1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2015:
Queridos amigos,
Pela primeira e talvez última vez na minha vida, fui duas vezes numa semana aos Açores.
Aqui vos deixo o relato da ida ao Pico, com mau tempo no canal, a montanha cheia de forro, impossível de fotografar, seria blasfémia reproduzir o que vem nas brochuras turísticas. Havia ventania a rodos, o avião foi parar à Horta, seguimos para a Madalena, passeei ao fim do dia.
Na manhã seguinte, deu para ir a S. Roque, havia luz, parecia que S. Jorge queria que eu lá fosse e eu cheio de saudades pelas férias que lá passei com as minhas queridas filhas.
Espero que gostem.
Estou sempre pronto para regressar àquelas ilhas de que me sinto cativo e nativo.
Um abraço do
Mário
Mau tempo no canal: do Faial para o Pico, ali perto está S. Jorge (1)
Beja Santos
A viagem da Portela até à aproximação do Pico foi muito agradável. Depois mandaram apertar os cintos, o focinho da aeronave enterrou-se no algodão das nuvens e avisaram aterragem para breve. Mas não houve aterragem nenhuma, parecia voarmos no vento ciclónico, subíamos e descíamos em autêntica montanha russa, o comandante pôs a aeronave a circundar à volta, certamente à procura de que aqueles amaldiçoados ventos cruzados desaparecessem. Foram minutos de suspense, avistava-se o Faial e S. Jorge, mais de perto e mais de longe, até que o comandante informou que íamos aterrar na Horta. Por pura coincidência, ia na altura na página 157 da quarta edição de
Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, para mim a mais importante obra-prima da literatura portuguesa dos primeiros 50 anos do século XX, tudo isto é subjetivo, cada um responde pelos seus gostos, no que me toca não conheço melhor.
O comandante anunciou a mudança de destino e eu li no romance de Nemésio:
“E o Pico sem tirar o seu capote e capelo das tardes acinzentadas em que parece haver fios entre as nuvens e os nervos”. É um romance soberbo, tem uma organização sem igual, famílias decadentes e ascendentes, amores malogrados, o território particular do triângulo Faial-Pico-S. Jorge, a região do Canal, transformado num território universal, com chuvas diluvianas, mar encapelado, os Dulmos, os Garcias, o Barão da Urzelina, o linguajar do povo, a Lisboa do ditador Sidónio, a tia-avó Secundina e a sua língua desbragada, as conversas cochichadas, os Clark, símbolo da presença britânica desde o ciclo da laranja, inevitavelmente a pesca da baleia, mas também há a peste, a vegetação e o tempo, o mau tempo do canal… Metaforicamente, a ascensão e a queda da riqueza, a sua passagem de testemunho, o romantismo em confronto com a industrialização e a fúria demolidora dos negócios, o misticismo religioso dos açorianos e a sua curiosidade intelectual, exposta no livro como expoente do naturalismo. Margarida Dulmo acaba por se envolver na pesca à baleia, um dos momentos mais empolgantes da escritura de Nemésio, o manejo talentoso do mundo local:
“Vendo a golfada de um grande cachalote perto, o João da Cezilha meteu a antegalha, arreou a vela e o mastro, que emechava de dobradice, e empunhou o remo de esparrela. Os baleeiros encaixando os remos no fundo da canoa, armaram as seis pás. E, sem pinga de sangue, contendo o fôlego, como uma quadrilha de gangsters à beira de um golpe desesperado, aproximaram-se do Leviatã”.
Uma pausa na obra-prima de Nemésio. Já estamos no cais da Horta, vamos de embarcação para a Madalena, na ilha do Pico. Toca de juntar material sobre o que está a viver e a ler.
A ilustração desta obra-prima é de outro mestre, neste caso das artes gráficas, do desenho e da aguarela, Bernardo Marques, felizmente que não está esquecido.
É uma das últimas recordações da arte dos baleeiros, estes trabalhos em osso, há hoje artífices que os reproduzem, são obras vibrantes da caça à baleia e da vida dura do caçador.
Estamos pois no cais da Horta, ao fundo avista-se o Monte da Guia, por detrás é Espalamaca, e depois Porto Pim, vem tudo no romance de Nemésio, as águas não estão revoltas, mas já se sente a ventania, dentro em breve holandeses, britânicos e alemães vão andar com estômago revoltado, vão ceder ao enjoo, tenham paciência, são trinta minutos de tormenta.
O que nos espera é isto, a lava batida pela fúria do mar, irei adormecer à noite com estes gemidos, por vezes roncos que tudo fazem estremecer. A montanha do Pico está encastelada de nuvens, dou a palavra a Nemésio:
“O Pico estirava no negrume a sua enorme massa de lavas, que o dia costumava pintar docemente de lilás e de azul. O pico era aquilo: aquela Terra Santa aproada a Sueste e carregada de vinhas, de baldios, de barcos-de-boca-aberta, de bofage e de iscalho de baleia”. E ponto final neste extraordinário romance que se enrola na triste sina de Margarida Dulmo que juntará o seu nome aos barões da Urzelina, é a metáfora do velho nome com pergaminhos que se consorcia aos novos-ricos, tudo no triângulo do canal. E assim se chegou à Madalena, aqui nasceram o presidente Manuel Arriaga e o patriarca das Índias, D. José da Costa Nunes.
A Igreja da Madalena é singela, contempla o mar, e daqui a pouco o visitante vai ficar de boca abanda com os quilos de folha de ouro, não se brinca com o orago da terra, é tudo esplendor.
Altar-mor com a Santa a dominar o templo. É impressionante, e os azulejos também contam. E logo a seguir vem a grande surpresa para contento do viajante. Ora vejam.
Estes santos tinham também uma vertente didática, lembravam aos crentes a ascensão aos céus e a descida aos infernos. Mas o que aqui empolga o turista em viagem são as cores, os matizes e a advertência dos castigos. E fica a visita feita, a cicerone é natural para lá das Lajes do Pico, já avisou o viandante que temos pouco mais de uma hora de luz, é urgente retomar a viagem até à Criação Velha, espera ter uma agradável surpresa a dar ao seu acompanhante, quer mostrar-lhe o santuário de S. Mateus, prepare-se para o assombro.
Seguíamos viagem quando este contraste obcecou o fotógrafo amador, o contraste entre o amontado da lava e aquela luz diáfana entre nuvens em correria, dá para perceber porque existe este misticismo açoriano, esta espiritualidade sem rival, se não é assim é pelo menos a ilusão de quem capta a imagem.
Este é o moinho flamengo da Criação Velha, freguesia da Madalena. O viandante já andou a fotografar alguns currais, daqueles que fazem parte do Património da Humanidade, como decretou a UNESCO. O moinho está bem restaurado e muito bem situado, dá para imaginar o que foi a vida daqueles povoadores a conquistar uma natureza tão áspera, o terreno do Pico não tem paralelo com o das outras ilhas, aqui pontifica a lava e a montanha e florestas de faia e cedro, com muito incenso à volta. Este é o traço dominante da ilha que ganhou fama pela baleação e o seu verdelho, sempre presente à mesa dos czares, diga-se o que se disser o verdelho é o melhor aperitivo alcoólico do mundo.
A imagem é chocha, pretendia-se mostrar os currais e ao fundo a Criação Velha, ficou esborratada, havia necessidade de mais luz mas o fotógrafo amador estava tão embevecido com aquelas nuvens em viagem que pede desculpa pelo mal-entendido.
E lá fomos em correria até ao santuário, o evangelista parece caminhar para os céus, quem aqui entra vem cheio de devoção, acorrem crentes das ilhas e das Américas, é aqui que está o Senhor Bom Jesus Milagroso, abaixo da escala do Senhor Santo Cristo, mas que ninguém ponha em causa o seu poder de ajudar os aflitos.
A capela do santo não permite que seja fotografado, já para ali preside o lusco-fusco. Salva a situação a existência de pagelas, à disposição dos crentes. É esta pagela que nos salva da arrelia, pois era impensável ter vindo da Criação Velha, passando pela Candelária e chegar aqui a S. Mateus e não mostrar o seu orago tão estimado. E vem outra surpresa, nunca o viajante viu colunas tão floreadas, parece que estamos numa igreja da Toscana, o santuário excede-se em animação e cor.
Foi o que os últimos raios de sol permitiram, até se vê uma luz especial ao fundo do arco, foi a luz que atravessou a janela e que permitiu esta vivacidade, coisa rara em arcos e colunas nos Açores.
(Continua)
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Nota do editor
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