sexta-feira, 29 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23212: 18º aniversário do nosso blogue (8): No tempo em que os telegramas eram de mau agoiro e as mães que os recebiam nem sempre sabiam ler... (José Teixeira)

 

Cópia do telegrama, emitido em 8 de fevereiro de 1970


1.  Nos anos 60/70, durante a guerra do ultramar / guerra colonial, as famílias dos combatentes o que mais temiam era o fatídico telegrama a anunciar a desgraça de uma morte, em combate, acidente ou doença,  ou de um desaparecimento, na sequência de uma operação, "lá longe onde o sol castiga(va) mais", a muitos milhares de quilómetros de casa...

O conteúdo do telegrama era seco, lacónico, impessoal, brutal... Como este que em tempos aqui reproduzimos:

(,,,) "Sua Excia Ministro Exército tem pesar comunicar falecimento seu filho furriel miliciano fulano ocorrido no dia tal Guiné por motivo combate defesa da Pátria Sua Excelência apresenta mais sentidas condolências, Comandante Depósito Geral de Adidos, Lisboa". (...) (*).

Os mensageiros da desgraça não tinham sido treinados para dar notícias más. Era o carteiro, da vila ou da aldeia, ou de bairro, na cidade,  conhecido de toda a gente, quem levava a casa a carta ou o aerograma do contentamento, mais frequente,  mas também o telegrama, mais raro nessa época, e que, para os pobres,  só podia ser de mau agoiro... 

Um ou outro militar, por razões práticas e sobretudo de economia de tempo mandava de vez em quando à família uma mensagem telegráfica,  tranquilizadora,  a dizer que estava tudo bem... Ou a dar os parabéns por um aniversário. Ou que tinha chegado bem mas já estava cheio de saudades.

Um amigo meu, paraquedista, que esteve no Norte e depois no Leste de Angola, quando regressava à base em Luanda, passava pela estação dos Correios,  e mandava para a família um  telegramas SDS  (ou "telegrama de saudação de texto fixo"), pré-codificado, um serviço criado em 1942 pelos CTT e depois atualizado em 1961 (**)-

Com o triunfo da Internet, o telegrama é um serviço que os Correios, em muitas partes do mundo, já não prestam ou que  tende a desaparecer.

De qualquer modo, o telegrama, no ato de receção, era sempre algo que podia desencadear ansiedade ou até medo,  pela incerteza do seu conteúdo, origem e motivo. E pior ainda quando o destinatário não sabia ler... Como é o caso desta história, de grande ternura, que aqui se (re)conta (***).



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé ( infelizmente já falecida), filha do valente alferes de 2ª linha e comandante de milícias no Quebo, preso e assassinado pelo PAIGC depois do fim da guerra


Foto (e legenda): © José Teixeira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. O autor, José Teixeira, membro da nossa Tabanca Grande, desde praticamente a primeira hora (vd. poste P 350, de 14/12/2005) (****), não precisa de apresentações, tendo sido um dos criadores da Tabanca Pequena de Matosinhos. 

O pretexto para esta reposição da estória nº 39, para além da celebração do Dia da  Mãe, em 1 de maio de 2022, é a passagem do 18º aniversário do nosso blogue (*****).


Estórias do Zé Teixeira (39) > O medo do terrífico telegrama


Naquele dia 8 de fevereiro de 1970, uma mãe esquecida do quadragésimo oitavo aniversário preparava o almoço para os três filhos. Um quarto estava ausente na Guiné. Este, tinha feito 23 anos dois dias antes.

Era comum juntar-se a família no dia oito e cantarem-se os parabéns em duplicado. Apenas se mudavam as velas no bolo que aquela mãe, analfabeta, cozinhava com todo o carinho.

Seriam umas onze da manhã, quando o carteiro bateu à porta. Trazia um pequeno papel rectangular dobrado em quatro e tinha como destinatário o nome daquela mulher.

D. Rita,  assine aqui em como recebeu.

 Mas… eu não sei assinar  –retorquiu  aquela mãe, com o coração já em sobressalto.

Uma vizinha prontificou-se a assinar,  a rogo. O carteiro foi-se embora e aquela mãe tremia de medo, com a mensagem que supunha vir dentro do malfadado papel.

 
– Ai que o meu filho morreu!   foi o seu primeiro pensamento.

Largou os chinelos. Com o papel junto ao coração,  desata a correr descalça, rua acima,  até ao emprego da filha, a cerca de dois quilómetros.

Chega ao destino esbaforida e sem forças, as lágrimas correm-lhe pela face. Pede para lhe chamarem a filha. Queria ser ela a primeira a saber da sorte do seu filho.

Ao ver a filha ao longe grita:

 Ai, Lai, que o teu irmão morreu!

–  Morreu nada, minha mãe.

– Morreu, morreu. Chegou agora o telegrama.

A filha abre o terrífico papel:

"PARABÉNS PELO SEU ANIVERSÁRIO"
. Assina: "Armanda".

– Oh minha mãe, então você não se lembra que faz hoje anos?! É um telegrama da Armanda, a namorada do seu filho, a dar-lhe os parabéns.

 É isso que diz aí?

–  É minha mãe. É o que está aqui escrito.

 
– Graças a Deus!!!

Aquela mãe, era a minha mãe... E eu dou Graças a Deus por poder contar, hoje, esta pequena, mas verdadeira história.

Zé Teixeira

 [Fixação / revisão de texto / título do poste: LG]
__________

 Notas do editor:

(*) 16 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19983: (Ex)citações (354): Como é que a máquina burocrática do exército fazia chegar, à família, a notícia funesta da morte ou desaparecimento em combate de um militar ? O caso do sold at cav nº 711/65, José Henriques Mateus, desaparecido no rio Tompar, afluente do rio Cumbjiã, no decurso da Op Pirilampo, em 10/9/1966 (Jaime Silva, seu colega de escola, no Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

(**) Vd, poste de 25 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14931: Recortes de imprensa (74): Informação Oficial, publicada no jornal "A Província de Angola", sobre o desastre do Cheche aquando da travessia do Rio Corubal em 6 de Fevereiro de 1969 (José Teixeira / José Marcelino Martins)

7 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro Zé Teixeira,

"Graças a Deus !!!"

Se fosse nos tempos de hoje, com as maleitas que conhecemos, era morte certa.

Um abraço ao nosso amigo "Esquilo sorridente" pela partilha.

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, é bom sempre relembrar, mais de 50 anos depois desta pequena história "ternurenta", a condição da mulher portuguesa, na primeira metade do Estado Novo, em que o ensino obrigatório ia só até à 3ª classe, quando havia escola e professor (, muitas vezes uma simples regente escolar)... Só em 1956, passaram a ser obrigatórios os quatro anos de ensino primário mas apenas para os rapazes, já andavas tu e eu na escola (que sorte!)... Só em 1960 (!) é que as raparigas tinham que fazer a 4ª classe...

A tua mãe era analfabeta, como a grande maioria das mulheres portugueses do seu tempo. A minha, nascida em 1922 (e falecida em 2014) fez apenas a 3ª classe, com uma professora particular: sabia ler, escrever e contar, e mais não era preciso para uma filha de pequenos agricultores destinada "servir" na cidade ou na vila, em "casa de senhores" (logo aos 10 anos foi para Lisboa, a minha, e serviu até casar, aos 25, aguardando que o namorada viesse de Cabo Verde e arranjasse casa)...

Como eu escrevi num dos meus livros inéditos que quero ver se ainda publico em vida:

(...) "Não ia à escola a filha da camponesa, ia para a vila ou para a cidade, onde no máximo tirava a 3ª classe com professora particular ou regente escolar, e depois aprendia a cultivar as boas maneiras e a fazer rissóis e pastéis de massa tenra e coscorões e arroz doce e bife com batatas fritas e ovo a cavalo… E a tricotar as teias da pobreza e a fazer, a lápis, as contas do merceeiro em papel de embrulho!... “Ah!, Senhora, como a vida está cara, os ladrões açambarcaram o açúcar, o café e o azeite!”… No tempo da guerra e do racionamento que se vai prolongar por toda a década de quarenta.

Mas já “tinham mundo”, as meninas que iam para Lisboa, nos anos 30 e 40, para se fazerem criadas e mulheres. E quando regressavam à aldeia, aos 20 anos, era para casar com os rapazes da vila. E depois tinham filhos e filhas, e a estas havia a moda de as batizar com os nomes afrancesados das refugiadas de guerra: antonietes, bernardetes, elisabetes, gracietes, marietes, miletes, suzetes... Era mais chique que Antónia, Francisca, Joana, Joaquina, Maria ou Manela.(...)

Grandes mulheres, as nossas mães, vamos lembrá-las sempre, e não apenas no Dia da Mulher no 1º domingo de Maio, que este ano até calha no 1º de Maio...

José Teixeira disse...

Meu caro "ermon" Cherno.
Confesso que cada vez te admiro mais e prezo a tua amizade. Pelas ligações que tenho às gentes Fula considero-me um fullanni.
Esta estória repetida muitas vezes pela minha querida e saudosa mãe, trazia-lhe sempre comoção até às lágrimas. Felizmente - Graças a Deus - foi apenas um tremendo susto, mas dá para entender, a ti que vives num país, onde o analfabetismo ainda é infelizmente predominante, como era Portugal há cinquenta anos.
Sonho com uma Guiné que daqui a cinquenta nos possa olhar para trás e ter orgulho no caminho feito, como tem este meu Portugal.
Um fraternal abraço do
Zé Teixeira

Ao grande Luís, queria agradecer-lhe maia uma lagrimazita de emoção por me recordar a mãe que tive e que viveu, como a tua, e tantas outras, num tempo de sofrimento em que os seus filhos eram forçados por um sistema político a partirem para uma luta que sentiam não ser a deles. Elas mais que nós, não entendiam o porquê da guerra que lhes roubava os filhos e muitas vezes o "ganha-pão", por mais que os abades das nossas aldeias, os regedores e presidentes das juntas de freguesias afirmassem que era a Pátria que chamava a defender as "províncias de África" e os valores da fé. Sabes que isso acontecia por esse Portugal fora.
Infelizmente a grande maioria era analfabeta. A minha irmã fez a 3ª classe com 9 anos e no dia seguinte foi servir para o Porto. foi metida num comboio com bilhete pago até ao fim da linha (estação de s. Bento) e levava como identificação uma rosa vermelha. Alguém a esperava para a tomar como serviçal... e assim começou a sua luta pelo pão de cada dia. Felizmente - Graças a Deus - conseguiu superar as dificuldades e hoje vive uma velhice sossegada, mas minha mãe começou a trabalhar com sete anos, e eu para ter uma sopinha com uma boa tora, comecei a guardar as ovelhas do vizinho com cinco anos. Vida dura!
Um xi coração




Anónimo disse...

Caro Zé,

Você é dos nossos, um fula de Forrêa, de alma e coração.

Os países podem ser diferentes, mas as realidades humanas, estratégias de ascênção social e/ou de sobrevivência são quase as mesmas.

É, por isso, incompreensível que alguêm que veio deste meio social (fingir) não perceber que pode-se dar uma filha, sobrinha ou neta para prestar serviços (sempre com uma finalidade implícita ou explicita), mas não se dá para " todos os serviços) como alguém sugeriu num recente Poste do Blogue. Confundir as duas coisas só podia advir de uma má fé. Todas as pessoas do mundo querem evoluir e ter uma vida melhor e mais digna, é o designio do destino e da própria vida em sociedade.

Na Guiné-Bissau de hoje e de ontem estas modalidades sócio-culturais sempre foram usadas para fugir da miséria e do obscurantismo.

Um grande abraço,

Cherno AB

Anónimo disse...

PS: É, precisamente, nestas condições sociais das nossas "praças" é que surgiu a palavra "bajuda", que tem a raíz da palavra "ajuda" mais o prefixo "ba" do verbo em Crioulo "bai" ou ir em português, a menina que vai ajudar nos serviços domésticos na cidade.

Cherno AB

Valdemar Silva disse...

Bela história Zé Teixeira.
A minha mãe preferiu o arrebatamento 'e depois, os filhos dos ricos também vão', quando eu lhe disse que tinha sido mobilizado para a Guiné, coitada.

E continuamos a ter ensinamentos de Cherno Baldé.

Saúde da boa
Valdemar QAueiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno e Zé, olá: a realidade, sociodemográfica, política, económica e cultural, mudou muito...

As netas das avós analfabetas, nascidas há 100 anos, são agora doutoradas e tem empregadas domésticas cabo-verdianas,brasileiras ou ucranianas.

Nos anos 60 eram a gente das nossas aldeias que partiam para França e Alemanha participar no "milagre económico europeu" (os homens eram trolhas da construçao civil e elas porteiras e empregadas domésticas...), hoje são os franceses e belgas da classe média alta, reformados, que se radicam em Portugal (à pala da segurança, do sol, da boa comida e do bom "rouge"...) e compram as casas à beira mar na costa oeste da Estremadura (na Lourinhã, por exemplo), algumas por 1 milhão de euros. Mantenhas