Recordar o Francisco Silva
O Francisco foi apanhado na contestação coimbrã de 1968, quando cursava o 1.º ano de Medicina, e “despachado” para tropa, quando tinha 18 anos.
Ofereceu-se para os paraquedistas, mas chumbou e voltou à “tropa macaca”. Daí o nome de “alfero paraquedista” como era conhecido na Guiné. Apelido que já estava no esquecimento, quando em 2013 aquele guineense - Alto quadro administrativo, como diretor de um departamento governamental, - no antigo Quartel-General em Bissau, não o abordasse e lhe perguntasse: Tu não és o alfero paraquedista?
O Francisco ficou a olhar para ele, muito admirado, pois tinham-se passado mais de quarenta anos, e disse: - Sim! Chamavam-me o paraquedista…
- Em bem me parecia que eras tu. O meu pai vivia no Xitole e eu estudava no Honório Barreto. Fui para lá nas férias grandes e tu estavas lá.
Logo, se abraçaram e se perderam em conversa, nesta visita de saudade que ambos tínhamos planeado e estávamos a iniciar, acompanhados pelas nossas companheiras de vida.
Foi o início do primeiro dia da visita. No dia seguinte partimos para Xitole e as surpresas continuaram.
Começou por fazer uma “peregrinação” pelos locais que mais o marcaram: Os postos de sentinela dos seus homens; o lugar do morteiro; as valas à volta do quartel, onde se refugiavam e se defendiam quando o inimigo atacava; a messe de oficiais…
Falava-me dos locais onde estava o inimigo nos seus ataques à povoação e da forma como reagiu num dos ataques em que sendo o alferes mais velho , comandou a defesa, quando vê ao longe, aproximar-se em passo rápido um guineense ainda jovem que se dirigiu a ele e afirmou:
- Tu és o alfero paraquedista!
Era o “djubi” que servia na messe de sargentos, tinha quinze anos. E, não mais largou o Francisco. Tinha uma filha que se ia casar no sábado a seguir e logo convidou o Francisco e a comitiva para a festa di casamenti.
Seguimos caminho, ao fim da tarde, para o Saltinho. O Francisco entabulou conversa com um nativo e ali descobriu um antigo guerrilheiro. Localizaram-se no tempo e nos embates de frente a frente em Xitole e perderam-se em conversa durante a noite.
O Francisco era um profundo observador e guardava na memória muitos dos pormenores vividos em combate. Era para mim, um prazer ouvi-lo.
Seguimos para Iemberém. Também ali, o Francisco localizou um antigo guerrilheiro (já falecido), e para sorte do nosso homem, estivera na área do Xitole e passara para o Norte, áera de Jumbembem, tal como Francisco e no mesmo tempo. Fui testemunha destas cenas que ouvi e fotografei para memória futura.
Conheci o Francisco em 2008. Fizemos a viagem para a Guiné, por terra, foram seis dias de viagem para lá, seis dias na Guiné, e mais seis dias no regresso, para participar no Simpósio de antigos combatentes da Guiné, onde convivemos com antigos soldados africanos do exército português e soldados do PAIGC. Excelentes momentos de convívio que, quem viveu não vai esquecer.
O nosso querido amigo Francisco primava pela sua forma de estar. Ficava para trás, sem se preocupar com o grupo. Ele tinha de observar bem tudo o que o despertava. Era sempre o último a chegar e uma vez, no regresso, teve de vir de táxi para a pensão em Noadhibou na Mauritanea, pois os camaradas esquecerem-se dele no centro da cidade. Apareceu meia hora depois, calmamente como se nada tivesse acontecido.
Na noite anterior, tínhamos ficado num Oásis. Um local maravilhoso, no meio do deserto, onde só estavam os guardas do Resort, dado não ser época de caça. Nada para comer, nem mesmo pão, pelo que o nosso jantar, foram sardinhas enlatadas, que felizmente ainda havia na carrinha dos mantimentos.
Nessa noite, o Francisco veio ter comigo - Teixeira, dizem que não há estradas para podermos continuar a viagem, mas escuta!...
Ouvia-se ao longe, um ruído, que parecia, carros a passarem numa autoestrada.
Ele insistia: - Passa aqui perto uma estrada e tem muito movimento. Vamos ver?!
Seguimos os dois pelo deserto dentro na direção do vento que nos levava ao ruído. Andámos cerca de um quilómetro e localizamos a origem do mesmo. Era o gerador de eletricidade do resort, onde estávamos alojados. Ali colocado, à distância, para não incomodar os residentes. O vento, vindo daquela direção fazia chegar ao resort um leve ruído que o Francisco detetou.
Desfeita a dúvida iniciámos o regresso, mas o céu estava tão lindo, carregado de estrelas que nos deitámos na areia e ficamos a apreciar e a divagar sobre a beleza que pairava por cima de nós. Perdemo-nos no tempo e quando regressámos, tínhamos os 27 companheiros de jornada assustadíssimos à nossa procura, chamando-nos e procurando-nos à volta do resort, pensando alguns que tínhamos sido feitos prisioneiros por algum grupo de guerrilha local. Com o vento contra, não ouvimos chamar pelos nossos nomes.
Era este homem, amante da natureza, profundo observador de tudo o que o rodeava e sempre pronto a procurar a razão, ou a raíz das coisas e acontecimentos, que tenho pena de só o ter conhecido em 2008. Ele e a Elizabete, sua esposa estão no meu coração.
Partiu para a eternidade, depois de um longo e profundo sofrimento.
Espera por mim, querido amigo. Não tardarei.
José Teixeira
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Nota do editor:
Vd. poste de 30 de Janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3942 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide