bons dias, e responder a todas aquelas perguntas de “chacha”, que é normal as empregadas de doutor fazerem sempre que se vai a uma consulta, ele diz-lhe:
- Não estou a brincar, mas tenho um rebanho de ovelhas lá na montanha, que são de diferentes cores, algumas são azuis, outras cor de rosa...!
Não o deixaram acabar de falar, pois não só a Lola, como os presentes, se começaram logo a rir, mas a bom rir, como é costume dizer-se! Claro, a muito custo acabou de falar, e contou o resto da história, e todas essas pessoas que estavam no consultório, além de darem uma grande gargalhada, vendo a sua cara de pessoa séria, calaram-se, mas a Lola com aquela cara de malandrice, logo lhe diz:
- Como diziam lá na Guiné, o senhor Aniceto, deve de “estar apanhado pelo clima”!
Um dos presentes, riu-se, encolheu os ombros, e até disse:
- Coitado, vê-se logo que foi combatente, continua a sonhar com a guerra, vejam lá uma cabra treinada para defender as ovelhas, deve de ser alguma guerrilheira! Será que é stress de guerra?
Então o senhor Aniceto, como já sabia que as pessoas se iam rir, e não iam acreditar em tamanho disparate, tinha pedido ao seu genro, que tinha uma Kodac das modernas, e tirou uma fotografia não só às ovelhas, como à cabra, esta armada com duas grandes espingardas, e tirando o chapéu e o casaco, que como sempre trazia vestido, e mostra as ditas fotografias.
A Lola, e todas as pessoas presentes, ficaram a saber que era verdade!
____________
Nota do editor
Último poste da série de 13 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11836: Humor de caserna (37): Estou a fazer voar o meu pensamento (Tony Borié) (10): Morangos azuis
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 27 de julho de 2013
Guiné 63/74 - P11874: Blogpoesia (350): Uma calda feliz (J. L. Mendes Gomes)
Uma calda feliz...
por J. L. Mendes Gomes
Misturei minhas mágoas de trás
com as alegrias de hoje,
são tantas,
fiz uma calda e bebi.
Sabe-me a mel com picos de dor,
raiada de esperança.
Matei minha sede
e continuei a viver.
O caminho tem pedras,
lisas, agrestes...
Por vezes, podem doer.
Mas se todo lisinho,
sem pregas,
escorregam os pés,
quem é que não cai?...
por J. L. Mendes Gomes
Misturei minhas mágoas de trás
com as alegrias de hoje,
são tantas,
fiz uma calda e bebi.
Sabe-me a mel com picos de dor,
raiada de esperança.
Matei minha sede
e continuei a viver.
O caminho tem pedras,
lisas, agrestes...
Por vezes, podem doer.
Mas se todo lisinho,
sem pregas,
escorregam os pés,
quem é que não cai?...
Se fosse tudo brilhante,
sem sombras,
desapareceria
a beleza das formas,
e a profundeza das cores.
A terra seria uma esfera,
fria e luzente,
sem rios e vales profundos,
escorrendo das alturas das serras.
Por isso, há o dia e a noite,
tecido de horas alegres e tristes,
numa calda perfeita e exacta.
É o coração quem a faz
e o diz...
Ouvindo o tema de Lara
Berlim, 25 de Julho de 2013
10h15m
Joaquim Luís Mendes Gomes
______________
Nota do editor:
Último poste da série > 10 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11823: Blogpoesia (349): O milagre do pão (J. L. Mendes Gomes)
sem sombras,
desapareceria
a beleza das formas,
e a profundeza das cores.
A terra seria uma esfera,
fria e luzente,
sem rios e vales profundos,
escorrendo das alturas das serras.
Por isso, há o dia e a noite,
tecido de horas alegres e tristes,
numa calda perfeita e exacta.
É o coração quem a faz
e o diz...
Ouvindo o tema de Lara
Berlim, 25 de Julho de 2013
10h15m
Joaquim Luís Mendes Gomes
______________
Nota do editor:
Último poste da série > 10 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11823: Blogpoesia (349): O milagre do pão (J. L. Mendes Gomes)
sexta-feira, 26 de julho de 2013
Guiné 63/74 - P11873: O Nosso Livro de Visitas (167): Francisco Maria Magalhães Batista, ex-Alf Mil, integrado na CART 2732 em Setembro de 1971 (Carlos Vinhal)
1. Mensagem datada de 6 de Junho de 2013 do nosso camarada Francisco Maria Magalhães Batista, ex-Alf Mil, integrado na CART 2732 em Setembro de 1971:
Tendo ido para a Guiné em rendição individual, já em final de comissão fui recambiado para a CART 2732, em Mansabá.
Recordo que no geral todos os camaradas, graduados ou não, eram simpáticos e educados, embora eu já estivesse um pouco cacimbado ou "apanhado pelo clima" como se dizia na Guiné, mas hoje faço um esforço tremendo para os recordar e recordo muito poucos. Parece que também eu passei o rio do esquecimento.
Lembro-me de encontrar no bar o major Gaspar, comandante do COP, bom conversador e bom homem. Bebia mais whisky do que eu. Li que já morreu há anos. Paz à sua alma.
Recordo o furriel enfermeiro que tinha um feitio folgazão, não recordo o nome, sei que era de Braga, e um dia dos últimos passados em Mansabá, lhe roubei uma garrafa de whisky e o convidei para ajudar a bebe-la, não gostou.
Recordo uma emboscada que um pelotão nosso, reforçado por uma secção do meu pelotão, sofreu entre o quartel em Mansoa, em que tivemos feridos com bastante gravidade, entre eles um cabo do meu pelotão que mesmo bastante ferido estava furioso por não ter dado uma grande sova aos "outros".
Houve também uma tarde em que o quartel sofreu uma flagelação de morteiros e eu com algum medo andei à procura de valas ao abrigos a que estava habituado no outro quartel, tendo por isso ouvido uma piada de um oficial que não era propriamente um louvor.
Gostaria de me libertar um pouco deste nevoeiro que cobre o meu passado na Guiné eis a razão que me leva a escrever a todos os que conviveram comigo ou outros porque a todos devo uma palavra de solidariedade, de amizade, enfim de boa camaradagem.
Só agora me apercebo, porque eu andava longe da internet, do imenso e útil trabalho desenvolvido pelo nosso camarada Carlos Vinhal, Luís Graça e outros bloguistas. Para eles o meu reconhecimento e o meu louvor.
Passem bem.
Um abraço a todos
Francisco Batista
2. Comentário de CV:
Caro camarada Francisco Batista
Muito obrigado pelo seu contacto.
Se bem me lembro, foi Comandante do 4.º Pelotão em substituição do Alf Mil José Manuel C.C. Meneres que por sua vez tinha ido substituir na CART o malogrado Alferes Couto ferido mortalmente por uma mina antipessoal IN, em Outubro de 1970.
Da História da Unidade (CART 2732) na secção de recompletamentos, em Setembro de 1971, consta:
"Sr. Alf. Mil. n.º 11700368 - Francisco Maria Magalhães Baptista, destina-se a substituir o Sr. Alf. Mil. José Manuel C.C. Meneres, transferido para o Comando-Chefe".
Não tendo estado muito tempo connosco, passou por momentos bem difíceis, como todos sabemos.
Se quiser deixar aqui algumas das suas memórias, enquanto operacional da CART 2732, registá-las-emos com agrado.
Fica desde já convidado a aderir à tertúlia deste Blogue, bastando para tal que nos envie uma foto actual e outra do tempo de Guiné, nos diga com mais pormenor quando foi e quando regressou daquele TO, as unidades que integrou e os locais onde desenvolveu a sua actividade operacional.
Pode depois, se tiver algumas memórias daquele tempo, fazê-las chegar ao Blogue para publicação, acompanhadas ou não de fotos que ainda guarde.
Para satisfazer a sua curiosidade, publico duas fotos com malta de quem talvez ainda se lembre.
Fica aqui um abraço
Carlos Vinhal
Na foto, da esquerda para a direita: Fur Mil Fonseca (4.º Pelotão), Fur Mil Vinhal (3.º Pelotão), 1.º Cabo João Carlos (impedido na messe dos oficiais) e Fur Mil Sousa (4.º Pelotão)
Foto: Carlos Vinhal
Na foto, a partir da esquerda: Alf Mil Rodrigues, Fur Mil Mendonça, Alf Mil Casal, Fur Mil Enf.º Marques, Fur Mil Correia e Fur Mil Fonseca
Foto: José Manuel Mendonça
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 Guiné 63/74 - P11793: O Nosso Livro de Visitas (166): António Madeira, ex-militar do BCAÇ 2912, trazido até nós pelo nosso camarada Juvenal Amado
Tendo ido para a Guiné em rendição individual, já em final de comissão fui recambiado para a CART 2732, em Mansabá.
Recordo que no geral todos os camaradas, graduados ou não, eram simpáticos e educados, embora eu já estivesse um pouco cacimbado ou "apanhado pelo clima" como se dizia na Guiné, mas hoje faço um esforço tremendo para os recordar e recordo muito poucos. Parece que também eu passei o rio do esquecimento.
Lembro-me de encontrar no bar o major Gaspar, comandante do COP, bom conversador e bom homem. Bebia mais whisky do que eu. Li que já morreu há anos. Paz à sua alma.
Recordo o furriel enfermeiro que tinha um feitio folgazão, não recordo o nome, sei que era de Braga, e um dia dos últimos passados em Mansabá, lhe roubei uma garrafa de whisky e o convidei para ajudar a bebe-la, não gostou.
Recordo uma emboscada que um pelotão nosso, reforçado por uma secção do meu pelotão, sofreu entre o quartel em Mansoa, em que tivemos feridos com bastante gravidade, entre eles um cabo do meu pelotão que mesmo bastante ferido estava furioso por não ter dado uma grande sova aos "outros".
Houve também uma tarde em que o quartel sofreu uma flagelação de morteiros e eu com algum medo andei à procura de valas ao abrigos a que estava habituado no outro quartel, tendo por isso ouvido uma piada de um oficial que não era propriamente um louvor.
Gostaria de me libertar um pouco deste nevoeiro que cobre o meu passado na Guiné eis a razão que me leva a escrever a todos os que conviveram comigo ou outros porque a todos devo uma palavra de solidariedade, de amizade, enfim de boa camaradagem.
Só agora me apercebo, porque eu andava longe da internet, do imenso e útil trabalho desenvolvido pelo nosso camarada Carlos Vinhal, Luís Graça e outros bloguistas. Para eles o meu reconhecimento e o meu louvor.
Passem bem.
Um abraço a todos
Francisco Batista
2. Comentário de CV:
Caro camarada Francisco Batista
Muito obrigado pelo seu contacto.
Se bem me lembro, foi Comandante do 4.º Pelotão em substituição do Alf Mil José Manuel C.C. Meneres que por sua vez tinha ido substituir na CART o malogrado Alferes Couto ferido mortalmente por uma mina antipessoal IN, em Outubro de 1970.
Da História da Unidade (CART 2732) na secção de recompletamentos, em Setembro de 1971, consta:
"Sr. Alf. Mil. n.º 11700368 - Francisco Maria Magalhães Baptista, destina-se a substituir o Sr. Alf. Mil. José Manuel C.C. Meneres, transferido para o Comando-Chefe".
Não tendo estado muito tempo connosco, passou por momentos bem difíceis, como todos sabemos.
Se quiser deixar aqui algumas das suas memórias, enquanto operacional da CART 2732, registá-las-emos com agrado.
Fica desde já convidado a aderir à tertúlia deste Blogue, bastando para tal que nos envie uma foto actual e outra do tempo de Guiné, nos diga com mais pormenor quando foi e quando regressou daquele TO, as unidades que integrou e os locais onde desenvolveu a sua actividade operacional.
Pode depois, se tiver algumas memórias daquele tempo, fazê-las chegar ao Blogue para publicação, acompanhadas ou não de fotos que ainda guarde.
Para satisfazer a sua curiosidade, publico duas fotos com malta de quem talvez ainda se lembre.
Fica aqui um abraço
Carlos Vinhal
Na foto, da esquerda para a direita: Fur Mil Fonseca (4.º Pelotão), Fur Mil Vinhal (3.º Pelotão), 1.º Cabo João Carlos (impedido na messe dos oficiais) e Fur Mil Sousa (4.º Pelotão)
Foto: Carlos Vinhal
Na foto, a partir da esquerda: Alf Mil Rodrigues, Fur Mil Mendonça, Alf Mil Casal, Fur Mil Enf.º Marques, Fur Mil Correia e Fur Mil Fonseca
Foto: José Manuel Mendonça
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 Guiné 63/74 - P11793: O Nosso Livro de Visitas (166): António Madeira, ex-militar do BCAÇ 2912, trazido até nós pelo nosso camarada Juvenal Amado
Guiné 63/74 - P11872: Notas de leitura (505): "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Abril de 2013:
Queridos amigos,
A prosa de José Pais é para não esquecer, há que a registar e fazer chegar ao maior número possível de combatentes. É uma das grandes pérolas que encontrei em edições de autor.
Peço a quem tem um exemplar de “Histórias de Guerra: Índia, Angola e Guiné”, de José Pais, Prefácio, 2003, que tenha a bondade de me emprestar. A editora já faliu e o livro está esgotado.
Talvez se pudesse juntar tudo e a família autorizar uma edição, o que ele escreve é uma mistura inacreditável do varonil e do sentimental, trata o pungente e a grandeza militar com sábias frases curtas, vê-se bem quando está a sentir as suas narrativas.
Um abraço do
Mário
“Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais (2)
Beja Santos
O capitão José Custódio Pais ia na sua quarta comissão, foi enviado para a Guiné, primeiro foi colocado em Bissau, não gostou da papelada e ofereceu-se para o mato, o comandante-chefe escolheu-o para comandar a CCAÇ 14, em Farim. É por isso que as recordações que ele passou a escrito e constam em “Coisas de África e a Senhora da Veiga” estão centradas neste período. José Pais domina a arte do conto, ciranda em torno de uma questão nuclear, é de uma controlada secura nas descrições, não abdica da sinceridade, por isso a sua prosa é admirável, merece lugar cimeiro na literatura da guerra.
Já se falou das paixões da Xuxa pelo soldado Marquito, como tudo acabou em bem e deu o pontapé de saída para mais 27 casamentos, tudo em prestações suaves. A história seguinte intitula-se “Cherno Sissé”, um malogrado combatente cujas agruras não acabaram em Portugal. Numa operação bem-sucedida em que se capturou inúmero material, Cherno tropeçou numa armadilha acoplada a uma mina antipessoal e ficou esfacelado. Salvou-se por milagre mas ficou sem uma perna e um olho e com um braço retorcido. Ficou em Lisboa, deram-lhe um pardieiro no bairro da lata da Cruz Vermelha. Cherno começou a chamar os filhos, sucederam-se as desgraças. Ainda chegou a ir à Gâmbia visitar a família, regressou com uma filha. Um dia pediram a nosso capitão para ser sua testemunha abonatória, fora assaltado em casa, em pleno dia, foi ao quarto buscar a espingarda e abateu um dos gatunos. Ia sendo morto pela populaça, com um varão de ferro vazaram-lhe o olho que lhe restava. “Lá fui à Boa Hora e lá tentei explicar ao meritíssimo juiz o que é ter servido o Exército Português 27 anos, o que é ter sido combatente operacional durante 9 anos seguidos, o que é ser ex-combatente desprezado e o que representa para um homem destes a perda da dignidade pessoal, face à vida”. O meritíssimo aplicou-lhe três anos e meio na prisão de Caxias. “Cherno Sissé, primeiro sargento do Exército Português na reforma, duas cruzes de guerra, duas vezes promovido por distinção, medalha da Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito com Palma, passados dois anos de cadeia saiu em liberdade condicional. Voltou para casa de onde agora quase nunca sai. Comprou uma pistola que mantém carregada debaixo do travesseiro. A casa de Cherno Sissé continua a ser porto de abrigo dos fugidos da Guiné e dos que têm fome. Lá vão pedir conselho ao Homem Grande da Catorze de Farim que a Pátria Portuguesa usou e deitou fora”.
Segue-se a história de Seidi Sanhá, a viúva de um fuzileiro. Seidi foi casada com um alferes comando do Batalhão de Comandos Africanos, João Bacar Sanhá. Depois do 25 de Abril deram-lhe um mês de licença, trinta dias depois apresentou-se garbosamente fardado no seu camuflado justo, levaram-lhe para o clube militar de Santa Luzia, encostaram-no ao paredão da piscina vazia com mais 11 camaradas. Apavorada, a viúva fugiu com os filhos, abalou para Dakar. “É mulher-a-dias em Lisboa há 12 anos, tantos quanto dura o seu fadário. Já bateu todas as portas, a todos os ministérios. Como tem o 5º ano, já fez dezenas de requerimentos (…) Está cansada, muito cansada, e quer regressar para junto dos filhos, já homens e sem emprego que ninguém dá trabalho a filhos de um porco fascista do exército colonial, mas não tem dinheiro para o avião. Seidi Sanhá é a vergonha viva de Portugal desavergonhado e indigno que gasta milhões com a Bósnia e o Kosovo e que despreza quem o serviu até à morte”.
O derradeiro conto é autobiográfico “Como tudo começou e acabou”. Fala da sua vocação, recorda a sua mãe extremosa e partiu para a Índia, como alferes. Anos volvidos, com trabalhos e fadigas passados, arribou à Guiné, deram-lhe papelada a rodos, montou uma logística para evitar roubos no cais do Pidjiquiti. Fartou-se e pediu para ir para o mato. Disseram-lhe que a companhia tinha bom pessoal, estava muito desfalcada e o capitão anterior não tinha arte para o ofício. Verificou que o desconforto dos seus subordinados era degradante:
“– Quem é o mais antigo? – Perguntou o capitão.
– Sou eu – Disse um deles.
– Tens oito dias para limpar e caiar isto tudo. Agarras no teu grupo de combate e logo que esteja tudo pronto apresentas-te. Não ficas dispensado do serviço. Vocês sabem jogar bridge? Que não. Nenhum sabia – eu venho cá jantar convosco duas vezes por semana sem avisar. Jogar à batota é terminantemente proibido”.
Descobriu muita corrupção e mão baixa. Chamou os furriéis e distribuiu missões, bem-feitorias mais do que urgentes. Pediu à mulher do alferes da intendência que desse aulas ao pessoal, queria todos os militares a fazer exame da terceira classe. Cortou a direito quando se inteirou que havia um sargento que fazia negócio com os soldados, explorando-os, levantou-lhe um processo e puniu-o com o máximo da sua competência. Já lhe chamavam o capitão Mandinga pelo facto de todas as semanas retirar um versículo do Corão e o afixar por cima da escala de serviço, à porta da companhia.
Passados meses, caiu numa mina e só não morreu por milagre da Senhora da Veiga. “Sentiu um grande estrondo, viu tudo vermelho, subiu no ar e caiu estatelado. Viu logo que estava muito mal e que dificilmente se safaria.
Acorreu o Queta, cabo enfermeiro experiente.
– Tem cuidado que pode haver mais minas – Disse-lhe o capitão ainda consciente.
– Não faz mal nosso capitão – Disse o Queta valentemente.
– Pede sangue para Farim, ORH+. Não me dês água. Tenho a barriga furada. Vou ter muita sede. Se me dás água, matas-me.
– Fica descansado nosso capitão. Eu sabe.
Deu-lhe a morfina, fez-lhe o garrote, pôs-lhe um penso na femoral arrancada que esguichava sangue como uma torneira.
Em flashes, viu o filme da sua vida e rezou à Senhora da Veiga que o salvasse.
Veio o médico de Farim com dois colchões na camioneta onde o deitaram por causa dos solavancos e quando chegaram a Farim puseram-lhe a correr sangue dos seus soldados Mandingas, entretanto recolhido (…) Meteram-no no avião, foi operado uma hora depois. Quando despertou, passados dois dias, deram-lhe uma carta da sua Mãe, datada da véspera do acidente.
“Meu querido filho
São três da madrugada e tive um pressentimento que não estás bem.
Levantei-me e fui para a Igreja rezar à Senhora da Veiga…"
" Passadas quatro horas, caia na mina! E foi assim que tudo acabou.
A Senhora da Veiga fez o milagre”.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11860: Notas de leitura (504): "Travessia", por Costa Monteiro; "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
A prosa de José Pais é para não esquecer, há que a registar e fazer chegar ao maior número possível de combatentes. É uma das grandes pérolas que encontrei em edições de autor.
Peço a quem tem um exemplar de “Histórias de Guerra: Índia, Angola e Guiné”, de José Pais, Prefácio, 2003, que tenha a bondade de me emprestar. A editora já faliu e o livro está esgotado.
Talvez se pudesse juntar tudo e a família autorizar uma edição, o que ele escreve é uma mistura inacreditável do varonil e do sentimental, trata o pungente e a grandeza militar com sábias frases curtas, vê-se bem quando está a sentir as suas narrativas.
Um abraço do
Mário
“Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais (2)
Beja Santos
O capitão José Custódio Pais ia na sua quarta comissão, foi enviado para a Guiné, primeiro foi colocado em Bissau, não gostou da papelada e ofereceu-se para o mato, o comandante-chefe escolheu-o para comandar a CCAÇ 14, em Farim. É por isso que as recordações que ele passou a escrito e constam em “Coisas de África e a Senhora da Veiga” estão centradas neste período. José Pais domina a arte do conto, ciranda em torno de uma questão nuclear, é de uma controlada secura nas descrições, não abdica da sinceridade, por isso a sua prosa é admirável, merece lugar cimeiro na literatura da guerra.
Já se falou das paixões da Xuxa pelo soldado Marquito, como tudo acabou em bem e deu o pontapé de saída para mais 27 casamentos, tudo em prestações suaves. A história seguinte intitula-se “Cherno Sissé”, um malogrado combatente cujas agruras não acabaram em Portugal. Numa operação bem-sucedida em que se capturou inúmero material, Cherno tropeçou numa armadilha acoplada a uma mina antipessoal e ficou esfacelado. Salvou-se por milagre mas ficou sem uma perna e um olho e com um braço retorcido. Ficou em Lisboa, deram-lhe um pardieiro no bairro da lata da Cruz Vermelha. Cherno começou a chamar os filhos, sucederam-se as desgraças. Ainda chegou a ir à Gâmbia visitar a família, regressou com uma filha. Um dia pediram a nosso capitão para ser sua testemunha abonatória, fora assaltado em casa, em pleno dia, foi ao quarto buscar a espingarda e abateu um dos gatunos. Ia sendo morto pela populaça, com um varão de ferro vazaram-lhe o olho que lhe restava. “Lá fui à Boa Hora e lá tentei explicar ao meritíssimo juiz o que é ter servido o Exército Português 27 anos, o que é ter sido combatente operacional durante 9 anos seguidos, o que é ser ex-combatente desprezado e o que representa para um homem destes a perda da dignidade pessoal, face à vida”. O meritíssimo aplicou-lhe três anos e meio na prisão de Caxias. “Cherno Sissé, primeiro sargento do Exército Português na reforma, duas cruzes de guerra, duas vezes promovido por distinção, medalha da Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito com Palma, passados dois anos de cadeia saiu em liberdade condicional. Voltou para casa de onde agora quase nunca sai. Comprou uma pistola que mantém carregada debaixo do travesseiro. A casa de Cherno Sissé continua a ser porto de abrigo dos fugidos da Guiné e dos que têm fome. Lá vão pedir conselho ao Homem Grande da Catorze de Farim que a Pátria Portuguesa usou e deitou fora”.
Segue-se a história de Seidi Sanhá, a viúva de um fuzileiro. Seidi foi casada com um alferes comando do Batalhão de Comandos Africanos, João Bacar Sanhá. Depois do 25 de Abril deram-lhe um mês de licença, trinta dias depois apresentou-se garbosamente fardado no seu camuflado justo, levaram-lhe para o clube militar de Santa Luzia, encostaram-no ao paredão da piscina vazia com mais 11 camaradas. Apavorada, a viúva fugiu com os filhos, abalou para Dakar. “É mulher-a-dias em Lisboa há 12 anos, tantos quanto dura o seu fadário. Já bateu todas as portas, a todos os ministérios. Como tem o 5º ano, já fez dezenas de requerimentos (…) Está cansada, muito cansada, e quer regressar para junto dos filhos, já homens e sem emprego que ninguém dá trabalho a filhos de um porco fascista do exército colonial, mas não tem dinheiro para o avião. Seidi Sanhá é a vergonha viva de Portugal desavergonhado e indigno que gasta milhões com a Bósnia e o Kosovo e que despreza quem o serviu até à morte”.
O derradeiro conto é autobiográfico “Como tudo começou e acabou”. Fala da sua vocação, recorda a sua mãe extremosa e partiu para a Índia, como alferes. Anos volvidos, com trabalhos e fadigas passados, arribou à Guiné, deram-lhe papelada a rodos, montou uma logística para evitar roubos no cais do Pidjiquiti. Fartou-se e pediu para ir para o mato. Disseram-lhe que a companhia tinha bom pessoal, estava muito desfalcada e o capitão anterior não tinha arte para o ofício. Verificou que o desconforto dos seus subordinados era degradante:
“– Quem é o mais antigo? – Perguntou o capitão.
– Sou eu – Disse um deles.
– Tens oito dias para limpar e caiar isto tudo. Agarras no teu grupo de combate e logo que esteja tudo pronto apresentas-te. Não ficas dispensado do serviço. Vocês sabem jogar bridge? Que não. Nenhum sabia – eu venho cá jantar convosco duas vezes por semana sem avisar. Jogar à batota é terminantemente proibido”.
Descobriu muita corrupção e mão baixa. Chamou os furriéis e distribuiu missões, bem-feitorias mais do que urgentes. Pediu à mulher do alferes da intendência que desse aulas ao pessoal, queria todos os militares a fazer exame da terceira classe. Cortou a direito quando se inteirou que havia um sargento que fazia negócio com os soldados, explorando-os, levantou-lhe um processo e puniu-o com o máximo da sua competência. Já lhe chamavam o capitão Mandinga pelo facto de todas as semanas retirar um versículo do Corão e o afixar por cima da escala de serviço, à porta da companhia.
Passados meses, caiu numa mina e só não morreu por milagre da Senhora da Veiga. “Sentiu um grande estrondo, viu tudo vermelho, subiu no ar e caiu estatelado. Viu logo que estava muito mal e que dificilmente se safaria.
Acorreu o Queta, cabo enfermeiro experiente.
– Tem cuidado que pode haver mais minas – Disse-lhe o capitão ainda consciente.
– Não faz mal nosso capitão – Disse o Queta valentemente.
– Pede sangue para Farim, ORH+. Não me dês água. Tenho a barriga furada. Vou ter muita sede. Se me dás água, matas-me.
– Fica descansado nosso capitão. Eu sabe.
Deu-lhe a morfina, fez-lhe o garrote, pôs-lhe um penso na femoral arrancada que esguichava sangue como uma torneira.
Em flashes, viu o filme da sua vida e rezou à Senhora da Veiga que o salvasse.
Veio o médico de Farim com dois colchões na camioneta onde o deitaram por causa dos solavancos e quando chegaram a Farim puseram-lhe a correr sangue dos seus soldados Mandingas, entretanto recolhido (…) Meteram-no no avião, foi operado uma hora depois. Quando despertou, passados dois dias, deram-lhe uma carta da sua Mãe, datada da véspera do acidente.
“Meu querido filho
São três da madrugada e tive um pressentimento que não estás bem.
Levantei-me e fui para a Igreja rezar à Senhora da Veiga…"
" Passadas quatro horas, caia na mina! E foi assim que tudo acabou.
A Senhora da Veiga fez o milagre”.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11860: Notas de leitura (504): "Travessia", por Costa Monteiro; "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 – P11871: Visita à Guiné e Briefing ao General Chefe do Estado Maior do Exército, general Paiva Brandão (Bissau, 26 de Janeiro de 1974) (Luís Gonçalves Vaz)
1. O nosso amigo Luís Gonçalves Vaz, membro da Tabanca Grande e
filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do
CTIG - 1973/74), enviou a seguinte mensagem.
Olá Luís Graça:
Depois de muito tempo "na clandestinidade", por motivos profissionais, resolvi agora elaborar mais um pequeno artigo sobre a os últimos meses da Guerra colonial no T. O. da Guiné.
Este artigo é também uma tentativa de responder ao camarigo António Graça de Abreu, quando no post P9765: Análise da situação do inimigo - Acta da reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973, questionava num comentário: "... O Luís Gonçalves Vaz não tem mais relatórios de Janeiro, Fevereiro, Março de 1974, por exemplo? ..." .
Não descobri mais Relatórios secretos... , mas descobri a "exposição do Chefe de Estado Maior do CTIG, coronel do CEM Henrique Vaz, num Briefing ao Senhor General Chefe do Estado Maior do Exército, General Paiva Brandão, quando realizou uma visita de cinco dias á Guiné, entre 26 e 30 de Janeiro do ano de 1974.
Com os excertos desta exposição do CEM do CTIG da altura, poderão os "Camarigos do nosso Blog" realizarem as suas próprias leituras do que o CEM/CTIG pensaria (ou não), numa altura tão conturbada como aquele momento histórico. Se assim o entenderes, pois "vês nele" alguma importância para mais uma leitura dos últimos meses da Guerra colonial no T. O. da Guiné, então publica o artigo.
Forte abraço,
Luís Gonçalves Vaz
Comando
Territorial Independente da guiné
QUARTEL
GENERAL
Visita
á Guiné e Briefing ao Senhor General Chefe do Estado Maior do Exército, general
Paiva Brandão (Bissau, 26 de Janeiro de
1974)
General João Paiva Leite Brandão (CEME 1972 - 1974) e Chefe do Estado Maior do QG / CTIG, coronel Henrique Gonçalves Vaz (CEM/CTIG 1973 – 1974).
Alguns
excertos dos registos pessoais, manuscritos, do Coronel do CEM, Henrique
Manuel Gonçalves Vaz, no ano de 1974, no Teatro de Operações da Guiné
Portuguesa
Bissau, 25 de
Janeiro de 1974
“ … depois do almoço fiquei em casa para preparar a minha exposição para o briefing ao General CEME, que amanhã chegará à Guiné, e será “brifado” às 16: 00 no QG do CTIG …”
“ … depois do almoço fiquei em casa para preparar a minha exposição para o briefing ao General CEME, que amanhã chegará à Guiné, e será “brifado” às 16: 00 no QG do CTIG …”
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG)
Bissau, 26 de
Janeiro de 1974
“ … Ás 11:30 estávamos no Aeroporto à espera do N/General Paiva Brandão (CEME). Fui almoçar com o nosso general e às 15.40 indicaram-me para levá-lo ao Palácio. Ás 16.00 estávamos no Q.G. , onde foi recebido pelos 1º e 2º comandantes, com guarda de honra da PM (Polícia Militar) , banda e Bandeira, c/ Hino do Exército.
“ … Ás 11:30 estávamos no Aeroporto à espera do N/General Paiva Brandão (CEME). Fui almoçar com o nosso general e às 15.40 indicaram-me para levá-lo ao Palácio. Ás 16.00 estávamos no Q.G. , onde foi recebido pelos 1º e 2º comandantes, com guarda de honra da PM (Polícia Militar) , banda e Bandeira, c/ Hino do Exército.
Palavras
na sala de operações, pelo N/Brigadeiro comandante e palavras de agradecimento
pelo CEME. Fotografias e iniciei a minha exposição, passando a palavra ao
Ventura, correu bem.
O
nosso General fez algumas perguntas e
foi-lhe dado respostas. No final o N/Brigadeiro falou da parte financeira e
fechou o briefing o nosso General. …”
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG)
Bissau, 27 de
Janeiro de 1974
“ … 2º dia da visita do CEME , General João de Paiva Brandão á Guiné . De manhã Tite e Bolama. Às 16:00 visita ao Hospital Militar de Bissau. …”
“ … 2º dia da visita do CEME , General João de Paiva Brandão á Guiné . De manhã Tite e Bolama. Às 16:00 visita ao Hospital Militar de Bissau. …”
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG)
Bissau, 28 de
Janeiro de 1974
“ … visita a Bambadinca. Voamos num Dornier 28 dos TAGP. Regressamos depois do almoço. De tarde visitou-se o Batalhão de Engenharia e o Batalhão de Serviço de Material na B… . Em seguida Briefing no C. C. (comando chefe).
“ … visita a Bambadinca. Voamos num Dornier 28 dos TAGP. Regressamos depois do almoço. De tarde visitou-se o Batalhão de Engenharia e o Batalhão de Serviço de Material na B… . Em seguida Briefing no C. C. (comando chefe).
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG)
Bissau, 29 de
Janeiro de 1974
“ …jantar de despedida ao nosso general Paiva Brandão, no Clube Militar (piscinas). Às 13:30 visitou-se o Agrupamento de Transmissões da Guiné, e a seguir o B. de Instrução.
“ …jantar de despedida ao nosso general Paiva Brandão, no Clube Militar (piscinas). Às 13:30 visitou-se o Agrupamento de Transmissões da Guiné, e a seguir o B. de Instrução.
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG)
Bissau, 30 de
Janeiro de 1974
“ … Regressou a Lisboa, passando por Cabo Verde, o CEME. Partiu às 08:30 de hoje nos TAP. …”
“ … Regressou a Lisboa, passando por Cabo Verde, o CEME. Partiu às 08:30 de hoje nos TAP. …”
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG)
Bissau, 1 de Fevereiro
de 1974
“ … Ás 07.30 estava no Q.G. a preparar o despacho dos dois Brigadeiros. Ás 19:50, estava a sair do Q.G. . …”
“ … Ás 07.30 estava no Q.G. a preparar o despacho dos dois Brigadeiros. Ás 19:50, estava a sair do Q.G. . …”
Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG)
GUINÉ - PELUNDO/ 1973 - INSTRUÇÃO DAS MÍLICIAS
Da esquerda para a direita: Delegado do Governo no Chão Manjaco, Tenente-coronel
de Art Sousa Teles; Comandante Geral das Milícias, Major Pinheiro; CEM/CTIG, Coronel do CEM Henrique Gonçalves
Vaz, em inspecção à instrução das milícias, representando o 2º CMTE do CTIG.
Comando
Territorial Independente da guiné
QUARTEL
GENERAL
Briefing a sua
Excelência o Senhor General Chefe do Estado Maior do Exército
(Preâmbulo da exposição do Chefe de Estado
Maior do CTIG, coronel do CEM Henrique Vaz)
“
… Meu General: É com o maior prazer que em meu nome e no dos Oficiais,
Sargentos e Praças que servem neste Q.G., aqui representados pelos Chefes de
Repartição, de Serviços e comando de Armas, apresento a V. Exª. os nossos
cordiais cumprimentos com o sincero desejo de que a estadia de V. Exª. nesta Terra, decorra da forma mais
agradável e proveitosa, para que os objectivos da visita do Meu General sejam
plenamente atingidos, do que muito, estou certo, lucrarão as Tropas do Exército
que neste T.O. lutam e trabalham esforçadamente, com verdadeiro espírito de
missão.
Bem merecem
todos que, os altos poderes lhes proporcionem todo o apoio possível e V. Exª.,
depois de tudo observar, será com certeza o melhor embaixador e defensor das
suas legítimas aspirações, que são simples e se reduzem a não lhes faltarem as
armas de que carecem e as munições precisas para tirarem o melhor partido
daquelas armas. Em resumo direi que o Exército da Guiné só necessita para bem
continuar e ainda melhorar, o cumprimento da sua missão que, da Metrópole lhe
enviem as armas, as munições e os víveres, com a maior regularidade e
suficiente abundância.
Tudo
o resto: faltas de pessoal, faltas de instalações, faltas de comodidade, tudo
suportarão com o espírito de sacrifício e de cumprimento do Dever que lhe é
próprio.
Desculpar-me-á
meu General este longo preâmbulo e passarei imediatamente, a dizer a V. Exª. as
indispensáveis palavras introdutórias das exposições que lhe vão ser
apresentadas, pelo Tenente-coronel do CEM, Cunha Ventura, Chefe da 1ª
Repartição, do Major do CEM, Cabrinha, Chefe da 2ª/ 3ª Repartição, do
Tenente-coronel do CEM, Morgado, Chefe da 4ª Repartição e finalmente, do
Tenente-coronel de Infantaria Monsanto Fonseca, Chefe dos Serviços de
Transporte. …”
Coronel Henrique Vaz, em Nova Lamego com o Brigadeiro Banazol (comandante do CTIG), perante um desfile de um pelotão de Milícia, no âmbito do encerramento da instrução. Guiné - Setembro 1973
“…
A densidade populacional da Guiné é muito elevada. A população que ultrapassa o
½ milhão é muito diversificada, constituída por várias etnias de
características muito díspares, com usos e costumes e religiões diferentes. No entanto esta População está aglutinada
mas exige cuidados na ligação dos militares com os seus elementos para
respeitar os seus hábitos tradicionais, ainda muito arreigados e manter a
harmonia sempre necessária.
Assiste-se
já ao fenómeno de imigração do camponês das bolanhas do interior para os polos
de atracção, que são as cidades.
Dada
a falta de indústrias e de comércio intenso, esta população, na sua maioria,
muito jovem, procura alistar-se nas Forças Armadas, e a mais evoluída, tem
verdadeira ânsia de aprender enchendo as escolas da Província, em especial
Bissau.
Se alguém
pretender aumentar os efectivos africanos do Exército, não há quaisquer
problemas de recrutamento quantitativo. A dificuldade actual que aflige o
Comando, é precisamente o contrário!
A
percentagem de analfabetos é enorme e a maioria não fala mesmo o Português ou
têm mesmo muita dificuldade em o falar.
É
um grave problema o de dar ocupação compatível aos Guinéus que vão terminando
os seus cursos escolares e a de permitir a sobrevivência de todos aqueles que
não cabem nas fileiras do Exército ou são obrigados a abandoná-las pelos
diversos motivos conhecidos.
O Coronel Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado-Maior do CTIG (1973/74), comandando exercícios com fogos reais, no Pelundo, na zona oeste da Guiné - Foto 1.
O Coronel Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado-Maior do CTIG (1973/74), comandando exercícios com fogos reais, no Pelundo, na zona oeste da Guiné - Foto 2.
É um assunto
que transcende o C.T.I.G. mas que não posso deixar de referir ao falar da
população africana da Província.
Para finalizar
estas considerações, não posso esquecer a aceitação e a fidelidade com que os
Guinéus servem no Exército e nas Milícias, e são uns bons milhares – A prova
disso, além de todas as outras, estão a evidenciá-lo as centenas de mortos em
combate, quer de soldados africanos quer de Milícias.
Há problemas e
dificuldades com os africanos, evidentemente, mas o saldo é francamente
positivo e pena é que não saibamos – talvez melhor, não possamos aproveitar em
muito maior escala quem tão generosamente – apesar de todas as carências –
morre pelo Chão da GUINÉ. …”
Coronel do CEM Henrique Gonçalves Vaz in: Preâmbulo da exposição do Chefe de Estado Maior
do CTIG, no Briefing a sua Excelência o Senhor General Chefe do Estado Maior do
Exército
Nota do autor:
Neste excerto apenas parte da exposição do coronel Henrique Vaz é transcrita, o
preâmbulo e parte do ponto referente à População. Como tal não estão
transcritos aqui neste artigo todos os pontos da referida exposição,
nomeadamente; Missão do CTIG, Características Gerais do T.O., Condicionamentos
Gerais do T.O. e Meios ao dispor do Q.G./C.T.I.G.
Braga, 21 de Julho de 2013
Luís Gonçalves Vaz
(filho do Coronel
Henrique Gonçalves Vaz, então Chefe do Estado-Maior do CTIG)
Fotos (e legendas): © Luís Vaz Gonçalves (2013). Todos os direitos reservados.
(Selecção, itálicos e negritos: LGV)
Fotos (e legendas): © Luís Vaz Gonçalves (2013). Todos os direitos reservados.
(Selecção, itálicos e negritos: LGV)
Guiné 63/74 - P11870: O que é feitio de ti, camarada ? (2): Afonso M. F. Sousa, residente em Maceda, Ovar, ex-fur mil, trms, CART 2412 (Bigene, Binta, Guidaje, Barro, 1968/70)
Guiné > Região do Cacheu > Barro > CART 2412 (1968/70) > Localização do monumento de homenagem ao 1º Cabo Enfermeiro Silva, morto em combate em Bigene, a 21 de Setembro de 1968... O monumento, sob a sombra tutelar de um enorme mangueiro, está sinalizado na foto, com seta e legenda. O edificio que se vê à esquerda (e hoje desaparecido), era a caserna de soldados e o depósito de
géneros. Repare-se no mangueiro cuja ramagem, à esquerda, atingia toda a largura da estrada (Barro-Bigene), e à direita camuflava todo o edifício da secretaria, comando, oficiais e centro cripto.
Guiné > Região do Cacheu > Barro > CART 2412 (1968/70) > Um monumento erigido à memória do 1º Cabo Enfermeiro Silva e que foi destruído a seguir à independência .
Fotos (e legendas): © Afonso M.F. Sousa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]
1. A primeira vez que se falou dos três G - Guidaje, Guileje, Gadamael (*)- , no nosso blogue, foi há mais de 7 anos atrás, em poste (o nº 41) de 2 de julho de 2005, da autoria de Afonso M. F. Sousa , ex-fur mil trms da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70), e em que se reproduziu o texto, já sobejamente conhecido, de Serafim Lobato, jornalista, e antigo fuzileiro especial, "Estamos cercados por todos os lados", editado no Público, 28/12/2003.
O nosso camarada Afonso Sousa reside em Maceda, Ovar, e foi um dos tertulianos mais ativos no nosso blogue na I Série (**). De resto, continuou a colaborar na a II Série do nosso blogue (iniciada em 1 de junho de 2006), tendo organizado diversos dossiês. [Vd. marcador Afonso Sousa.]
Deixou, entretanto, de dar "sinais de vida", talvez por cansaço, saturação ou desinteresse, por volta de 2010. Continua, todavia, a ter o endereço de email válido, e mandar-nos as boas festas todos os anos. Espero que ele esteja bem de saúde, que ele continue a ler-nos com prazer e que se sinta com vontade para voltar a sentar-se, mais vezes, no nosso bentém, à volta do poilão da Tabanca Grande. Curiosamente, não temos nenhuma atual do Afonso Sousa, o que pode significar que ele quer manter a sua reserva de intimidade.
Com esta nova série ("O que é feito de ti, camarada ?"), queremos procurar reatar contactos com membros da nossa Tabanca Grande que nos últimos anos têm andado mais arredios do blogue. O Afonso fazia da lista dos 111 magníficos que transitaram da I para a II Série do nosso blogue. Na altura, eram mais conhecidos como "tertulianos", membros da nossa tertúlia, hoje Tabanca Grande.
Entretanto, reproduzem-se a seguir excertos de alguns postes que o camarada Afonso M.F. Sousa [, ou Afonso Sousa,] publicou na I Série.
O nosso camarada Afonso Sousa reside em Maceda, Ovar, e foi um dos tertulianos mais ativos no nosso blogue na I Série (**). De resto, continuou a colaborar na a II Série do nosso blogue (iniciada em 1 de junho de 2006), tendo organizado diversos dossiês. [Vd. marcador Afonso Sousa.]
Deixou, entretanto, de dar "sinais de vida", talvez por cansaço, saturação ou desinteresse, por volta de 2010. Continua, todavia, a ter o endereço de email válido, e mandar-nos as boas festas todos os anos. Espero que ele esteja bem de saúde, que ele continue a ler-nos com prazer e que se sinta com vontade para voltar a sentar-se, mais vezes, no nosso bentém, à volta do poilão da Tabanca Grande. Curiosamente, não temos nenhuma atual do Afonso Sousa, o que pode significar que ele quer manter a sua reserva de intimidade.
Com esta nova série ("O que é feito de ti, camarada ?"), queremos procurar reatar contactos com membros da nossa Tabanca Grande que nos últimos anos têm andado mais arredios do blogue. O Afonso fazia da lista dos 111 magníficos que transitaram da I para a II Série do nosso blogue. Na altura, eram mais conhecidos como "tertulianos", membros da nossa tertúlia, hoje Tabanca Grande.
Entretanto, reproduzem-se a seguir excertos de alguns postes que o camarada Afonso M.F. Sousa [, ou Afonso Sousa,] publicou na I Série.
(i) Afonso Sousa, ex-fur mil trms, CART 2412 (1968/70)
A minha companhia fazia parte integrante do COP 3 (com sede em Bigene, onde fizemos o treino operacional entre 31/8/68 e 14/10/68; depois foi a partida para Binta e Guidage).
Entrámos em Guidage em 17/10/1968, a substituir a CART 1648. Mais tarde referirei os dados cronológicos respeitantes à minha CART 2412, que inclui também a sua permanência (até ao termo de missão) em Barro (que o sr. Coronel A. Marques Lopes bem conhece e aonde voltou em 1998).
Porque aqui se fala de COP 3, Guidage e Barro, achei interessante esta crónica, que vocês já conhecem, dos "relatórios secretos sobre a Guiné colonial".
Guidage tinha uma importância extrema tanto para nós como para o IN. Já tínhamos consciência disso quando lá entrámos. E aí está o que se veio a passar em 1973... com a ofensiva do PAIGC contra Guidage (no Norte)e Guileje e Gadamael (no Sul)... Os três G que, na opinião do historiador guineense, Leopoldo Amada, terão decidido "o final do império colonial"...
Publica-se a seguir um texto, do jornalista Serafim Lobato, em que se divulgam pela primeira vez os relatórios secretos sobre a batalha de Guileje e Gadamael, uma peça importante para a compreensão da história da guerra colonial e do seu fim (*). O texto esteve originalmente disponível no sítio do Publico.pt. Está também publicado no blogue História e Ciência > Relatórios secretos sobre a Guiné colonial. Algumas das notas, em parêntesis rectos, são da nossa responsabilidade (A.S., Afonso Sousa) [e/ou do editor].
(ii) COP 3
Um pelotão da CCAÇ 3 (onde também esteve, em 1968, o nosso camarada A. Marques Lopes) reforçou a CART 2412, quando esta se instalou em Guidage. Esse pelotão era comandado pelo Alferes Gonçalves.
Esta CART 2412 integrava-se no COP 3 (comando do Major Correia de Campos, em Bigene).
O COP 3 constituia uma quadrícula militar de vários agrupamentos a norte do rio Cacheu, entre Barro, a Oeste, e Guidage (Farim), a Nordeste. Comportava unidades do Exército e da Marinha, estas estabelecidas na base fluvial de Ganturé (Fuzileiros navais, sob o comando de Alpoim Calvão), junto ao Rio Cacheu, cujo ancoradouro dá saída para Bigene (2,8 Km, para Norte).
O COP 3 tinha por missão fundamental a eliminação ou amputação dos corredores entre a faixa fronteiriça do Senegal e as densas (e quase impenetráveis) matas do Óio, em cujo coração se situava a base do PAIGC, de Morés.
(iii) O gen Spínola que eu conheci
Caríssimo Coronel A Marques Lopes: Foi por uma lista na Net que localizei o Alferes Gonçalves. Como se referia à CCAÇ 3, contactei-o telefonicamente, para lhe perguntar se conhecia Guidage.
Surpreendentemente a resposta dele foi esta: acompanhei a vossa companhia (CART 2412) no trajecto Binta-Guidage, quando vocês se deslocaram para lá pela primeira vez. Comandava um pelotão da CCAÇ 3 que ficou em Guidage como reforço da vossa CART.
Eu (talvez pelos 37 anos que decorreram ?!) não estou a ver a cara dele, mas o facto é que ele e eu estivemos na mesma coluna, rumo a Guidage (1968). Ainda fomos surpreendidos a pouco mais do meio do trajecto, no sítio do Cufeu, por tiros sentidos na floresta de uma e da outra banda do caminho.
Ele sabe da história da perda do nosso comandante (o Capitão Miliciano A...) logo nos primeiros dias, naquela terra de fronteira com o Senegal. Logo no início aterrou lá de surpresa o Spínola. Depois da rápida formatura na exígua parada, saíram-lhe estas palavras dirigidas ao capitão: "O senhor é indigno de estar à frente destes militares...o senhor prepare-se e vai já comigo para Bissau".
Viria a ser castigado com despromoção (tenente) e eventualmente com outras consequências que não conheci. Isto resultou do envio, por um soldado, de um aerograma para o general Spónola, queixando-se que estavam a passar fome, visto que o capitão se esquecera de solicitar o reabastecimento. O que valia eram as minúsculas galinhas que comprávamos na tabanca.
Por acaso ainda me lembro que, após o destroçar, de forma menos formal o general Spínola me perguntou:
- Meu militar, precisa alguma coisa para transmissões ?
Ao que eu lhe respondi:
- Precisamos de substituir a antena, meu General.
Passados uns dias essa antena lá apareceu.
2. Comentário de L,G., datado de 13/3/2006, sobre as razões que terão levado a população de Barro (ou mais provavelmente as novas autoridades do país) a destruir, em Barro, um momento "tuga" aos seus mortos . Na altura, achávamos (e continuamos a achar) que os monumentos aos mortos (mesmo dos meus "inimigos") são sagrados e devem ser respeitados, em toda a parte e em todos os tempos (**):
Entrámos em Guidage em 17/10/1968, a substituir a CART 1648. Mais tarde referirei os dados cronológicos respeitantes à minha CART 2412, que inclui também a sua permanência (até ao termo de missão) em Barro (que o sr. Coronel A. Marques Lopes bem conhece e aonde voltou em 1998).
Porque aqui se fala de COP 3, Guidage e Barro, achei interessante esta crónica, que vocês já conhecem, dos "relatórios secretos sobre a Guiné colonial".
Guidage tinha uma importância extrema tanto para nós como para o IN. Já tínhamos consciência disso quando lá entrámos. E aí está o que se veio a passar em 1973... com a ofensiva do PAIGC contra Guidage (no Norte)e Guileje e Gadamael (no Sul)... Os três G que, na opinião do historiador guineense, Leopoldo Amada, terão decidido "o final do império colonial"...
Publica-se a seguir um texto, do jornalista Serafim Lobato, em que se divulgam pela primeira vez os relatórios secretos sobre a batalha de Guileje e Gadamael, uma peça importante para a compreensão da história da guerra colonial e do seu fim (*). O texto esteve originalmente disponível no sítio do Publico.pt. Está também publicado no blogue História e Ciência > Relatórios secretos sobre a Guiné colonial. Algumas das notas, em parêntesis rectos, são da nossa responsabilidade (A.S., Afonso Sousa) [e/ou do editor].
(ii) COP 3
Um pelotão da CCAÇ 3 (onde também esteve, em 1968, o nosso camarada A. Marques Lopes) reforçou a CART 2412, quando esta se instalou em Guidage. Esse pelotão era comandado pelo Alferes Gonçalves.
Esta CART 2412 integrava-se no COP 3 (comando do Major Correia de Campos, em Bigene).
O COP 3 constituia uma quadrícula militar de vários agrupamentos a norte do rio Cacheu, entre Barro, a Oeste, e Guidage (Farim), a Nordeste. Comportava unidades do Exército e da Marinha, estas estabelecidas na base fluvial de Ganturé (Fuzileiros navais, sob o comando de Alpoim Calvão), junto ao Rio Cacheu, cujo ancoradouro dá saída para Bigene (2,8 Km, para Norte).
O COP 3 tinha por missão fundamental a eliminação ou amputação dos corredores entre a faixa fronteiriça do Senegal e as densas (e quase impenetráveis) matas do Óio, em cujo coração se situava a base do PAIGC, de Morés.
(iii) O gen Spínola que eu conheci
Caríssimo Coronel A Marques Lopes: Foi por uma lista na Net que localizei o Alferes Gonçalves. Como se referia à CCAÇ 3, contactei-o telefonicamente, para lhe perguntar se conhecia Guidage.
Surpreendentemente a resposta dele foi esta: acompanhei a vossa companhia (CART 2412) no trajecto Binta-Guidage, quando vocês se deslocaram para lá pela primeira vez. Comandava um pelotão da CCAÇ 3 que ficou em Guidage como reforço da vossa CART.
Eu (talvez pelos 37 anos que decorreram ?!) não estou a ver a cara dele, mas o facto é que ele e eu estivemos na mesma coluna, rumo a Guidage (1968). Ainda fomos surpreendidos a pouco mais do meio do trajecto, no sítio do Cufeu, por tiros sentidos na floresta de uma e da outra banda do caminho.
Ele sabe da história da perda do nosso comandante (o Capitão Miliciano A...) logo nos primeiros dias, naquela terra de fronteira com o Senegal. Logo no início aterrou lá de surpresa o Spínola. Depois da rápida formatura na exígua parada, saíram-lhe estas palavras dirigidas ao capitão: "O senhor é indigno de estar à frente destes militares...o senhor prepare-se e vai já comigo para Bissau".
Viria a ser castigado com despromoção (tenente) e eventualmente com outras consequências que não conheci. Isto resultou do envio, por um soldado, de um aerograma para o general Spónola, queixando-se que estavam a passar fome, visto que o capitão se esquecera de solicitar o reabastecimento. O que valia eram as minúsculas galinhas que comprávamos na tabanca.
Por acaso ainda me lembro que, após o destroçar, de forma menos formal o general Spínola me perguntou:
- Meu militar, precisa alguma coisa para transmissões ?
Ao que eu lhe respondi:
- Precisamos de substituir a antena, meu General.
Passados uns dias essa antena lá apareceu.
2. Comentário de L,G., datado de 13/3/2006, sobre as razões que terão levado a população de Barro (ou mais provavelmente as novas autoridades do país) a destruir, em Barro, um momento "tuga" aos seus mortos . Na altura, achávamos (e continuamos a achar) que os monumentos aos mortos (mesmo dos meus "inimigos") são sagrados e devem ser respeitados, em toda a parte e em todos os tempos (**):
(...) " Obrigado, Afonso! Fico a conhecer o artista quando jovem... Espero, por outro lado, que o Marques Lopes, quando lá voltar [, a Barro,] dentro em breve, desvenda o mistério da destruição do vosso monumento... Simples vandalismo ? Revanchismo ? Incúria ? Estupidez ? Maldade ? Iconoclastia ? ... É sempre lamentável: são marcas da história, quer se goste ou não se goste... E que hoje podiam ter alguma mais-valia turística, museológica, cultural, para a própria Guiné-Bissau... Há tugas a fazer milhares de quilómetros só para redescobrir uma simples pedra de um monumento como este...
Creio que na Guiné ainda estão pior do que nós, quanto à(s) memória(s) do passado recente da guerra colonial (ou da guerra de libertação, como se queira)... Não há arquivos, não há escritos, tudo tem sido pilhado, destruído ou branqueado (o que às vezes ainda é bem pior)... E os que fizeram a guerra - a geração dos guerrilheiros - estão a desaparecer sem deixar testemunhos, registados em suporte de papel, digital ou áudio... Alguma coisa está a ser feita em Guileje, pela AD - Acção para o Desenvolvimento, pelo nosso amigo Pepito e pelos seus colaboradores... Nós, também, à nossa modesta escala, no nosso blogue, com o contributo de magníficos e generosos blogadores como tu e o Marques Lopes... Um grande abraço, camarada." (***).
____________
Notas do editor:
(*) Vd. I série, poste de 2 de julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael
(**) Vd. I Série, poste de 13 de março 2006 > Guiné 63/74 - DCXXV: Barro, CART 2412, 1968/70 (Afonso M.F.Sousa)
(***) Último poste da série > 23 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11140: O que é feito de ti, camarada ? (1): Jorge Canhão, Oeiras (ex-fur mil at inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74)
quinta-feira, 25 de julho de 2013
Guiné 63/74 - P11869: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (7): O meu adeus a Bula
1. Em mensagem datada de 24 de Julho de 2013, o nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) enviou-nos mais uma das suas memórias:
Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (7)
O meu adeus a Bula
A oito de agosto, deixei Bula com um nó na garganta e sem saber que não mais lá voltava.
Tinha férias marcadas para Portugal e pedi ao comandante que me permitisse ir uns dias mais cedo para Bissau, de forma a poder visitar o Daniel no Hospital Militar.
O Daniel é aquele soldado maqueiro de que vos falo no meu P9877. O tal que na estrada de S. Vicente, já próximo do Rio Cacheu, acionou uma mina anti pessoal, sofrendo a amputação do pé esquerdo.
Leiam o que escrevi, porque se não lerem jamais irão compreender a angustia daquela viagem entre Bula e Bissau.
Saímos manhã cedo. A habitual escolta, uma secção da CCAÇ 2466 e duas Panhard do EREC 2454, deixou-nos em João Landim. Há hora marcada, eu e os que comigo iam, subimos para a jangada que fazia a cambança do Rio Mansoa.
Agora que nisto falo, dou comigo a pensar, quarenta e muitos anos depois, como a primeira e a última viagem que fiz naquela jangada foram iguais em tormento, embora por razões distintas. Recordo-vos que embarquei para a Guiné no dia 6 de fevereiro de 1969. A meio da viagem, o alferes miliciano Vinagre, oficial de informações e ribatejano como eu, encontrou-me no deck do Uíge e confidenciou-me que houvera uma “grande tragédia” no leste da Guiné.
Uma jangada que fazia a travessia do Rio Corubal tinha-se voltado a meio do rio, com uma centena de homens lá em cima. Estimava-se que uns 50 homens tivessem perdido a vida. Foi assim que, em pleno mar alto, entre Lisboa e Bissau, nos chegou a notícia do desastre do Cheche.
Dez dias depois deste acidente, sofrendo com o calor e a humidade, enjoado com os cheiros que me trepavam pelas narinas, atordoado com o movimento de carros e de armas à minha volta, confundido pelas ordens gritadas por homens que me parecia terem um aspecto desvairado, estava em Safim, à beira de um Rio que me disseram chamar-se Mansoa, a entrar para uma jangada que, também me disseram, era para me levar a João Landim, margem de onde se alcançava Bula, o meu destino.
A jangada partiu e as minhas pernas tremiam, fosse pelo trepidar do ronceiro motor a gasóleo que a fazia deslizar sobre a água, fosse porque à minha cabeça só acudia o que me contaram ter sucedido no Chéché.
Naquela manhã, pisei João Landim como estando a pisar a terra da salvação.
A minha última viagem naquela jangada (eu ainda não sabia que seria a última, mas foi e trato-a assim), foi também ela feita com o coração ao pé da boca. O Daniel, o drama do Daniel, ocupava os meus piores pensamentos. Como o iria encontrar? Como reagiria ele quando me visse?
A resposta a estas perguntas está lá, na publicação que vos recomendei.
Dispenso-me de vos dizer que, após a visita ao Daniel, parti para Lisboa em férias, bem menos amargurado. Regressei à Guiné na segunda semana de Setembro. Apresentei-me nos adidos para receber ordem de marcha, e foi lá que me disseram que a companhia estava em Bissorã.
Como?!? Ninguém me explicou.
Iam providenciar-me transporte, que não me podia ausentar do quartel porque a qualquer momento podia embarcar. Apressei-me em fazer chegar uma mensagem ao Santos, o furriel miliciano vagomestre que ficara em Bissau a tratar dos assuntos da companhia, para que fosse ao meu encontro dar-me conta do que se passava.
O que se passava – disse-me ele – é que o nosso Batalhão fora rendido em Bula pelo BCAV 2868, por razões que ele desconhecia mas de forma inesperada, que a sede do batalhão passava agora a ser em Bissorã mas com a responsabilidade da mesma zona operacional, que as companhias mantinham as suas anteriores posições, salvo a CCAÇ 2466, que também deixara Bula para se instalar em Encheia.
- Ó Santos, e as minhas coisas, pá?
- Então, isso já eles levaram para lá.
- Bissorã!! – continuava eu, incrédulo, a pensar – Como é que aquilo é?
- A malta já te disse alguma coisa?
- Já pá. Falei via rádio com o Filipe. Diz que é calminho.
- Calminho? Mas Bisssorã não fica próximo do Morés?
- Pois fica, pá, mas o Filipe diz que é calminho, que é que queres?
Às cinco da tarde fui informado que, na manhã seguinte, uma viatura levar-me-ia à Base Aérea onde, num DO, seguiria para Bissorã.
Levantámos voo às oito horas. Lá em cima, ao mesmo tempo que o meu olhar, sôfrego, procurava sinais de Bula, apoderava-se de mim uma estranha nostalgia. Sim, sentira muitas vezes os testículos apertados e as calças ao fundo do cu. Mas também lá construíra sólidas amizades, passara momentos de inesquecível confraternização, ali testemunhara actos de enorme solidariedade.
Bula fora a primeira vez. A primeira vez não se esquece. Portanto, mandavam-me embora de Bula sem me deixarem despedir da malta da 2466, com quem partilhei copos, medos e cansaços, da malta das Panhard, que me “adoptou”, sem beber a última bazuca no libanês, sem gastar mais uns pesos na loja do Zé Maria.
Bula – 1969 – à esq.- o Zé Maria ao balcão e eu encoberto pelo funcionário da Casa Gouveia. À dirt. – No libanês, eu a servir os furriéis Bonito, Mateus, Sousa e Martinho.
O Zé Maria ficava mesmo no fim da Vila, já quase quando a estrada curvava à direita para Binar, ou a esquerda para estrada de S. Vicente.
O Zé Maria tinha tudo. A minha primeira ventoinha, a minha primeira máquina fotográfica, o meu primeiro álbum de fotografias, os meus primeiros isto e mais aquilo para levar de recordação aos meus, e tinha também, e quase sempre, tempo para dois dedos de conversa, daquela de aliviar a saudade.
O libanês foi onde comi as primeiras ostras da minha vida. Sacas enormes, carregadas de ostras, abertas ao calor da brasa, mergulhadas em sumo de limão com muito piri-piri. E também foi no libanês o meu primeiro chabéu.
Só não foi o último porque, ainda hoje, continuo a morrer por um chabéu. E por umas ostras.
E aquelas noites de fado, no bar do quartel ou no das Panhard? (P10354). À meia luz, como a tradição, a guitarra a trinar nas mãos do Dias, “o Guitarrinha”, e eu a cantar versos que falavam de amores, de saudades e de coisas que arrancavam lágrimas a quem ouvia em cada canto meu o canto da sua vida.
E o Xana, o Montagil, o Xico Coelho, o Vladimir, furriéis da CCAÇ 2466, que comigo já levavam amizade feita desde que, em Chaves, formámos batalhão, e que em Bula partilhámos todas as horas, as boas e as más, então não me despedia deles?
Bula – 1969 – à esq., de regresso ao quartel com o fur. mil “Montargil” – à dirt., em Ponta Alfama, descansando com o fur. mil “Xana”.
E o meu conterrâneo Moncada Cordeiro, que me recebeu em João Landim (P10354), e que me fez ganhar amizade com o Francisco Dias, com o Bernardino, hoje nosso camarada tabanqueiro, então eu não podia dar um abraço de despedida àquela gente?
Bula foi tudo isto em que não deixava de pensar. E foi o que vos tenho vindo a falar em relatos anteriores. E do que não vos falei, porque nunca encontrei a palavra certa, aquela que eu queria ter a certeza de não magoar ninguém, nem os que estão em vida, nem os que a perderam.
Foi o pior momento de toda a minha vivência na Guiné.
Era sábado, tinha acabado de almoçar com o pessoal das Panhard que me havia convidado, sentados à mesa distribuía-mos cartas para iniciar uma partida de King, quando chegou a nós o som da metralha.
- É a escolta de Có!
Fui tudo uma corrida. Arrancaram as três Panhard que estavam em prontidão na parada, o sargento Caeiro apareceu depois ao volante da GMC para onde subiram uns quantos atiradores, e eu.
Tarde de mais me lembrei que nem a bolsa de enfermagem levava. Que se lixe – pensei – se for preciso alguma coisa está lá a mala do enfermeiro deles.
E foi. Era pessoal de uma companhia já a caminhar para o fim da comissão. Regressava de uma escolta que fizera a João Landim, caminho tantas vezes percorrido e sem problemas que chegavam a facilitar, como o fizeram naquele dia em que tão pouco pediram o habitual apoio das Panhard, e logo naquela tarde calhou que o IN os esperava, emboscado, um pouco mais à frente do Placo, duas secções apanhadas em tal surpresa, que o cenário, a quem ali chegou para os apoiar, era dantesco.
As Panhard introduziram-se no mato atrás dos guerrilheiros que vieram à estrada para fazer prisoneiros ( levavam consigo três), alguns homens meio perdidos no asfalto, umas quantas G3 debaixo dos bancos dos dois Unimog da escolta, sinal de que foi tão grande a surpresa que ninguém agiu com elas, 4 feridos no chão, um morto, e quando puxei a porta entreaberta de um dos Unimog, para retirar um corpo de que apenas via as pernas e parte do tronco, percebi, confesso que horrorizado, que o corpo era apenas “aquilo”. O resto fora arrancado pela roquetada que perfurara a porta do Unimog e fora despedaçar todo o da cabine.
Procurei o enfermeiro para com ele partilhar a mala de socorro, mas não havia enfermeiro. Carregámos os feridos em cima da GMC que o Caeiro levara, e disparámos em direcção à enfermaria do quartel de Bula.
No caminho já os rádios das Panhard haviam pedido evacuações Y.
Na enfermaria, com a minha equipa, cuidámos do que havia para cuidar. Debrucei-me sobre um dos feridos, deitado numa maca ainda assente no chão e ouvi-o dizer que não sentia as pernas. Menti-lhe sem remorso:
- Tens nas pernas uns estilhaços e isso foi da injecção que te demos para não teres dores.
Arranquei um pedaço de adesivo largo, colei-o de chapa sobre a camisa camuflada, e onde sempre registava o que fora feito, para conhecimento das equipas de evacuação, limitei-me a escrever: Fractura da coluna lombar
O Dornier aterrou em Bissorã eram quase nove da manhã.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11567: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6): Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados
Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (7)
O meu adeus a Bula
A oito de agosto, deixei Bula com um nó na garganta e sem saber que não mais lá voltava.
Tinha férias marcadas para Portugal e pedi ao comandante que me permitisse ir uns dias mais cedo para Bissau, de forma a poder visitar o Daniel no Hospital Militar.
O Daniel é aquele soldado maqueiro de que vos falo no meu P9877. O tal que na estrada de S. Vicente, já próximo do Rio Cacheu, acionou uma mina anti pessoal, sofrendo a amputação do pé esquerdo.
Leiam o que escrevi, porque se não lerem jamais irão compreender a angustia daquela viagem entre Bula e Bissau.
Saímos manhã cedo. A habitual escolta, uma secção da CCAÇ 2466 e duas Panhard do EREC 2454, deixou-nos em João Landim. Há hora marcada, eu e os que comigo iam, subimos para a jangada que fazia a cambança do Rio Mansoa.
Agora que nisto falo, dou comigo a pensar, quarenta e muitos anos depois, como a primeira e a última viagem que fiz naquela jangada foram iguais em tormento, embora por razões distintas. Recordo-vos que embarquei para a Guiné no dia 6 de fevereiro de 1969. A meio da viagem, o alferes miliciano Vinagre, oficial de informações e ribatejano como eu, encontrou-me no deck do Uíge e confidenciou-me que houvera uma “grande tragédia” no leste da Guiné.
Uma jangada que fazia a travessia do Rio Corubal tinha-se voltado a meio do rio, com uma centena de homens lá em cima. Estimava-se que uns 50 homens tivessem perdido a vida. Foi assim que, em pleno mar alto, entre Lisboa e Bissau, nos chegou a notícia do desastre do Cheche.
Dez dias depois deste acidente, sofrendo com o calor e a humidade, enjoado com os cheiros que me trepavam pelas narinas, atordoado com o movimento de carros e de armas à minha volta, confundido pelas ordens gritadas por homens que me parecia terem um aspecto desvairado, estava em Safim, à beira de um Rio que me disseram chamar-se Mansoa, a entrar para uma jangada que, também me disseram, era para me levar a João Landim, margem de onde se alcançava Bula, o meu destino.
A Jangada de Bula
Foto: © Virgínio Briote (2005) – com a devida vénia ao autor.
A jangada partiu e as minhas pernas tremiam, fosse pelo trepidar do ronceiro motor a gasóleo que a fazia deslizar sobre a água, fosse porque à minha cabeça só acudia o que me contaram ter sucedido no Chéché.
Naquela manhã, pisei João Landim como estando a pisar a terra da salvação.
A minha última viagem naquela jangada (eu ainda não sabia que seria a última, mas foi e trato-a assim), foi também ela feita com o coração ao pé da boca. O Daniel, o drama do Daniel, ocupava os meus piores pensamentos. Como o iria encontrar? Como reagiria ele quando me visse?
A resposta a estas perguntas está lá, na publicação que vos recomendei.
Dispenso-me de vos dizer que, após a visita ao Daniel, parti para Lisboa em férias, bem menos amargurado. Regressei à Guiné na segunda semana de Setembro. Apresentei-me nos adidos para receber ordem de marcha, e foi lá que me disseram que a companhia estava em Bissorã.
Como?!? Ninguém me explicou.
Iam providenciar-me transporte, que não me podia ausentar do quartel porque a qualquer momento podia embarcar. Apressei-me em fazer chegar uma mensagem ao Santos, o furriel miliciano vagomestre que ficara em Bissau a tratar dos assuntos da companhia, para que fosse ao meu encontro dar-me conta do que se passava.
O que se passava – disse-me ele – é que o nosso Batalhão fora rendido em Bula pelo BCAV 2868, por razões que ele desconhecia mas de forma inesperada, que a sede do batalhão passava agora a ser em Bissorã mas com a responsabilidade da mesma zona operacional, que as companhias mantinham as suas anteriores posições, salvo a CCAÇ 2466, que também deixara Bula para se instalar em Encheia.
- Ó Santos, e as minhas coisas, pá?
- Então, isso já eles levaram para lá.
- Bissorã!! – continuava eu, incrédulo, a pensar – Como é que aquilo é?
- A malta já te disse alguma coisa?
- Já pá. Falei via rádio com o Filipe. Diz que é calminho.
- Calminho? Mas Bisssorã não fica próximo do Morés?
- Pois fica, pá, mas o Filipe diz que é calminho, que é que queres?
Às cinco da tarde fui informado que, na manhã seguinte, uma viatura levar-me-ia à Base Aérea onde, num DO, seguiria para Bissorã.
Levantámos voo às oito horas. Lá em cima, ao mesmo tempo que o meu olhar, sôfrego, procurava sinais de Bula, apoderava-se de mim uma estranha nostalgia. Sim, sentira muitas vezes os testículos apertados e as calças ao fundo do cu. Mas também lá construíra sólidas amizades, passara momentos de inesquecível confraternização, ali testemunhara actos de enorme solidariedade.
Bula fora a primeira vez. A primeira vez não se esquece. Portanto, mandavam-me embora de Bula sem me deixarem despedir da malta da 2466, com quem partilhei copos, medos e cansaços, da malta das Panhard, que me “adoptou”, sem beber a última bazuca no libanês, sem gastar mais uns pesos na loja do Zé Maria.
Bula – 1969 – à esq.- o Zé Maria ao balcão e eu encoberto pelo funcionário da Casa Gouveia. À dirt. – No libanês, eu a servir os furriéis Bonito, Mateus, Sousa e Martinho.
O Zé Maria ficava mesmo no fim da Vila, já quase quando a estrada curvava à direita para Binar, ou a esquerda para estrada de S. Vicente.
O Zé Maria tinha tudo. A minha primeira ventoinha, a minha primeira máquina fotográfica, o meu primeiro álbum de fotografias, os meus primeiros isto e mais aquilo para levar de recordação aos meus, e tinha também, e quase sempre, tempo para dois dedos de conversa, daquela de aliviar a saudade.
O libanês foi onde comi as primeiras ostras da minha vida. Sacas enormes, carregadas de ostras, abertas ao calor da brasa, mergulhadas em sumo de limão com muito piri-piri. E também foi no libanês o meu primeiro chabéu.
Só não foi o último porque, ainda hoje, continuo a morrer por um chabéu. E por umas ostras.
E aquelas noites de fado, no bar do quartel ou no das Panhard? (P10354). À meia luz, como a tradição, a guitarra a trinar nas mãos do Dias, “o Guitarrinha”, e eu a cantar versos que falavam de amores, de saudades e de coisas que arrancavam lágrimas a quem ouvia em cada canto meu o canto da sua vida.
E o Xana, o Montagil, o Xico Coelho, o Vladimir, furriéis da CCAÇ 2466, que comigo já levavam amizade feita desde que, em Chaves, formámos batalhão, e que em Bula partilhámos todas as horas, as boas e as más, então não me despedia deles?
Bula – 1969 – à esq., de regresso ao quartel com o fur. mil “Montargil” – à dirt., em Ponta Alfama, descansando com o fur. mil “Xana”.
E o meu conterrâneo Moncada Cordeiro, que me recebeu em João Landim (P10354), e que me fez ganhar amizade com o Francisco Dias, com o Bernardino, hoje nosso camarada tabanqueiro, então eu não podia dar um abraço de despedida àquela gente?
Bula foi tudo isto em que não deixava de pensar. E foi o que vos tenho vindo a falar em relatos anteriores. E do que não vos falei, porque nunca encontrei a palavra certa, aquela que eu queria ter a certeza de não magoar ninguém, nem os que estão em vida, nem os que a perderam.
Foi o pior momento de toda a minha vivência na Guiné.
Era sábado, tinha acabado de almoçar com o pessoal das Panhard que me havia convidado, sentados à mesa distribuía-mos cartas para iniciar uma partida de King, quando chegou a nós o som da metralha.
- É a escolta de Có!
Fui tudo uma corrida. Arrancaram as três Panhard que estavam em prontidão na parada, o sargento Caeiro apareceu depois ao volante da GMC para onde subiram uns quantos atiradores, e eu.
Tarde de mais me lembrei que nem a bolsa de enfermagem levava. Que se lixe – pensei – se for preciso alguma coisa está lá a mala do enfermeiro deles.
E foi. Era pessoal de uma companhia já a caminhar para o fim da comissão. Regressava de uma escolta que fizera a João Landim, caminho tantas vezes percorrido e sem problemas que chegavam a facilitar, como o fizeram naquele dia em que tão pouco pediram o habitual apoio das Panhard, e logo naquela tarde calhou que o IN os esperava, emboscado, um pouco mais à frente do Placo, duas secções apanhadas em tal surpresa, que o cenário, a quem ali chegou para os apoiar, era dantesco.
As Panhard introduziram-se no mato atrás dos guerrilheiros que vieram à estrada para fazer prisoneiros ( levavam consigo três), alguns homens meio perdidos no asfalto, umas quantas G3 debaixo dos bancos dos dois Unimog da escolta, sinal de que foi tão grande a surpresa que ninguém agiu com elas, 4 feridos no chão, um morto, e quando puxei a porta entreaberta de um dos Unimog, para retirar um corpo de que apenas via as pernas e parte do tronco, percebi, confesso que horrorizado, que o corpo era apenas “aquilo”. O resto fora arrancado pela roquetada que perfurara a porta do Unimog e fora despedaçar todo o da cabine.
Procurei o enfermeiro para com ele partilhar a mala de socorro, mas não havia enfermeiro. Carregámos os feridos em cima da GMC que o Caeiro levara, e disparámos em direcção à enfermaria do quartel de Bula.
No caminho já os rádios das Panhard haviam pedido evacuações Y.
Na enfermaria, com a minha equipa, cuidámos do que havia para cuidar. Debrucei-me sobre um dos feridos, deitado numa maca ainda assente no chão e ouvi-o dizer que não sentia as pernas. Menti-lhe sem remorso:
- Tens nas pernas uns estilhaços e isso foi da injecção que te demos para não teres dores.
Arranquei um pedaço de adesivo largo, colei-o de chapa sobre a camisa camuflada, e onde sempre registava o que fora feito, para conhecimento das equipas de evacuação, limitei-me a escrever: Fractura da coluna lombar
O Dornier aterrou em Bissorã eram quase nove da manhã.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11567: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6): Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados
Guiné 63/74 - P11868: Blogoterapia (233): A Bem da Nação!... A Medalha Comemorativa das Campanhas das Forças Armadas Portuguesas, Guiné 1968/70... (António Azevedo Rodrigues, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá, 1968/70)
Medalha [, à direita,] Comemorativa das Campanhas das Forças Armadas Portuguesas, Guiné 1968/70, que foi entregue ao António Azevedo Rodrigues, de Vila Nova de Fanalicão.
1. Mensagem do nosso camarada António Azevedo Rodrigues, ex-1º. cabo, Comando de Agrupamento 2957 (Bafatá, 1968/70), com data de 17 do corrente:
Amigos, ao fim de 3 longos anos de cartas, mails, telefonemas e mais requerimentos (*) (**), eis que o carteiro não precisou de tocar duas vezes, pois sou eu quem estou à espera que ele chegue com a missiva...
Amigos, ao fim de 3 longos anos de cartas, mails, telefonemas e mais requerimentos (*) (**), eis que o carteiro não precisou de tocar duas vezes, pois sou eu quem estou à espera que ele chegue com a missiva...
Estava a contar ter de fazer uma almoçarada para receber o tal galardão pelos serviços prestados à Nação Portuguesa, mas como um soldado não conta como um almirante nem como um mercenário, não me foi concedido ser condecorado com as honras militares, como me havia sido indicado. Teria de me deslocar a uma unidade militar o mais perto de minha residência para aí me ser entregue o reconhecimento.
Mas não, fui informado que teria de me deslocar 800 km para ir a Lisboa receber, vejam bem que tão grande medalha o Estado Português me envia!... Ora, eu recuso-me a deslocar-me a Lisboa depois de ter uma unidade militar em Braga, Póvoa de Varzim e DE ter pertencido ao D.R. Braga...
Por outras medalhas já vistas no Facebook entregues a outros combatentes, o que tenho a dizer é que o Estado Português está mesmo em decadência, estas medalhas são o espelho de quem comanda as Forças Armadas da Nação, que nada tem a ver com as de há 45 anos, sim há 45 anos estava eu a preparar as malas para seguir para a Guiné, para Bafatá... o que aconteceu a 9 Novembro 1968...
A bem da Nação... que me obrigou a perder 3 anos da minha juventude. Hoje o carteiro me entregou a medalha... mas esta não é a tal de cortiça que pensei ir receber...
António Azevedo Rodrigues
Delães - Vila Nova de Famalicão
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Notas do editor:
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 15 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11842: Blogoterapia (232): A guerra uniu-nos de uma forma única, pois a causa que nos une é só uma: é um misto de recordações, de complexidade de quem viveu os acontecimentos da guerra na primeira pessoa (Joaquim Carlos Peixoto)
(**)
Anexo - Requerimento a preencher e enviar ao Arquivo Geral do Exército (Estrada de Chelas, 1949-010 Lisboa)
EXMO SENHOR GENERAL CHEFE DO ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO
(nome)______________________________________________________, (estado civil) _____________, filho de ___________________________________ e de ________________________________________________, residente em (morada actual)__________________________________________________________ (código Postal)_________-______ (localidade)______________, nascido a (data) ______________, na freguesia de ________________, concelho de _____________________, portador do Bilhete de Identidade nº _______________, de (data de emissão) ______________ do Arquivo de Identificação de ______________, tendo cumprido serviço militar de (data de incorporação) ___________________, até (data de disponibilidade) _________________, tendo sido agraciado com a Medalha Comemorativa das Campanhas.
Consequentemente vem requerer a V. EXª que lhe seja feita entrega física da Medalha Comemorativa das Campanhas nos termos do artº 46 do Dec. Lei 316/2002 de 27 de Dezembro.
Pede deferimento(localidade), _____________ de _____________ de 2009-00-00
_________________________________(assinatura)
quarta-feira, 24 de julho de 2013
Guiné 63/74 - P11867: Filhos do vento (17): Comentário: "Não quero nada dele, [do meu pai], apenas o nome" (José Teixeira)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2005 > "Filho de branco quer conhecer o pai"...
Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados
1. Comentário do Zé Teixeira [, foto à esquerda, em Empada, 1969, no regresso de uma operação,] ao poste P11838, de 14 do corrente (*)
Luís,
Dá imenso gosto e faz vibrar a alma ouvir "Eu sou português de Guiné"; ou ter como toque do telemóvel o hino português e afirmar com convicção "eu gosto muito de ouvir o nosso hino"; ou ouvir "eu fui soldado português, eu sou português"; ou ainda, "eu gostava muito de me reencontrar com os camaradas brancos do meu pelotão de nativos, éramos uma família"; e tantas outras afirmações.
Zé Teixeira (***)
2. Comentário de L.G.:
Zé, se bem te lembras, tivemos logo em 2006, aquando da tua chegada ao blogue, I série, uma conversa sobre os "filhos do vento". Na altura, não usávamos essa expressão, da autoria do Zé Saúde. Recordo-me de um poste teu, de 16 de fevereiro de 2006 (*)... Tinha um sugestivo título: "o raio do puto era branco"... Aqui vão alguns excertos:
(...) "Reafirmo a minha admiração quando peguei no bebé e vi uma criança branca. Parece que tinha vindo da praia. Um branco escuro e muito coradinho. Ao perguntar porquê, tive como resposta um sorriso e depois a informação de que as crianças nascem brancas e rapidamente escurecem. Assim aconteceu, de facto. Conhecia a mãe, mas o pai nunca o tinha visto e até hoje ...Parece que era djila [comerciante ambulante, entre os fulas e futa-fulas].
Conheci outro caso, a Binta de Chamarra, que teve um filho de um colega meu e foi repudiada e recambiada para Aldeia Formosa (Quebo). Quando lá estive, em 2005 procurei-a, sem conseguir encontrá-la. Apareceu-me um jovem de trinta anos a dizer-se filha da Binta e de um branco, só que o outro era mais velho. Vim a saber que este era filho de uma Binta Bobo, de Mampatá, que também conheci e parece que já faleceu." (...)
Nesse mesmo poste eu comentei, a propósito desta conversa, o seguinte:
(*) vd. posye de 14 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11838: Os filhos do vento (13): Em busca do pai tuga: um reportagem, 3 vídeos, 19 histórias, 19 rostos, 19 nomes à procura do apelido paterno... Hoje no "Público", domingo, dia 14. A não perder.
(***) I Série > 16 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLV: O raio do puto era branco (Zé Teixeira)
Dá imenso gosto e faz vibrar a alma ouvir "Eu sou português de Guiné"; ou ter como toque do telemóvel o hino português e afirmar com convicção "eu gosto muito de ouvir o nosso hino"; ou ouvir "eu fui soldado português, eu sou português"; ou ainda, "eu gostava muito de me reencontrar com os camaradas brancos do meu pelotão de nativos, éramos uma família"; e tantas outras afirmações.
Até ex-combatentes (soldados) do PAIGC, falam desapaixonadamente e sem sobranceria de acontecimentos do outro lado da barreira nos ataques e emboscadas partilhadas "em demos porrada e levamos porrada"... "Guerra é guerra", como disse o Braima Camará, um dos guarda costas do Nino
É fácil, hoje, falar com os ex-soldados portugueses, sobretudo no interior do país. Falar abertamente e frente a frente sobre o que foi a guerra que tanto nos fez sofrer, e continuou a fazê-los sofrer no terreno. Os vencidos que ficaram no terreno e que por serem negros deixaram de ter a “mãe pátria” para os acolher. Torna-se agradável e afetuoso juntar ex-soldados portugueses. Falam abertamente dos tempos de “convívio” com camaradas portugueses. Falam com nostalgia e saudade mas não deixam que se ponha o seu nome na escrita porque a paz, a verdadeira paz, ainda não chegou. O estigma ainda continua e continuará
Os políticos dos dois países nada têm feito para apagar os resíduos da guerra. Sim, a guerra não acaba e nasce a paz quando as armas se calam ou se assinam os acordos de paz. A paz constrói-se no tempo curando as mazelas que ficaram e foram muitas. Ou será que nós os que a viveram, não estamos ainda a senti-la no espírito e na carne?!
Basta pensar no abandono a que fomos votados todos nós pelo poder político desde então.
E os milhares de portugueses negros combatentes que lá ficaram esquecidos pela mãe pátria que deixou de ser "mãe pátria" para ser razão para serem votados ao desprezo e a perseguições atrozes por parte dos "vencedores". Tiveram de se calar, se esconder, de fugir da sua terra, de rasgar os documentos de que tanto se orgulhavam, das fotografias que os comprometiam. Destruir a sua história pessoal e coletiva.
["O orgulho de ser... portista!"... Foto á direita, um jovem adepto do FCP. Guiné-Bissau, 2005.
Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados]
Nós, os soldados combatentes brancos, os que foram obrigados a fazer a guerra, com as nossas visitas de saudade, com as nossas idas aos locais que nos marcaram estamos a fazer a catarse e são cada vez mais a perder o medo e ganhar coragem para o fazer.
É fácil, hoje, falar com os ex-soldados portugueses, sobretudo no interior do país. Falar abertamente e frente a frente sobre o que foi a guerra que tanto nos fez sofrer, e continuou a fazê-los sofrer no terreno. Os vencidos que ficaram no terreno e que por serem negros deixaram de ter a “mãe pátria” para os acolher. Torna-se agradável e afetuoso juntar ex-soldados portugueses. Falam abertamente dos tempos de “convívio” com camaradas portugueses. Falam com nostalgia e saudade mas não deixam que se ponha o seu nome na escrita porque a paz, a verdadeira paz, ainda não chegou. O estigma ainda continua e continuará
Os políticos dos dois países nada têm feito para apagar os resíduos da guerra. Sim, a guerra não acaba e nasce a paz quando as armas se calam ou se assinam os acordos de paz. A paz constrói-se no tempo curando as mazelas que ficaram e foram muitas. Ou será que nós os que a viveram, não estamos ainda a senti-la no espírito e na carne?!
Basta pensar no abandono a que fomos votados todos nós pelo poder político desde então.
E os milhares de portugueses negros combatentes que lá ficaram esquecidos pela mãe pátria que deixou de ser "mãe pátria" para ser razão para serem votados ao desprezo e a perseguições atrozes por parte dos "vencedores". Tiveram de se calar, se esconder, de fugir da sua terra, de rasgar os documentos de que tanto se orgulhavam, das fotografias que os comprometiam. Destruir a sua história pessoal e coletiva.
["O orgulho de ser... portista!"... Foto á direita, um jovem adepto do FCP. Guiné-Bissau, 2005.
Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados]
Nós, os soldados combatentes brancos, os que foram obrigados a fazer a guerra, com as nossas visitas de saudade, com as nossas idas aos locais que nos marcaram estamos a fazer a catarse e são cada vez mais a perder o medo e ganhar coragem para o fazer.
Por seu lado, os ex-combatentes portugueses africanos guineenses recebem-nos com alegria que vão expandido ainda a medo, mas já se houve dizer com orgulho “eu fui soldado português”. E querem logo saber onde estivemos numa tentativa de encontrar um amigo, um camarada.
Logo se ouvem as suas estórias, quantas delas nossas conhecidas, mas não o seu nome escrito, isso ainda é cedo. Com o passar do tempo foram-se apagando as barreiras que limitavam os campos de soldados ex-PAIGC e ex-tugas do exército português. As "paixões" têm vindo a desaparecer, talvez pelas desilusões que o tempo tem acarretado, mas há marcas que ficaram gravadas na carne como um BI identificativo. Marcas que deram origem a muita dor, sofrimento, fome e mortes no pós-guerra e ainda lá estão.
Os “filhos do vento” são mais uma parte da história da guerra. Não podemos tentar escamotear. São uma realidade que é preciso encarar de frente. Seria bom que os pais dos “filhos do vento” tivessem a coragem de se assumir para que se dê mais um passo na construção da paz. Creio que o tempo já curou muitas feridas, mas não deu respostas àqueles jovens. Conheci três deles nestas minhas andanças e todos eles sonham encontrar o pai. Um disse-me abertamente: ”Não quero nada dele, apenas o nome”. (**)
Logo se ouvem as suas estórias, quantas delas nossas conhecidas, mas não o seu nome escrito, isso ainda é cedo. Com o passar do tempo foram-se apagando as barreiras que limitavam os campos de soldados ex-PAIGC e ex-tugas do exército português. As "paixões" têm vindo a desaparecer, talvez pelas desilusões que o tempo tem acarretado, mas há marcas que ficaram gravadas na carne como um BI identificativo. Marcas que deram origem a muita dor, sofrimento, fome e mortes no pós-guerra e ainda lá estão.
Os “filhos do vento” são mais uma parte da história da guerra. Não podemos tentar escamotear. São uma realidade que é preciso encarar de frente. Seria bom que os pais dos “filhos do vento” tivessem a coragem de se assumir para que se dê mais um passo na construção da paz. Creio que o tempo já curou muitas feridas, mas não deu respostas àqueles jovens. Conheci três deles nestas minhas andanças e todos eles sonham encontrar o pai. Um disse-me abertamente: ”Não quero nada dele, apenas o nome”. (**)
Zé Teixeira (***)
2. Comentário de L.G.:
Zé, se bem te lembras, tivemos logo em 2006, aquando da tua chegada ao blogue, I série, uma conversa sobre os "filhos do vento". Na altura, não usávamos essa expressão, da autoria do Zé Saúde. Recordo-me de um poste teu, de 16 de fevereiro de 2006 (*)... Tinha um sugestivo título: "o raio do puto era branco"... Aqui vão alguns excertos:
(...) "Reafirmo a minha admiração quando peguei no bebé e vi uma criança branca. Parece que tinha vindo da praia. Um branco escuro e muito coradinho. Ao perguntar porquê, tive como resposta um sorriso e depois a informação de que as crianças nascem brancas e rapidamente escurecem. Assim aconteceu, de facto. Conhecia a mãe, mas o pai nunca o tinha visto e até hoje ...Parece que era djila [comerciante ambulante, entre os fulas e futa-fulas].
Conheci outro caso, a Binta de Chamarra, que teve um filho de um colega meu e foi repudiada e recambiada para Aldeia Formosa (Quebo). Quando lá estive, em 2005 procurei-a, sem conseguir encontrá-la. Apareceu-me um jovem de trinta anos a dizer-se filha da Binta e de um branco, só que o outro era mais velho. Vim a saber que este era filho de uma Binta Bobo, de Mampatá, que também conheci e parece que já faleceu." (...)
Nesse mesmo poste eu comentei, a propósito desta conversa, o seguinte:
(...) Por fim, deixa-me dizer-te, Zé, que tu levantaste aí uma questão, no mínimo delicada mas de grande interesse humano: os filhos da guerra, os frutos (proibidos) dos amores dos tugas e das fulas (as mulheres que estavam mais próximas de nós)... O que é feito deles? Como vivem? E as suas mães, como estão, como se sentem?... Talvez por pudor, não temos falado disto, mas tu, com a tua especial relação com a população de Ingoré, Buba, Quebo,Mampatá e Empatá, tu, querido fermero, mauro, sábio, médico, curandeiro..., tu conseguiste pôr o dedo na ferida... Suavemente, profissionalmente...
Já agora explica-nos como e porquê a Binta, de Chamarra, foi repudiada e expulsa da sua tabanca, por ter dado à luz um filho de um tuga... Como é que os fulas (e outras etnias) lidavam habitualmente com estes casos que, se calhar, não foram tão raros quanto isso... Basta lembrar-nos que em mais de uma década de guerra na Guiné passaram por lá largas dezenas de milhares de homens, muitos dos quais tiveram relações sexuais, consentidas, com mulheres da população local...
Não estou a faltar de prostituição nem de violação, estou a falar de relações nalguns casos até maritais, mais ou menos estáveis e até toleradas, quer pelas autoridades militares quer pelas populações locais... Houve ou não houve casos de paixão e de amor de tugas e de jovens guineenses, nomeadamente fora de Bissau?
Alguém mais quer falar sobre isto? Contar estórias que conheça? O Zé Neto já nos trouxe aqui a estória do Dauda, o Viegas, o presumível filho de um capitão de Cacine. (...).
Já agora explica-nos como e porquê a Binta, de Chamarra, foi repudiada e expulsa da sua tabanca, por ter dado à luz um filho de um tuga... Como é que os fulas (e outras etnias) lidavam habitualmente com estes casos que, se calhar, não foram tão raros quanto isso... Basta lembrar-nos que em mais de uma década de guerra na Guiné passaram por lá largas dezenas de milhares de homens, muitos dos quais tiveram relações sexuais, consentidas, com mulheres da população local...
Não estou a faltar de prostituição nem de violação, estou a falar de relações nalguns casos até maritais, mais ou menos estáveis e até toleradas, quer pelas autoridades militares quer pelas populações locais... Houve ou não houve casos de paixão e de amor de tugas e de jovens guineenses, nomeadamente fora de Bissau?
Alguém mais quer falar sobre isto? Contar estórias que conheça? O Zé Neto já nos trouxe aqui a estória do Dauda, o Viegas, o presumível filho de um capitão de Cacine. (...).
Comentando agora o teu mais recente comentário sobre os "filhos do vento", acima transcrito (*)... Escreves tu:
"Creio que o tempo já curou muitas feridas, mas não deu respostas àqueles jovens. Conheci três deles nestas minhas andanças e todos eles sonham encontrar o pai. Um disse-me abertamente: 'Não quero nada dele, apenas o nome' (...)"
Deixa-me dizer-te que o problema não é assim tão simples.como a gente pensa. A tendência é sempre, entre nós, para fazer "sociologia espontânea"... O Portugal democrático do 25 de abril e a Guiné-Bissau, revolucionária, herdeira de Cabral, orgulhosa e respeitada no seio das nações, no imediato pós-independência, poderiam ter juntado as mãos, inventariado os casos, e lançado um programa de apoio aos filhos dos tugas e às suas mães... A embaixada portuguesa em Bissau poderia ter feito esse trabalho meritório e até humanitário... Todos ganharíamos. Na altura, as memórias ainda estavam frescas. Podia-se ter encontrado o fio à meada... E sobretudo prevenido e combatidas as tendências fratricidas e totalitárias que então já se advinhavam... Mas não, chutou-se o problema para debaixo da mesa... Ou melhor: nunca se chegou a identificar e a formular o problema...
Ora, como tu sabes, tão ou mais importante do que resolver um problema, é saber identificá-lo e analísá-lo.
Não quero julgar ninuém, a nossa época e os nossos dirigentes. Constato apenas que havia outras prioridades, na agenda política de ambos os países... Em suma, não havia lugar para mais esta "pedrinha no sapato" entre os dois "países irmãos" (para usar um chavão da retórica político-ideológica da época)...
A tal pedrinha no sapato eram os tais "restos de tuga" (que miserável expressão, tão miserável como aquela que usávamos na tropa para designar os gajos baixinhos que formavam a cabeça do pelotão, os meias lecas, os meias fodas... Lembras-te? Nós, os seres humanos, em todas as latitudes e longitudes, somos preconceituosos, somos maus, somos mesquinhos...).
Hoje é muito mais difícil encontrar o fio à meada. Quantas mães não terão já morrido? E os filhos? Quantos deles não terão saído das suas tabancas de origem e montado tenda em Bissau, a cidade do cimento e alcatrão, o eldourado de todas as ilusões e frustrações, o ponto de chegada e de partida de tantos sonhos e pesadelos...
Hoje quando soam as trombetas da profunda crise de valores que assola o ocidente, cada vez menos cristão e cada vez mais individualista, egocêntrico e anómico, é muito mais difícil sensibilizar o poder político e a sociedade civil para este drama que ainda não acabou, mesmo com meio século de distância... E sobretudo é mais difícil fazer lobbying, no parlamento e noutros órgãos de soberania... Resta-nos esta série e este nosso blogue que procura dar voz a quem não a tem (ou nunca teve). Mas, infelizmente, os "filhos do vento" também não têm fácil acesso à Net...
Mesmo assim, convém recordar a política editorial do nosso blogue:
(...) "Somos sensíveis aos problemas (de saúde, de reparação legal, de reconhecimento público, de dignidade, etc.) dos nossos camaradas e amigos, incluindo os guineenses que combateram, de um lado e de outro. Mas enquanto comunidade (virtual) não temos nenhum compromisso para com esta ou aquela causa por muita justa ou legítima que ela seja. )...) Em todo o caso, a solidariedade, a amizade e a camaragem são valores que procuramos cultivar todos os dias". (...)
____________
Notas do editor:
(**) Último poste da série > 16 de julho de 2013 > Guiné 63/64 - P11846: Filhos do vento (16): Os filhos que os soldados portugueses deixaram para trás, em Fajonquito: Cadija Seidi, 39 anos, Kumba Seidi, 39 anos, Ivo da Silva Correia, 38 anos... Ainda com a esperança de um reencontro com os seus progenitores... Sonhos e desilusões (Cherno Baldé)
(***) I Série > 16 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLV: O raio do puto era branco (Zé Teixeira)
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