domingo, 1 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23218: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia (IV): "quer que embrulhe... ou levo-o no olho ?" (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)

1. Mais três histórias que têm por protagonista o gen António de Spínola, "duas delas presenciei-as eu, a primeira foi-me contada pela protagonista". O "compilador" foi o António Ramalho,  ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, membro da Tabanca Grande, com o nº 757. 

Como o poste P18918 foi publicado há 6 anos, no píncaro do verão, não teve, injustamente, qualquer comentários... Pode ser que agora, o nosso Ramalho (que também era da arma de cavalaria com o nosso general) tenha mais sorte


(i) Senhor Governador, quer que embrulhe ou leva-o no olho?

O nosso General teve um pequeno acidente com o seu monóculo, enviou o seu impedido a um oculista da cidade, cuja empregada era familiar do proprietário, natural duma aldeia perto da minha.

Avisado depois de reparado o monóculo, foi ele mesmo levantá-lo com aquele seu ar austero, de camuflado engomado, sempre simpático para com as populações.

No acto da entrega pergunta-lhe a empregada:

 Senhor Governador, quer que embrulhe ou leva-o no olho?
– Menina, dê cá o monóculo, no olho levam vocês!...

A rapariga desmanchou-se a rir quando nos contou!

(ii) Você é que é o nosso alferes ?

Aquando da minha estadia em Capunga, vejo chegar um jipe com o nosso general a bordo, chamei imediatamente o furriel mais velho que estava jogando à bola.

A seguir às formalidades e cumprimentos da praxe, pergunta-lhe o nosso general:

– Você é que é o nosso alferes?
– Não, não sou, meu general, o nosso alferes foi buscar água a Bula.
– Pois olhe, você tem muito mais cara de alferes do que muitos que para aí há!... Transmita-lhe que eu vim cá ver o andamento do reordenamento em Capunga.

Comentários do Alferes à visita inesperada:

- Caraças... Não me avisaram!

(iii) Que belo pão, rapaz, parabéns!

Aquando da minha estadia em Bissum, fomos visitados mais uma vez pelo nosso general tendo como companhia um governante brasileiro, na ocasião!

Depois da visita à população também decidiram visitar o aquartelamento. De passagem pela padaria o nosso cabo ofereceu-lhe pão quentinho, acabado de sair do forno.

Depois de o apreciar, manifestou-se encantado pela qualidade:

- Que belo pão, rapaz, parabéns!
- Meu general, se cá voltar amanhã ainda estará melhor!
- Adeus, rapaz, então até amanhã!

... Até hoje! (**)

António Ramalho

[Seleção / revisão de texto: LG]

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(**) Último poste da série > 30 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23214: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia (III): a "melena" do cap inf Vasco Lourenço que irritou o célebre "Coronel Onze" (Fernando Magro, ex-cap mil art, BENG 447, Bissau, 1970/72)

Guiné 61/74 - P23217: 18º aniversário do nosso blogue (9): Carvalhido da Ponte, Rádio Alto Minho, 29/7/2021: em louvor de Otelo, e em memória do Manuel Bento, ex-fur mil, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74 (Ponte Sor, 1950 - Xime, 1972)


José Luís Carvalhido da Ponte. 

Foto: Rádio AltoMinho (com a devida vénia...)


1. Por mão do Sousa de Castro (historicamente o membro nº 2 da Tabanca Grande,  editor do blogue CART 3494 & Camaradas da Guiné) chegou-nos este texto, da autoria do José Luís Carvalhido da Ponte,  ex-fur mil enf, CART 3494 (Xime e Mansambo,  1971/74)-

O Carvalhido da Ponte é também membro da nossa Tabanca Grande desde a primeira hora.  E tem colaborado na Rádio Alto Minho,  de Viana do Castelo,  com crónicas ou artigos de opinião como ele, que abaixo se reproduz com a devida vénia. Incluído na série "18º aniversário do nosso blogue", é também uma homenagem ao 25 de Abril de 1974 e aos homens que arriscaram a vida e a liberdade para nos devolver a democracia.

Opinião: Por Otelo!



"Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo 'passou-se dos carretos' e chicoteou todos os vendilhões do seu templo."

Recordar é, etimologicamente, o ato (-ar) de voltar a trazer (re-) ao coração (-cord-). Recordar é, pois, um exercício de memória. Mas este como que regurgitar emotivo é uma mentira. Na verdade, o coração atraiçoa-nos a memória. Se o que recordamos nos foi, no ato do desenlace, agradável, revivê-lo-emos com uma prazerosa e, não raro, aumentada nostalgia. Se, pelo contrário, nos magoou, remastigá-lo será sempre um momento de agigantado masoquismo. A mesma praia será morada dos deuses para quem nela pela primeira vez amou, e amaldiçoado inferno para quem no seu mar perdeu um ente amado.

Vem isto a propósito das reações contrárias que a morte de Otelo provocou em todos nós. Uns recordam, tão só, o estratega de Abril; outros aplaudem a justiça, ainda que tardia, de Cronos, que tornou possível a nossa liberdade, reconhecendo-lhe, muito embora, os momentos menos felizes, que até acabou por pagar à sociedade, na prisão.

Faço parte desta plêiade. Reconheço que Otelo foi um homem de excessos. Polémico, pois. Mas pagou, com a prisão, e foi amnistiado pelo estado português em 2004. Mas, mesmo que assim não fosse, foi o Atlas da nossa liberdade. Arriscou. Planeou. Convenceu. Liderou. Conseguiu. E fomos livres, e somos livres e tão livres que todos nós podemos, publicamente, expressar-nos e até podemos opinar sobre o comportamento do Governo e do atual Presidente da República, na gestão deste processo.




Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2012). Todos os direitos reservados.
 [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mas eu tenho inúmeras outras razões. Hoje partilho uma.

Era o dia 22 de abril de 1972. Eu não tinha ainda 22 anos e estava na Guiné-Bissau, como enfermeiro, desde o início de janeiro desse ano, integrado na Companhia de Artilharia 3494 (CART 3494).

Manhã cedo, o 4º Grupo de Combate partiu para a mata de Ponta Coli, para garantir a segurança à estrada Xime­-Bambadinca. Aguardava-os uma emboscada dos guerrilheiros do PAIGC.

Alguns de nós, que ainda dormíamos, acordamos com os estrondos das rebentações e, logo-logo o Capitão Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques, que nada me era, mandou avançar reforços em, salvo erro, duas unimog’s militares. E que o enfermeiro também teria de ir. Naturalmente.

Chegamos à ponta Coli. Que desolação. Tantos feridos! Mas grave mesmo era o Furriel Manuel Bento, meu companheiro de abrigo, natural de Ponte de Sor, onde deixara uma jovem esposa e uma bébé que nunca mais veria. Ainda gemia, sabia lá eu porquê, de tão desfeito que estava. A cabeça esventrada. Juntei-lhe os bocados e aconcheguei-os no que restava da caixa craniana. Para que nada se perdesse e regressasse ao húmus, o mais inteiro possível. 

Éramos grandes amigos e falava-me da esposa e da filha, que terá hoje 50 anos, e da esperança de as rever, logo que pudesse gozar algum tempo de férias. Não chorei. Só à tardinha, no silêncio ocasional da barraca, que ambos partilháramos, sob uma imensa mangueira. Só à tardinha, ou às vezes, nestes 50 anos, quando o coração me prega a partida e permite a memória.

Abençoado sejas,  Otelo! A tua coragem livrou da morte muitos outros jovens e deu-nos a capacidade de sonharmos para além dos impossíveis. Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo “passou-se dos carretos” e chicoteou todos os vendilhões do seu templo. Ele, que falava de paz e mandava que nos amássemos uns aos outros, não quis pactuar com os que prostituíam os seus espaços sagrados. Disse que um dia voltaria para nos resgatar. Espero que demore um pouco mais a vir, não vão os doutores da lei da nossa modernidade mandar que o prendam, porque um dia foi violento.

Como me magoou a fraqueza titubeante dos nossos governantes que não souberam dar-te as honras devidas, no momento da tua última aventura.


Meadela, 28 de julho de 2021
José Luís Carvalhido da Ponte

Rádio Alto Minho (com a devida vénia)

[Fixação / revisão de texto / negritos e realce a amarelo: LG]

 
2. Nota biográfica, da autoria do Sousa de Castro, sobre o José Luís Carvalhido da Ponte:

(i) ex-fur mil enf, Cart 3494/BART 3873, sediada no Xime e mais tarde em Mansambo (Guiné, dezembro 1971 a abril 1974);

(ii) foi professor e diretor da Escola Secundária de Monserrate, Viana do Castelo;

(iii) tem vários trabalhos literários publicados:


 (iv) membro da Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau e contando com o apoio do Rotary Clube de Viana do Castelo, é responsável pelo trabalho desenvolvido no Cacheu, cidade geminada com Viana do Castelo: muito dedicado à causa humanitária na Guiné-Bissau, para onde se desloca regularmente, tem procurado contribuir para o bem-estar daquele povo, nomeadamente na área da saúde.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23216: Parabéns a você (2059): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23210: Parabéns a você (2058): Giselda Pessoa, ex-Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1972/74)

sábado, 30 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23215: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (21): Notícias de Mansabá

 


Guiné-Bissau > Região do Oio > 28 de abril de 2022 > "Estrada que liga Mansabá e Bafata, por onde muitos passaram,  muito bonita e reparada... É  a melhor estrada para se chegar a Bafatá".


Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansabá > 28 de abril de 2022 > Praça Central (1)


Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansabá > 28 de abril de 2022 > Praça Central (2)



Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansabá > 28 de abril de 2022 > Praça Central (3)


Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansabá > 28 de abril de 2022 > Praça Central (3): duas pachorrentas aves, um jagudí, talvez juvenil   e uma peralta, um flamingo pequeno. (Convida-se o leitor a identificar as aves, de acordo com o Guia das  Aves Comuns da Guiné-Bissau, aqui disponível em pdf. )... Mas, vendo melhor, parecem ser peças escultóricas, decorativs, em madeira, barrou ou folha de Flandres: o flamingo, por exemplo, já tem cabeça!... (LG)


Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansabá > 28 de abril de 2022 > "Centro de saúde: viemos reparar o abastecimento de água"


Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansabá > 28 de abril de 2022 >  "A festa da água na tabanca de Cussarabá"

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Fotos, legendadas, que o nosso colaborador permanente (para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau), Patrício Ribeiro, nos mandou há dois dias.  

Tem estado em Bafatá, e a sua empresa, a Impar Lda, está a fazer trabalhos de manutenção no interior da Guiné-Bissau. Desta vez publicamos fotos de Mansabá,

De acordo com a página oficial da empresa, com sede em Bissau, a Impar Lda presta serviçoa na área da energia solar, água, comunicacão e geradores

(...) "Desde 1991 que trabalhamos na Guiné Bissau no fornecimento de serviços essenciais de energia, água e comunicações. Instalamos sistemas de abastecimento de energia solar em todo o país incluindo ilhas. Temos centenas de instalações de bombas solares de água. Vendemos e damos manutenção a geradores a diesel e instalamos rádios base VHF e HF em toda a Guiné, instalamos também GPS marítimos e Radares." (...) 

Ver aqui a fotogaleria com alguns dos muitos projetos realizados.

O nosso Patrício Ribeiro, "retornado de Angola", crescido no Huambo (antiga Nova Lisboa), está na Guiné-Bissau desde 1984. O antigo fuzileiro integra, por sua sua vez, a nossa Tabanca Grande, desde 2006. 
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Nota do editor:

Último poste da série > 27 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23205: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (20): De Bolama até Bissau, de canoa, na véspera do 25 de Abril... que aqui ninguém sabe o que é ou o que foi...

Guiné 61/74 - P23214: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia (III): a "melena" do cap inf Vasco Lourenço que irritou o célebre "Coronel Onze" (Fernando Magro, ex-cap mil art, BENG 447, Bissau, 1970/72)

 


Capa do livro do Fernando Magro - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005, 86 pp.  Na foto, o filho, Fernando Manuel, e o seu cão, na casa em que a família vivia em Bissau. 



Fernando Pinto Valente (Magro), ontem e hoje


1. Mais uma história da Spinolândia (*): desta vez não envolve diretamente a figura do gen Spínola,  mas sim um dos seus próximos colaboradores, o "Coronel Onze",  e um futuro capitão de Abril, o capitão inf Vasco Lourenço, cmdt da
CCAÇ 2549/BCAÇ 2879 (Cuntima e Farim, 1969/71).

Foi já aqui oportunamente contada  pelo Fernando Valente (Magro) (**) que, aos 33 anos, casado e pai de um filho menor, foi mobilizado para o CTIG,  como cap mil art,  BENG 447,Bissau, 1970/72, e que publicou em 2005 um livrinho com as suas memórias da Guiné, de 86 pp.  (reproduzidas no nosso blogue, na série "Memórias da Guiné,  por Fernando Valente (Magro)".

Há dias recebi, pelo correio, uma cópia do livro, via Hélder Sousa (que faz parte parte dos corpos sociais da ANET - Associação Nacional dos Engenheiros Técnicos, tal como o Fernando Magro; aliás, a edição do livro teve o apoio da ANET, e havia por lá sobras do livrinho: obrigado, Hélder, pela encomendinha que chegou a boas mãos pelo correio).



Capa do livro de Vasco Lourenço do Interior da Revolução, entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa, Âncora, 2009, 608 pp.  

"Vasco Correia Lourenço nasceu em 19 de junho de 1942, em Lousa, Castelo Branco. Integrando desde o início o Movimento dos Capitães, coordenou a organização da sua primeira reunião em 9 de setembro de 1973, vindo a pertencer à sua Comissão Coordenadora e à sua Direção. Único oficial que pertenceu sempre aos órgãos de cúpula do Movimento dos Capitães (CC e Dir.) e do MFA (CCPMFA, CE, C20 e CR). Das várias condecorações que possui, destacam-se a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Presidente da Direção da Associação 25 de Abril, desde a sua fundação em outubro de 1982. Coronel na Reforma". Fonte: Wook


A melena, pouco "regulamentar", 
do cap inf Vasco Lourenço 


(...) Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné. Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão. Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo. Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

 (...) Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre. Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção. Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite. Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia. Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço. Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
– Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
– Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde. Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha
 curiosidade.

Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau. O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
– O Senhor Capitão é miliciano?
– Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
– Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.

Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze. 
(...)

Fonte: Excertos de Fernando Magreo - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005,  pp. 37

[Fixação / revisão de texto / título do poste: LG]

2. Comentário do nosso editor LG:

O nosso camarada José Câmara, em comentário ao poste P12028 (**) identificou o "Coronel Onze" como sendo o "Coronel Santos Costa". E acrescentava: "não era só austero, era desumano". Não conseguimos, no entanto,  encontrar nenhum coronel, no CTIG, com este apelido nos livros da CECA...

Será que se trataria do cor cav Fernando Rodrigues de Sousa Costa, um dos comandantes do COMBIS (Bissau), não ?!

O Carlos Pinheiro acrescentou (**): "Gostei desta memória e acima de tudo de ouvir falar do tal "coronel 11" que era mais que famoso na cidade de Bissau. A maior parte dos militares nem o chegou a conhecer, mas histórias acerca dele toda a gente conhecia."

Veja-se este episódio do "anedotário da Spinolândia" também como uma homenagem ao sentido do humor do nosso veterano Fernando Magro (um dos seis membros da família Magro que fizeram a "guerra do Ultramar") e sobretudo ao capitão de Abril , Vasco Lourenço, uma figura que, como diz o Carlos Silva (**), já pertence à história deste país, tal como o gen Spínola,  e que, como tal, merece o nosso respeito. (Felizmente ainda está vivo e vai fazer em breve 80 anos.)

Guiné 61/74 - P23213: Os nossos seres, saberes e lazeres (502): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (48): A surpresa de uma pérola tropical ali ao pé do Palácio de Belém (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
O património botânico, paisagístico e cultural de Lisboa é impressionante, logo pelos seus quatro jardins botânicos, os jardins, que vão da Alameda D. Afonso Henriques aos do Palácio Pimenta, sito no Museu da Cidade, temos as praças ajardinadas e floridas que podemos encontrar desde o Jardim Alfredo Keil, ali para a Praça da Alegria, ao Jardim da Praça do Império; e pode haver arvoredo e ajardinamentos nos miradouros, caso do Jardim do Torel ou Miradouro do Alto de Santa Catarina, e há a extensão dos parques, desde o Vale do Silêncio a Monsanto; e também não faltam quintas de recreio como a Tapada das Necessidades ou a Quinta das Conchas e dos Lílases. Fez-se uma visita breve ao Jardim Botânico Tropical que partilha uma centralidade que inclui outros importantes espaços culturais da capital, tais como a Praça do Império, o Museu Nacional dos Coches, o Centro Cultural de Belém, o Museu da Marinha, o Museu Nacional de Arqueologia, o Planetário Calouste Gulbenkian e a Igreja da Memória. Já teve como função principal o estudo e o cultivo de plantas, quer as oriundas das antigas colónias portuguesas, quer as que se destinavam ao desenvolvimento agrícola daqueles territórios. Hoje, é um lugar de desfrute, mas não se deixa de questionar se não devia ser um lugar privilegiado para a cooperação científica com essas mesmas antigas colónias portuguesas.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (48):
A surpresa de uma pérola tropical ali ao pé do Palácio de Belém

Mário Beja Santos

Recorde-se de que estamos em pleno Jardim Botânico Tropical, já foi Jardim Colonial e não se pode perder a referência de Jardim-Museu Agrícola Tropical. Entra-se e tem se uma alameda principal ladeada por grandes palmeiras. Para quem entra desprevenido, é um percurso aberto à surpresa: um lago com uma ilha, há canais de água, árvores de todos os continentes, um jardim de buxo e até um jardim oriental. O imaginário até fervilha, a atmosfera é particular, dá para contemplar, é permanente o jogo de luz e sombras. Já se contou aqui a sua história, que foi criado em 1906, esteve destinado ao ensino agronómico colonial tem passado por várias tutelas, presentemente está ligado ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência. Faz parte dos Jardins Botânicos existentes em Lisboa, temos o da Ajuda, o vizinho do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, portanto na antiga Escola Politécnica, este Jardim Botânico Tropical e o Parque Botânico da Tapada da Ajuda, que já foi Tapada Real de Alcântara. O visitante tem aqui ao seu dispor centenas de espécies de plantas em jardim e nas estufas, a maioria de origem tropical e subtropical. É uma autêntica curiosidade não perder, o Jardim Oriental, que se assinala por o seu portal na entrada em forma de arco (réplica da entrada do pagode mais antigo de Macau, foi construída para ocasião da Exposição do Mundo Português). O cimo de todo este cenário botânico é enquadrado pela fachada do Palácio dos Condes da Calheta (séculos XVII e XVIII) e pelo seu geométrico jardim de buxo. Havia todos os sinais de obras de requalificação, não se podia entrar nesta área. Estamos agora na Rua das Palmeiras.
Estamos a ver palmeiras da Califórnia e palmeiras do México, e vamos observando de um lado e de outro o ginkgo, o pinheiro do Chile, já perto do lago, depois de passarmos pinheiros e cedros, temos a cica, originária do sul do Japão
No interior do parque há umas construções que logo nos prendem a atenção, sobretudo pela azulejaria, é claro que viemos à procura de figueiras tropicais, sicómoros, mas fomos visitar por fora um parque ajardinado, deve haver falta de dinheiro para pôr tudo isto em ordem e assegurar ao visitante o desfrute de tão belos azulejos. Ora vejam.
Um belo relevo escultórico a pedir uma urgente intervenção.
Um outro ângulo do jardim que revela a sua imensa beleza e também a necessidade de proceder a restauros.
A magnificência dos catos do Jardim Botânico Tropical.
Outro edifício a pedir intervenção.

O Jardim Oriental recria o ambiente dos jardins orientais, nele vamos encontrar o hibisco-chinês, o bambu. Data de 1949 a construção deste jardim, que se assinala com o Arco de Macau. Ocupa uma área de meio hectare, proporciona um local onde se realçam símbolos da cultura chinesa. Também tem a sua atmosfera especial, encontram-se desníveis e trilhos sinuosos, pontes curvilíneas e pequenos cursos de água. No final do século XX, quando se encerrou a Exposição Internacional de Lisboa de 1998, algumas das estruturas que pertenciam ao Pavilhão de Portugal foram aqui colocadas, como o pedestal e busto de Luís de Camões, posteriormente completado com uma réplica da Gruta dos Amores, o Pavilhão de Jardim e a vedação em ferro forjado a ladear o lago. Recorde-se que para a Exposição do Mundo Português, e além do já mencionado Arco de Macau, foram edificadas construções, umas provisórias e já demolidas e outras que ainda permanecem no Jardim, há que ser franco, carecem algumas delas de uma rápida intervenção, aqui se mostram imagens comprovativas.
O Arco de Macau

Há diversa estatuária distribuída pelo Jardim, de artistas como Giuseppe Mazzuoli, Ludovici e saída da oficina de Machado Castro, isto para já não falar dos 14 bustos que representam povos das antigas colónias portuguesas em África e na Ásia, todos eles da autoria de Manuel de Oliveira.
E aqui se dá por finda a visita a esta pérola tropical que integra uma importante coleção de plantas do maior interesse económico. O Jardim Botânico Tropical foi classificado em 2007 como Monumento Nacional. Em 2019 o Jardim foi alvo de um importante projeto de requalificação pelo atelier de arquitetura paisagista TOPIARIS.

Pormenor do Palácio dos Condes da Calheta, tendo à frente o Jardim do Buxo

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23191: Os nossos seres, saberes e lazeres (502): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (47): De Jardim Colonial a Jardim Botânico Tropical (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23212: 18º aniversário do nosso blogue (8): No tempo em que os telegramas eram de mau agoiro e as mães que os recebiam nem sempre sabiam ler... (José Teixeira)

 

Cópia do telegrama, emitido em 8 de fevereiro de 1970


1.  Nos anos 60/70, durante a guerra do ultramar / guerra colonial, as famílias dos combatentes o que mais temiam era o fatídico telegrama a anunciar a desgraça de uma morte, em combate, acidente ou doença,  ou de um desaparecimento, na sequência de uma operação, "lá longe onde o sol castiga(va) mais", a muitos milhares de quilómetros de casa...

O conteúdo do telegrama era seco, lacónico, impessoal, brutal... Como este que em tempos aqui reproduzimos:

(,,,) "Sua Excia Ministro Exército tem pesar comunicar falecimento seu filho furriel miliciano fulano ocorrido no dia tal Guiné por motivo combate defesa da Pátria Sua Excelência apresenta mais sentidas condolências, Comandante Depósito Geral de Adidos, Lisboa". (...) (*).

Os mensageiros da desgraça não tinham sido treinados para dar notícias más. Era o carteiro, da vila ou da aldeia, ou de bairro, na cidade,  conhecido de toda a gente, quem levava a casa a carta ou o aerograma do contentamento, mais frequente,  mas também o telegrama, mais raro nessa época, e que, para os pobres,  só podia ser de mau agoiro... 

Um ou outro militar, por razões práticas e sobretudo de economia de tempo mandava de vez em quando à família uma mensagem telegráfica,  tranquilizadora,  a dizer que estava tudo bem... Ou a dar os parabéns por um aniversário. Ou que tinha chegado bem mas já estava cheio de saudades.

Um amigo meu, paraquedista, que esteve no Norte e depois no Leste de Angola, quando regressava à base em Luanda, passava pela estação dos Correios,  e mandava para a família um  telegramas SDS  (ou "telegrama de saudação de texto fixo"), pré-codificado, um serviço criado em 1942 pelos CTT e depois atualizado em 1961 (**)-

Com o triunfo da Internet, o telegrama é um serviço que os Correios, em muitas partes do mundo, já não prestam ou que  tende a desaparecer.

De qualquer modo, o telegrama, no ato de receção, era sempre algo que podia desencadear ansiedade ou até medo,  pela incerteza do seu conteúdo, origem e motivo. E pior ainda quando o destinatário não sabia ler... Como é o caso desta história, de grande ternura, que aqui se (re)conta (***).



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé ( infelizmente já falecida), filha do valente alferes de 2ª linha e comandante de milícias no Quebo, preso e assassinado pelo PAIGC depois do fim da guerra


Foto (e legenda): © José Teixeira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. O autor, José Teixeira, membro da nossa Tabanca Grande, desde praticamente a primeira hora (vd. poste P 350, de 14/12/2005) (****), não precisa de apresentações, tendo sido um dos criadores da Tabanca Pequena de Matosinhos. 

O pretexto para esta reposição da estória nº 39, para além da celebração do Dia da  Mãe, em 1 de maio de 2022, é a passagem do 18º aniversário do nosso blogue (*****).


Estórias do Zé Teixeira (39) > O medo do terrífico telegrama


Naquele dia 8 de fevereiro de 1970, uma mãe esquecida do quadragésimo oitavo aniversário preparava o almoço para os três filhos. Um quarto estava ausente na Guiné. Este, tinha feito 23 anos dois dias antes.

Era comum juntar-se a família no dia oito e cantarem-se os parabéns em duplicado. Apenas se mudavam as velas no bolo que aquela mãe, analfabeta, cozinhava com todo o carinho.

Seriam umas onze da manhã, quando o carteiro bateu à porta. Trazia um pequeno papel rectangular dobrado em quatro e tinha como destinatário o nome daquela mulher.

D. Rita,  assine aqui em como recebeu.

 Mas… eu não sei assinar  –retorquiu  aquela mãe, com o coração já em sobressalto.

Uma vizinha prontificou-se a assinar,  a rogo. O carteiro foi-se embora e aquela mãe tremia de medo, com a mensagem que supunha vir dentro do malfadado papel.

 
– Ai que o meu filho morreu!   foi o seu primeiro pensamento.

Largou os chinelos. Com o papel junto ao coração,  desata a correr descalça, rua acima,  até ao emprego da filha, a cerca de dois quilómetros.

Chega ao destino esbaforida e sem forças, as lágrimas correm-lhe pela face. Pede para lhe chamarem a filha. Queria ser ela a primeira a saber da sorte do seu filho.

Ao ver a filha ao longe grita:

 Ai, Lai, que o teu irmão morreu!

–  Morreu nada, minha mãe.

– Morreu, morreu. Chegou agora o telegrama.

A filha abre o terrífico papel:

"PARABÉNS PELO SEU ANIVERSÁRIO"
. Assina: "Armanda".

– Oh minha mãe, então você não se lembra que faz hoje anos?! É um telegrama da Armanda, a namorada do seu filho, a dar-lhe os parabéns.

 É isso que diz aí?

–  É minha mãe. É o que está aqui escrito.

 
– Graças a Deus!!!

Aquela mãe, era a minha mãe... E eu dou Graças a Deus por poder contar, hoje, esta pequena, mas verdadeira história.

Zé Teixeira

 [Fixação / revisão de texto / título do poste: LG]
__________

 Notas do editor:

(*) 16 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19983: (Ex)citações (354): Como é que a máquina burocrática do exército fazia chegar, à família, a notícia funesta da morte ou desaparecimento em combate de um militar ? O caso do sold at cav nº 711/65, José Henriques Mateus, desaparecido no rio Tompar, afluente do rio Cumbjiã, no decurso da Op Pirilampo, em 10/9/1966 (Jaime Silva, seu colega de escola, no Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

(**) Vd, poste de 25 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14931: Recortes de imprensa (74): Informação Oficial, publicada no jornal "A Província de Angola", sobre o desastre do Cheche aquando da travessia do Rio Corubal em 6 de Fevereiro de 1969 (José Teixeira / José Marcelino Martins)

Guiné 61/74 - P23211: Notas de leitura (1441): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
O mínimo que se pode dizer que esta reportagem de Amílcar Cabral oferece é uma África empolgante, desde os caminhos para Tombuctu até aos aspetos míticos que a Tanzânia conserva. O repórter estudou a sério a história, a etnografia, dá-nos o colorido das paisagens, a distinção das relações humanas consoante o país, está permanentemente atento à cultura, vai saltando de lugar em lugar não esquecendo alguns onde se fala a língua portuguesa, logo Cabo Verde e depois S. Tomé, mais adiante Moçambique, cuja ilha o deslumbra. E percorre a costa oriental africana, e há trechos de fascínio cultural, vem na senda de um feitiço que o persegue por toda a itinerância, um exemplo: "Deus é vermelho. Deus é preto. É vermelho quando está mal disposto e por isso não chove e é preto nos dias de benevolência chuvosa. O vermelho é fogo, morte, renascimento. O preto é sagrado. A cor que vestem os rapazes depois de circuncisados, com a cara pintada de branco, quando passam a pertencer ao mato, à idade adulta e aprendem a desenvencilharem-se sozinhos". Uma viagem muito pessoal, cativa o leitor pela busca e pela abertura do olhar.

Um abraço do
Mário



Ali para as bandas da Guiné e um pouco por toda a África (4)

Beja Santos

“A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007, é um livro de cambanças, tudo começa na mítica Tombuctu, seguiu-se a Mauritânia, o deserto do Sara é um referencial, por diversas razões: é o maior depósito de sal do continente africano, nele se cruzam as redes comerciais entre o Mediterrâneo e a África negra, há mesmo a registar a presença portuguesa na ilha de Arguim, ao largo da Mauritânia. E depois desce-se o continente até à África Austral, o que se diz sobre Moçambique é muito importante, tal como sobre a África do Sul. Amílcar Correia preparou-se a sério para esta longa expedição. E como segue para o Quénia, é incontornável falar do clássico de Karen Blixen, África Minha: “Quando cheguei a África, não havia automóveis no país e íamos até Nairobi a cavalo ou numa carroça puxada por seis mulas. Durante toda a minha estada, Nairobi foi um lugar animado, com belos edifícios de pedra e bairros inteiros de velhas lojas, escritórios e casinhas de chapa ondulada, ao longo das ruas despovoadas e poeirentas, ladeadas por longas filas de eucaliptos”.

E descreve-nos com grande entusiasmo as ruas de Nairobi, chove a cântaros, o trânsito é infernal, os transportes públicos e privados transbordam de gente. E tece um comentário: “Para os estrangeiros de passagem, Nairobi é um prolongamento dos parques naturais do país, embora arranhe o céu aqui e ali e isso seja impossível na planície selvagem”. E mais adiante:
“Nairobi situava-se na confluência de territórios quicuios e massais e deve o seu nome a um riacho. Os primeiros foram forçados a deixar aqueles territórios, enquanto os segundos abandonaram a região após terem celebrado um acordo com os ingleses. O tribalismo não desapareceu com a independência e ainda se é primeiro quicuio ou luo e só depois queniano. Apesar do gigantismo de Nairobi e da vivência urbana que lhe é subjacente, esse confronto mantém-se vivo na própria capital.
Aquelas duas são as tribos mais numerosas do Quénia e têm barreiras históricas e linguísticas a separá-las quer no passado, quer na atualidade. Os quicuios eram conhecidos como os judeus do Quénia por estarem mais interessados na sua educação e cultura do que em ganhar a vida. Descendem dos Bantu, agricultores por excelência, que migraram para a região no século XV, vindos da costa ocidental, ao passo que os Luo descendem dos povos do Nilo, provenientes do Sudão, e são sobretudo pastores”
.

E dá-nos um apontamento sobre a presença portuguesa e depois a inglesa: “No século XV, ao ocuparem cidades da costa zanj (que significa gente negra, em persa), os portugueses iniciaram os primeiros contatos entre a Europa e a África Oriental, mas foram os britânicos quem deu passos mais sérios para desbravar o seu interior, mais populoso após a abertura da linha do caminho-de-ferro entre Mombaça e Nairobi”. Segue-se um relato da exploração do continente, fala-se de Livingstone, John Speke, Samuel Backer, Henry Stanley, de gente de nomeada que aqui veio aos safaris. O repórter chega agora a Dar es Salam, a sua atenção é atraída por uma questão de verificação das notas:
“São poucas as lojas abertas num dia de fim de semana, tudo o que eu agora mais desejava era um punhado razoável de xelins. O indiano atrás do vidro colocou as notas na máquina para as contar, retirou algumas delas como quem retira a parte apodrecida de um fruto e avançou uma explicação plausível.
- Não há máquinas sofisticadas na Tanzânia para separar as notas boas das notas falsas. É por isso que aqui só se aceitam as notas de dólares de cabeça grande, porque sabemos que são as mais difíceis de falsificar”
.

E fala-se deste país composto pelo arquipélago de Zanzibar e o território continental, o antigo Tanganhica. A viagem entre as duas metades faz-se de barco, a procura turística é enorme, Stone Town, a cidade de pedra da ilha de Zanzibar, é um mito:
“As estreitas ruas da cidade escondem mistérios seculares por trás das portas de madeira trabalhada com obstinação e apreço. As portas tinham, e ainda têm, uma importância crucial na vida dos habitantes da ilha. Muitas vezes, a construção das casas começava, e começa ainda, justamente pela porta, assim transformada na peça mais importante de uma habitação, que obedece aos cânones árabes do respeito pela privacidade. Do telhado dos edifícios mais elevados, avista-se a cidade na sua plenitude, com as suas igrejas cristãs, os tempos hindus, os minaretes das mesquitas, os bairros recentes construídos em altura na periferia da cidade, os palácios e as suas varandas rendilhadas, os telhados de zinco verde, os dhows (veleiros de velas latinas) no mar ou as ruínas dos antigos edifícios públicos, atuais moradas de pescadores”.

Reflete-se sobre a partilha de África como foi desenhada na Conferência de Berlim, em 1884-1885, e as suas consequências, mas a verdade é que há realidades históricas e culturais que ultrapassam os constrangimentos artificiais de qualquer mapa. Há uma língua que é um país, o swahili, país de marinheiros, uma miscigenação de tribos Bantus com imigrantes persas e árabes. “Esta nação linguística, que, à partida, pode parecer estranha, não tem capital sequer. Este país foi criado e unificado em torno de um idioma comum, embora com algumas variações, à semelhança de tantas outras línguas. O país swahili começa em Mogadíscio, desde aqui e ali pela costa queniana, prolonga-se pela Tanzânia, atinge as suas fronteiras em Moçambique e o seu idioma é falado por 30 milhões de pessoas”.

E o autor prodigaliza-se em pormenores sobre esta fascinante costa oriental africana onde houve comerciantes persas, onde se vendia o marfim e o ouro, os cornos de rinoceronte e os dentes de hipopótamo. A chegada dos portugueses trouxe mudanças. Zanzibar foi dominado pelas tropas portuguesas em 1505. Vasco da Gama estabeleceu uma presença portuguesa em Malindi. No século XVIII, os portugueses retiraram, seguiu-se o sultanato de Omã. O autor continua deliciado com a história atribulada do Tanganhica e da importância de Zanzibar, vem mais atrás ao mercado de escravos, toda a região era um imenso entreposto. Mas o autor observa: “A escravatura é anterior à chegada de árabes, portugueses, franceses ou ingleses à costa do continente e há autores que sustentam que entre 30 a 60% dos africanos eram escravizados antes da chegada dos primeiros europeus”.

E vamos concluir esta empolgante viagem retendo dois parágrafos ainda acerca de Zanzibar:
“Zanzibar tem sido palco de alguma violência. Contudo, a Tanzânia é um dos países com maior coesão no qual a separação entre tribos e Estado tem sido um facto, apesar da existência de 120 grupos étnicos que, muitas vezes, nem sequer se compreendem uns aos outros por dificuldades linguísticas. O ex-presidente Julius Nyerere teve uma importância reconhecida nesta coesão, ao escolher o swahili como língua principal e ao opor-se contra posições étnicas mais divisionistas. Ao contrário do vizinho Quénia, a importância da pertença tribal não é uma questão fulcral para uma população que, antes de mais, se define como tanzaniana.
Nascido na tribo zanaki, em 1922, Nyerere estudou numa Universidade de Kampala e licenciou-se em História em Edimburgo. Nyerere foi o rosto das reivindicações independentistas da Tanzânia e o seu primeiro presidente, ao unir a então Tanganhica e a ilha de Zanzibar. Em 1985, demitiu-se, Nyerere abandonou aquelas funções num gesto raro entre a classe política, após reconhecer os erros da sua governação que conduziu o país a uma situação de bancarrota.”

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23199: Notas de leitura (1440): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23210: Parabéns a você (2058): Giselda Pessoa, ex-Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23204: Parabéns a você (2057): Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66); Cor Inf DFA Ref Hugo Guerra, ex-Alf Mil Inf, CMDT dos Pel Caç Nat 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70) e Joaquim Costa, ex-Fur Mil API da CCAV 8351/72 (Cumbijã, 1972/74)

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23209: O Cancioneiro da Nossa Guerra (13): a "Spinolândia", com letra (parodiada) e música de "Os Bravos", de Zeca Afonso: uma preciosidade encontrada no sítio de "Os Leões de Madina Mandinga", a 1ª CART/BART 6523/73 (1973/74)




Guião do BART 6523/3 (Nova Lamego, 1973/74). 

Cortesia: coleção de Carlos Coutinho (2009)



1. No sítio dos Leões de Madina Mandinga - 1ª Cart / Bart 6523 (1973/74) fomos encontrar uma deliciosa cantiguinha satirizando o Spínola e a política "Por uma Guiné Melhor". 

A letra é uma paródia da uma canção tradicional da Ilha da Terceira, Açores, popularizada por Zeca Afonso (Os Bravos, in "Baladas e Canções", LP, 1964).

Para conhecimento dos nossos leitores, e enriquecimento de "O Cancioneiro da Nosssa Guerra", e com a devida vénia aos "Leões de Madina Mandinga" (e aos seus editores), tomamos a liberdade de reproduzir aqui a letra da "Spinolândia".  

Há outros versos que vale a pena ler, na secção "Cancioneiro", uma boa parte deles recolhidos pelo  António Costa, ex-fur mil. Como ele próprio diz, "na nossa casa de Madina Mandinga, durante o dia e parte da noite, sempre o nosso amigo Gaipo e a sua viola a animar as tropas com as suas canções. Obrigado, furriel Gaipo"(, de seu nome completo, José Graça Gaipo, a viver em Ponta Delgada). 

Não sabemos quem é o autor da letra. Nem muito menos a data, mas pelas referências (Gadamael, ataque a Bissau, foguetões, Santo António de Bissau), deverá ser de meados de 1973, quando o género António Spínola ainda era  o com-chefe e governadot-geral.

Spinolândia

Eu fui à Spinolândia,
Bravo, meu bem,
Pra ver se embravecia (bis),
Cada vez fiquei mais manso,
Bravo, meu bem,
Com os tiros que lá ouvia (bis).

A malta do comechefe,
Bravo, meu bem,
Não conhece Gadamael (bis),
Quando atacaram Bissau,
Bravo, meu bem,
Esgotaram o papel (bis).

Santo António de Bissau,
Bravo, meu bem,
De todos o mais casmurro (bis),
Quer do preto fazer branco,
Bravo, meu bem,
E do branco fazer burro (bis).

Qualquer pobre de Bissau,
Bravo, meu bem,
Daqueles com pouca roupa (bis),
Não está livre de apanhar,
Bravo, meu bem,
Com um foguetão na sopa (bis).

[ Revisão / fixação  de texto: LG  ]


Recorde-se, entretanto,  que o 1º sargento desta companhia era o nosso saudoso amigo e camarada Fern
ando Brito (1932-2014), que ainda entrou pelo seu pé na nossa Tabanca Grande, com o posto de major SGE, reformado... Era um grande fadista e foi um grande pai e avô para o nosso amigo Cláudio Brito... Fez duas comissões na Guiné, como 1º srgt, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e 1ª C / BART 6523 (Madina Mandinga, 1973/74), Era carinhosamente tratado pelos "leões de Madina Mandinga" por Ti Brito.


Ficha de unidade > Batalhão de Artilharia 6523/73

Identificação: BArt 6523/73
Unidade Mob: RAL 5 - Penafiel
Cmdt: TCor Inf João Damas Vicente
Maj Art Óscar José Castelo da Silva
2.° Cmdt: Maj Art Óscar José Castelo da Silva
Cap Art Carlos Alberto Ramalhete
OInfOp/Adj: Cap Art Carlos Alberto Ramalhete (acumulava)
Cmdts Comp: CCS: Cap SGE José Manuel Rijo | 1ª Comp: Cap Mil Inf José Luís Borges Rodrigues  (Lisboa,  1948 - Santarém, 2019) |2ª Comp: Cap Mil Inf Franquelim Bartolomeu Viçoso Vaz | 3ª Comp: Cap Mil Inf Rui Alberto Nunes dos Santos| Cap Mil Inf António Francisco Dias Vieira
Divisa: "Honra e Dever"
Partida: Embarque em 06Ju173; desembarque em 13Ju173 ! Regresso: Embarque em 07Set74

Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, com as suas companhias, de 16Jul73 a 12Ag073, no CMl, em Cumeré, seguiu, em 13Ag073, para o sector de Nova Lamego, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com o BCav 3854.

Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do Sector L3, com sede em Nova Lamego e abrangendo os subsectores de Madina Mandinga, Cabuca, Canjadude e Nova Lamego

Em 20Ju174, o subsector de Piche foi integrado na sua zona de acção, após desactivação do Sector L4. As suas subunidades mantiveram-se sempre integradas no dispositivo e manobra do batalhão até à extinção do sector.

Desenvolveu intensa actividade operacional, com realização de patrulhamentos, emboscadas, escoltas a colunas e segurança e protecção dos itinerários e das populações. As suas forças intervieram e colaboraram em acções de reacção a flagelações e ataques aos aquartelamentos e aldeamentos e na promoção socioeconómica das populações.

Comandou e coordenou a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuadas nos subsectores de Madina Mandinga e Cabuca, em 20Ag074 e de Piche, em 29Ag074.

O comando do batalhão recolheu a Bissau em 29Ag074, a fim de aguardar o embarque de regresso, mantendo-se um pelotão da CCS em Nova Lamego até  sua desactivação e entrega ao PAIGC, em 04Set74.


***
A 1ª Comp seguiu em 13Ag073 para Madina Mandinga, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCav 3406. Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do subsector de Madina Mandinga, com um pelotão no destacamento de Dara.

Com a retracção do dispositivo, efectuou a desactivação e entregaao PAIGC do aquartelamento de Madina Mandinga em 20Ag074 e do destacamento de Dara em 27Ag074, tendo seguido para o subsector de Bambadinca, na zona de acção do BCaç 4616/73, onde substituíu a CCSIBCaç 4616/73.

Em 02Set74 foi substituída pela 2ª Comp/BCaç 4616/73 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

***

A 2ª Comp seguiu em 13Ag073 para Cabuca, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCav 3404.

Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do subsector de Cabuca, cedendo um pelotão para reforço da guarnição de Madina Mandinga.

Em 20Ag074, efectuou a desactivação e entrega do aquartelamento de Cabuca ao PAIGC e seguiu para o subsector de Xime, na zona de acção do BCaç 4616/73, a fim de substituir transitoriamente a CCaç 12, que fora entretanto extinta e onde se manteve até ser rendida pela 2ª Comp/BCaç 4518/73 em 31Ago74, tendo então seguido para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***
A 3ª  Comp seguiu em l3Ago73, para Nova Lamego, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCav 3405.

 Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do subsector de Nova Lamego, cm um pelotão destacado em Cansissé.

Em 27Ago74, foi rendida pela 1ª Comp/BCaç 4518/73 e seguiu em  29Ag074 para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações -  Tem História da Unidade (Caixa n." 122 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp. 248/ 249.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12747: In Memoriam (180): Fernando Brito (1932-2014), major art ref, ex-1º srgt, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e 1ª C / BART 6523 (Madina Mandinga, 1972/74)

(**) Último poste da série > 16 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20352: O Cancioneiro da Nossa Guerra (12): "Até p'ró ano outra vez", um "faduncho" do Francisco Santos (ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65; poeta popular de Sarilhos Grandes, Montijo): "Mas nós cá vamos passando, /As lembranças vão ficando, / Conservando alguma fé; / Nem que seja de bengala, / Eu reúno em qualquer sala / P'ra relembrar a Guiné"...