segunda-feira, 4 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25234: 20.º aniversário do nosso blogue (1): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (I): Um dos episódios mais trágicos da nossa guerra, no decurso da Op Lenda, em 7/10/1965, Gamol, Fulacunda


Rui A. Ferreira, alf mil,  CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)...
Com um chapéu "turra". Cortesia do autor.


Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 > PAIGC > Entrega de 3 prisioneiros de guerra, portugueses, à Cruz Vermelha do Senegal: o José Vieira Lauro, o protagonista desta história, é o segundo do grupo. O PAIGC (leia-se: Amílcar Cabral)  habilmente tirou partido da situação, em termos mediáticos, propagandísticos e diplomáticos... O Lauro foi prisioneiro de guerra cerca de 30 meses, desde 10 de outubro de 1965 até 15 de março de 1968... (LG)


Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 05224.000.037 | Título: Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal | Assunto: Amílcar Cabral e Osvaldo Lopes da Silva por ocasião da entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal, em Dakar  [Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco]. Data: Sexta, 15 de Março de 1968 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral |b Tipo Documental: Fotografias  (Com a devida vérnia..:)
 
Citação: (1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44074 (2024-3-3)



"[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar."  (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)



1. Para dar início à série do "2o.º aniversário do nosso blogue: alguns dos nossos postes de sempre", nada como republicar este excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003) (pp. 37/40) (*).

"Rumo a Fulacunda" era o grito de guerra da CCAÇ 1420, em cujas fileiras ingressou o alf mil Rui Ferreira, em rendição individual, substituindo um camarada "desaparecido em combate" (o seu corpo nunca foi recuperado), o Vasco [Nuno de Loureiro de Sousa] Cardoso,  lisboeta, mas  criado em Angola, como o nosso saudoso Rui Alexandre Ferreira (Benguela, 1943-Viseu, 2022).

"Rumo a Fulacunda" foi escolhido como título para o seu primeiro livro de memórias. Rui A. Ferreira, regressado de Angola (onde fez uma terceira comissão, depois de duas na Guiné), acabou por ir viver para Viseu, em 1975, e lá morreu, na sequência de uma longa e brava luta contra uma doença degenerativa. Era ten-cor inf ref, condecorado com duas cruzes de guerra (1ª e 2ª classe), por feitos em combate.

Neste seu primeiro livro,  em 4 páginas notáveis (pp. 37/40) conta-nos o cruel episódio de guerra, passado no decurso da Op Lenda,  em Gamol, Fulacunda, em 7 de outubro de 1965, envolvendo as CCAÇ 1420 / BCAÇ 1857 (Fulacunda, 1965/67)  e CCAÇ 1423  / BCAÇ 1860 (Tite, 1965/67). 

Seis militares (um oficial e cinco praças), perdem-se do grosso das NT,  divididas em três colunas de progressão, na sequência de uma forte emboscada IN, no mat0, esse próprio dia, no decurso da Op Lenda.

O Rui reconstituiu, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o alf mill Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, foi o último a ser abatido.

O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e  foi feito prisioneiro, em 10 de outubro de 1967:  levado para a Guiné-Conacri, para a "Maison de Force" (Casa de Reclusão), de Kindia, será mais tarde, ao fim de penosos 30 meses, já em 15 de março de 1968,  libertado, e entregue em Dacar à Cruz Vermelha do Senegal. 

Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Ao reavivar esta história, queremos homenagear, mais uma vez, as vítimas mortais mas também a quem soube preservar a sua memória (o José Vieira Lauro, sobrevivente e prisioneiro, e claro  o Rui A. Ferreira, que deu a essa memóra letra de forma, e que infelizmente já nos deixou também).

Os protagonistas desta histórica trágica da guerra da Guiné foram, por ordem alfabética:
  • Armando dos Santos Almeida, natural de Queiriga, Vila Nova de Paiva, sold at inf, CCaç 1423 ;
  • Armando Leite Marinho, natural de Jugueiros, Felgueiras, sold corneteiro, CCAÇ 1420;
  • Fernando Manuel de Jesus Alves, natural de Leiria, 1.º cabo aux enf, CCaç 1423; 
  • José Ferreira Araújo, natural de Povolide, Viseu, sold at, CCAÇ 1423;
  • José Vieira Lauro, natural de Granjal, Leiria, sold, CCAÇ 1423.
  • Vasco Nuno de Loureiro de Sousa Cardoso, natural de Lisboa, alf mil, CCaç 1420.
Com exceção do José Vieira Lauro, que se rendeu aos seus perseguidores, os restantes militares morreram. Os seus corpos nunca foram recuperados.


2. Comentário do editor LG:

Esta é claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, comuns em cenários de guerra ou de catástrofe, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se. 

Possivelmente nenhum destes destes nossos camarada, mesmo o angolano Vasco Cardoso (embora nascido em Belém, Lisboa), estava em condições de sobreviver a este brutal acontecimento: acossados como animais, com dois cantis de água (no máximo) e uma ração de combate, possivelmente já com poucoas munições, depois de um violenta emboscada horas depois da saída do quartel (em Fulacunda), impossibilitados de dormir ou descansar, sofrendo de fome, sede, insolação e angústia permanente, desorientados, não conhecendo o terreno (nem muito menos o inimigo) estavam mal preparados para resistir, lutar, sobreviver... Para mais, eram duas unidades de quadrícula, "periquitas"...

Nenhum de nós consegue imaginar-se na pele do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, ou dos seus camaradas que com ele se perderam do grosso das NT...

O Rui A. Ferreira diz que a operação teve início na madrugada de 7 de outubro... Confirmámos, noutro poste [sobre a atividade operacional do BCAÇ 1860]  que a Op Lenda, na zona de Gamol,  subsetor de Fulacunda, teve início nesse dia, e envolveu as CCaç 1420 e 1423. 
(**).

Sabemos o nome de código da operação, mas falta-nos informação mais detalhada... A emboscada terá sido nesse dia. E nesse mesmo dia, à tarde, as NT terão regressado a Fulacunda... onde só então deram conta da falta de seis elementos... Pergunta-se: voltaram ao local da emboscada?... 

Parece que sim, no dia seguinte, realizou-se a Op Busca, envolvendo forças da CCaç 797, 1420 e 1423, na zonas de Gamol e Ganjetrá... Mas as buscas terão sido, segundo o Rui A. Teixeira,  apressadas, incompletas e infrutíferas. Houve ainda, a 18Out65, a Op Ovo, nas zonas de Gamol, Bária e Sancorlá, com forças das CCaç 797, 1420, 1423, 1424 e CCav 677.

A agonia dos nossos camaradas ter-se-á prolongado "durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias" (sic), num trágico jogo do gato e do rato, "em manifesta desigualdade"... 

Quatro dias, quer dizer, 7, 8, 9 e 10... Tudo indica que a última morte, a do alf Vasco Cardoso, terá ocorrido a 10 de outubro de 1965, bem como a rendição do sold José Vieira Lauro.

[Segundo a reconstituição feita por uma equipa do portal UTW - Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, a primeira baixa do grupo seria o Fernando Manuel de Jesus Alves, morto no dia 8; a segunda vítima, a 9, terá sido o José Ferreira Araújo; o  Armando dos Santos Almeida, morre a 10; o Armando Leite Marinho, morre a seguir,  possivelmente afogado, também no dia 10; o último a morrer, nesse dia, é o alferes Vasco Cardoso.]

Fica aqui a nossa sentida homenagem a estes camaradas, que tiveram sortes diferentes: 5 morreram (2 alegadamente por suicídio) e um acabou por render-se ao grupo do PAIGC que os perseguiu durante quatro dias (de 7 a 10 de outubro de 1965).



Ficha técnica do livro:

Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2000. [1ª ed., 2000, 2ª ed., 2003; 3ª ed., 2016].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola
1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso, dado  como  desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal.
1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir, é ten cor ref.
2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  (***)
2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.
2017 - Lança um 3º livro,  A Caminho de Viseu,  nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.
2022 - Ano da morte


Guiné > Região de Quínara > Carta  de Fulacunda (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gamol e Ganjetrá, a oeste de Fulacunda.  A norte, o rio Geba, a leste, o rio Corubal. (Em linha reta, de Fulacunda Gamol serão 6/7 km).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40 (*). 

(Subtítulos: L.G.;  seleção, parênteses retos, itálic0o, nergritos, revisão / fixação do texto para efeitos de edição no blogue: VB / LG).


(...) Na madrugada do dia sete de outubro [de 1965], lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tornando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!... Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistolas metralhadoras PPSh) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o alferes Vasco Cardoso, diretamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.

−  Tomar posições de defesa!  
gritou o alferes.

 
−  Reagrupar à retaguarda!  −  comandava bem lá de trás o maior da 23 [a CCAÇ 1423], capitão de infantaria [e não de artilharia]  Pita Alves, estratega e comandante-em-chefe da operação.


[Quinta-feira, 7 de outubro de 1965: ] 
Seis homens isolados e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes, o alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras,  permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. 

Nado e criado em África, Vasco Cardoso [alf mil, CCAÇ 1420], era dos elementos mais válidos da companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o, debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das companhias. Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação, romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro [da CCAÇ 1423], único sobrevivente daquele grupo, que se pode aquilatar a vastidão do desastre.


Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade.

Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

 [Sexta feira, 8 de outubro de 1965: ] 
A  primeira baixa  do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.


Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia [sexta-feira, 8 de outubro de 1965], um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!...

 
 [Sábado, 9 de outubro de 1965: ] 
A  segunda baixa   


Ao terceiro dia [sábado,  9 de outubro de 1965] caiu o segundo. 

Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro,  o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.


[ Domingo. 10 de outubro de 1965:] 
O desespero leva a dois suicídios 


No último dia [domingo, 10 de outubro de 1965,] em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. 

Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.

No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu... para nunca mais ser visto.

 Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.


[ Domingo. 10 de outubro de 1965:] 
A morte do alferes Vasco Cardoso 
e a rendição do soldado José Vieira Lauro

O alferes foi o último a ser abatido e o soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… 

De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. 

A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. 

Da fronteira para Conacri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conacri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler "Maison de Force de Kindia", foi encontrar o 1.° sargento piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa. (***)

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. 

Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. 

O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

−  Seis! Faltavam seis homens! Dois da [CCAÇ] 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista n.º 1020/64 Armando Leite Marinho) e quatro da [CCAÇ] 1423 (o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...)  (#)
_______

(#) Vd. também CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 1 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pág. 324.

(...) - Sector Sul 1
Em 7 de Outubro de 1965, foi levada a efeito a operação "Lenda" por forças das CCaç 1420 e 1423, constando de um golpe de mão a um acampamento a sul de Gamol; o lN flagelou por 3 vezes as NT, sofreu 6 mortos, tendo sido capturada uma pistola metralhadora.

Na retirada, desapareceram um oficial e 5 praças. Apesar da intensa actividade desenvolvida, quer nessa zona quer nas mais prováveis linhas de trânsito ln para o sul, não foi possível recuperá-los.

Na área de Fulacunda, fizeram-se imediatamente a eguir as operações "Busca", "Ovo" e "Eco".

Em 14Dez, o BCaç 1860, através das CCaç 797 e CCaç 1420, realizou a operação "Onça", na península do Gampará. O ln opôs resistência durante o desembarque das forças da CCaç 797 em Ganquecuta; emboscou por 2 vezes as mesmas forças na região de Gambachicha, causando 3 feridos e flagelou forças da CCaç 1420, perto de Tumaná, sofrendo 5 mortos. As NT
fizeram 10 prisioneiros e capturaram 1 espingarda, 2 pistolas, 2 "longas", carregadores e outro material.

(...) Sobre as duas companhias envolvidas:

A CCAÇ 1420, mobilizada pelo RI 2, partiu para o CTIG em 31/7/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Fulacunda, Bissorã e Mansoa. Comandantes: cap inf Manuel dos Santos Caria; cap inf Humberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil inf Adolfo Melo Coelho de Moura.

Pertenceu ao BCAÇ 1857 (Bissau, Mansoa, Mansabá, 1965/67).

A CCAÇ 1423, mobilizada pelo RI 15, partiu para o CTIG em 18/8/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Bolama, Empada e Cachil. Comandantes: cap inf Artur Pita Alves; cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho; cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca;

Pertenceu ao BCAÇ 1858 (Bissau, Teixeira Pinto, Catió, 1965/67). (...)
______________


(... ) Comentário do nosso coeditor Virgínio Briote: 

Rui: Ao publicar o artigo que o Santos Oliveira me enviou sobre a história do BCaç 1860, reli o que escreveste sobre o caso dos desaparecidos, que é como a história do Batalhão retrata, rapidamente, o caso.

Duas imagens me saltaram. A primeira, foi a leviandade com que a ausência dos nossos Camaradas foi sentida. Quatro longos dias, abandonados. E o Batalhão  na sua história, neste caso pequena acrescento eu, foge do assunto, de tão notórias lhes são devidas responsabilidades.

A outra é a História que, com base nos depoimentos do Lauro, tu contaste. Como se fosses tu o encarregado de acrescentar a História deles à história do BCaç 1860, para além dos nomes dos desaparecidos com que os escribas da hitória do Batalhão os homenageou.

E é assim, caro Rui, que a tal História, a de todos nós se vai fazendo, já que com as histórias das unidades não iríamos muito longe, se é que queremos contar a tal História com verdade.

Sim, nós sabemos que há sempre duas histórias. A oficial, escrita, e a outra feita destas Histórias, que tão bem descreveste.

Um abraço, Rui, e um obrigado por nos teres possibilitado prestar esta pequena homenagem à memória dos Nossos Camaradas desparecidos, ou mais propriamente abandonados.
vb


(***) Vd. poste de 19 de julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1972: Prisioneiros de Conacri: Jacinto Madeira Barradas (Alter do Chão) e José Vieira Lauro (Leiria) (Benito Neves)

(...) Um outro camarada.  ex-prisioneiro de Conacri foi o José Vieira Lauro, que já era prisioneiro em Conacri quando o Jacinto Barradas lá chegou (...).

Foi um dos que mais tempo esteve aprisionado e, na prisão, cabia-lhe a tarefa de distribuir a comida pelos restantes prisioneiros. Na maior parte das vezes (segundo o Jacinto Barradas) apenas era distribuído arroz porque, das poucas vezes em que a refeição trazia alguma carne de galinha, esta era roubada pelos guardas.

O José Vieira Lauro vive na região de Leiria - telef. 244 881 695; telem. 919 086 150. (...)


Vd. também poste de 18 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1967: Prisioneiros em Conacri, capa da Revista do Expresso, 29 de Novembro de 1997: o que é hoje feito deles ? (Henrique Matos)

domingo, 3 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25233: In Memoriam (500): Eduardo Cesário Rodrigues, mais conhecido por "Salazar" (1941-2024), ex-alf mil, CCAÇ 1420 (Fulacunda) e CCAÇ 6 (Bedanda) (1967 / 69) (Joaquim Pinto Cavalho)



Eduardo Cesário Rodrigues, "Salazar" (1941-2024), ex-alf mil CCAÇ 1420 / BBCAÇ 1857 (Fulacunda) (jan-abr 67), e CCAÇ 6 (Bedanda) (mai67 - jun68)


Guiné > s/l > s/ d> O "Salazar" à esquerda



Guiné > Região de Tombali > Bedadanda > CCAÇ 6 > c. 1967/68> O "Salazar", do lado esquerdo, sentado, com boina,  a “tocar” no instrumento de que não sei o nome.



Portugal > Mealhada > 29 de junho de 2013 > 3.º Encontro dos Bedandenses, organizado pelo António Teixeira, "Tony" (1948-2018), ex-alf mil CCAÇ 3459/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 6, Bedanda (1971/73). 

Fotos (e legendas) : © Joaquim Pinto Carvalho (2024). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaraada da Guiné.]


1. Mais uma notícia triste que nos chega por telemóvel e depois por email de 26 do passado mês de fevereiro, por parte do Joaquim Pinto Carvalho 

tem 64 referências no nosso blogue; é membro nº 633 da Tabanca Grande; foi alf mil da CCAÇ 3398 (Buba) e CCAÇ 6 (Bedanda) (1971/73); natural do Cadaval, é advogado, poeta e régulo da Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã; é autor de uma brochura com a história da unidade, a CCAÇ 3398, distribuída no respetivo XXV Convívio, realizado no Cadaval, em 18/9/2021; vai voltar no dia 9 à Guiné, passando por Bossau, Buba e Bedanda, com um grupo de graduados da ua CCAÇ 3398)]


Data - 2 de março de 2023, 20h21:

Olá, Luís!

Seguem breves elementos informativos sobre o "Salazar", que morreu no  passado dia 26 (*),   e algumas fotos em anexo ...

Nome: Eduardo Cesário Rodrigues, conhecido por  "Salazar". (O "nickname" Salazar nasceu no seio da família e era assim conhecido entre os amigos e até na tropa)

Data nascimento: 18/07/1941

Data do óbito: 26/02/2024

Incorporação: 03/05/1965

Disponibilidade; 28/02/1969

Embarque em Lisboa a 11/01/1967 a bordo N/M "Rita Maria" | Desembarque na Guiné no dia 19/01/1967

Patente: Alferes miliciano

Subunidades e locais: 

CCAÇ 1420 (BCAÇ 1857) – Fulacunda

CCAÇ 6 – Bedanda, 4º Pelotão,  de 01/05/1967 a 01/06/1968.

27/08/1968 – evacuado para o Hospital Militar Principal  (HMP), em Lisboa por doença em serviço.

Foi ferido na operação “Salto",  na zona de Caboxanque (Cantanhez), em data que não
 conseguimos precisar.

É o que tenho por agora. Pode ser que venha a obter mais dados. A foto ao pé do estandarte foi tirada num almoço convívio na Mealhada, organizado pelo Toni...

Ao dispor

Um abraço

Pinto Carvalho 
 

Guião da CCAÇ 6 (Bedana, 1967/74) , "Onças Negras", cuja lema era, de acordo com o guião acima reproduzido,  "Aut vincere aut morire" [Vencer ou morrer]. A antiga 4ª CCAÇ foi extinta a partir de 1abr67, passandP a designar-se por CCaç 6,

Foto: © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados.[ Edição e legendagem: Blogue luís HGraça & Camaradas da Guiné]



Peniche >  28 de setembro de 2013 > Convívio dos bedandenses da CCAÇ 6 e outras subunidades > Tasca secreta do Belmiro >  A chegada do Eduardo Cesário Rodrigues (de alcunha, Salazar), vendo-se o seu filho, de costas.


Peniche >  28 de setembro de 2013 > Convívio dos bedandenses da CCAÇ 6 e outras subunidades > Tasca secreta do Belmiro > Foto nº 8 > O "Salazar", o filho e a afilhada


Peniche >  28 de setembro de 2013 > Convívio dos bedandenses da CCAÇ 6 e outras subunidades > Tasca secreta do Belmiro > O Hugo Moutra Ferreira,  o "Salazar", o João Carapau, o Gualdino (sempre convenientemente acompanhado) e o Lassana

Fotos (e legendas) : © Hugo Moura Ferreira (2013). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaraada da Guiné.]


Neste convívio de Peniche, organizado pelo Bemiro da Silva Pereira (1946-2022), houve 34 presenças... A recordar:

Aníbal Magalhães Marques (1972/74 ?), mais 3 familiares (n=4)

Belarmino Sardinha ((ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74), Cadaval) +  esposa (n=2)

Belmiro Silva Pereira (alf mil, 1968/69, Peniche,), mais  a esposa e filho (n=3)

Eduardo Cesário Rodrigues (Salazar) (alf mil, 1967/68), mais o filho e a afilhada (n=3)

Fernando de Jesus Sousa (fur mil, 1971/73) +  esposa (n=2)

Gualdino José da Silva (fur mil 1967/69, Algarve) mais 1 casal amigo (n=3)

Hugo Moura Ferreira (alf mil, 1967/68, Lisboa) + esposa, Lorena (n=2)

Joaquim Pinto Carvalho (alf mil, 1972/73, Cadaval) +  espoa, Maria do Céu (n=2)

João António Carapau (alf mil médeico, 1967/68, Portela, Loures) (n=1)

João José L. Alves Martins (alf mil art, BAC 1, 1968/69, Lisboa) n=1)

José P. B. Guerra (1º Cabo, 1971/73) (n=1)

Lassana Djaló (, o mais bedandense de todos os bendandenses, Lisboa) (n=1)

Luís Graça (fur mil, CCAÇ 12, 1969/71, Alfragide/Amadora) mais Alice (n=2)

Luís Nicolau (o homem do SPM, 1972/73, Benedita, Alcobaça) (n=1)

Renato Vieira de Sousa (cap inf, 1967/68, hoje cor ref, Lisboa) (n=1)

Rui [Gonçalves dos}  Santos (o mais vellhinho dos bedandenses, 1962/64, Lisboa) (n=1

Victor Luz (fur mil, 1967/68), mais esposa e 1 casal amigo (n=4)

Não compareceram mas estavam pré-inscritos (n=6)

Amadeu M. Rodrigues Pinho (alf mil, 1967/68)

António Rodrigues (O Capitão do Estandarte: o último Alferes / Capitão, fiel depositário do estandarte e da Cruz de Guerra)

Carlos Nuno Carronda Rodrigues (alf mil , hoje cor ref)

José Caetano

José Vermelho [ex-fur mil, CCAÇ 3520, Cacine; CCAÇ 6, Bedanda; e CIM, Bolama, 1972/74,]

Toni [António,] Teixeira [, ex-alf mil,  CCAÇ 3459/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto; e  CCAÇ 6,  Bedanda,  1971/73;  Espinho)
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2. Comentário do editor LG:

Joaquim, apanhaste-me de "baixa"...Lamento muito a morte de mais um dos nossos camaradas que passaram pelas "africanas"... O "Salazar", como era carinhosamente  tratado pelos "bedandenses", não é do meu tempo nem do teu, mas convivvemos com ele, tu muito mais do que eu. (Eu esporadicamente, em 2013, nos convívios da Amadora e em Peniche).

Não chegou a perfazer os 83 anos, este nosso veterano. Aqui fica a tua homenagem, e a de todos nós. Ele  não será inumado na "vala comun do esquecimento", mesmo que a interação com o nosso blogue tenha sido muito diminuta. Fica aqui, neste cantinho do ciberespaço, o registo de quem se lembrou na vida e na morte.

Transmite às "Onças Negras" e demais "bedandenses"  as nossas  condolências, bem como à sua família natural, esposa, filho, afilhada. 

Juntei  mais umas fotos dos nossos convívios.  Se, nesta viagem de saudade, que vais empreender à Guiné-Bissau, com início no dia 9, conseguires chegar a Bedanda, tira algumas fotos das vossas comuns geografias emocionais. E partilha depois com todos nós. Boa viagem, melhor regresso. 

Amadora > Venda Nova > Restaurante "O Gomes", às portas de Benfica > 19 de dezembro de 2013 > "O Eduardo Cesário Rodrigues, mais conhecido por "Salazar". Este nome que lhe é dado desde os anos 50, faz quase parte do nome dele. Eu costumo colocar no final do nome dele Salazar entre aspas. Como se fosse um título!". (**)

Foto (e legenda): © Hugo Moura Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaraada da Guiné.]

Amadora > Venda Nova > Restaurante "O Gomes", às portas de Benfica > 19 de dezembro de 2013 > Da esquerda para a direita, Gualdino da Silva, o lugar (vazio) deixado em memória do Tony, e o Joaquim Pinto Carvalho 

Foto: © Manuel Lema Santos (2013). Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaraada da Guiné.]

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Notas do editor:



Guiné 61/74 - P25232: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (7): "Sarita, a bailarina"


Conoscere TV > "Contos do Ser e Não Ser" de Adão Cruz


Sarita, a bailarina

adão cruz

Acordei às seis da manhã, eram sete em Santander. Sem ponta de sono, fui à janela do pequeno Hotel Central na Rua General Mola, paralela ao passeio que ladeia o mar. Caía uma chuva miudinha e a rua estava escura e completamente deserta.

Preparei-me e saí. Pequeno-almoço só a partir das oito.

Ninguém na rua. A uns vinte metros do hotel, apenas uma mulher alta, elegante, espreitava os caixotes do lixo. De um deles, retirou um guarda-chuva vermelho, fechado, que utilizou como bengala. Debaixo do outro braço, trazia um guarda-chuva preto.

Apesar de sermos as únicas pessoas daquela rua deserta, silenciosa, estreita e comprida, a minha presença foi-lhe completamente indiferente quando me aproximei. A mulher parou frente a um painel de um pequeno centro comercial, tentando ler o que por lá estava escrito.

Longe de ser andrajosa, a sua indumentária denotava apenas o desgaste de alguns anos. Vestia um casaco castanho até meio da perna e uma saia verde que descia um palmo abaixo do casaco. Um pequeno chapéu preto luzia com a chuva. A tiracolo, uma grande carteira escura caía pelo flanco esquerdo. Os pés calçavam uns sapatos rasos, de cor baça, em desafio aos tacões da moda que conferem às mulheres metade da sua altura. Colada ao canto da boca, uma prisca queimada. A dois metros da sua esguia figura, cumprimentei:
- Buenos días!

A mulher olhou-me de relance, sem nada dizer, e estendeu-me o guarda-chuva vermelho que aceitei e agradeci.

- Não há nada aberto por aqui para tomar el desayuno?

Ela riu-se, mostrando algumas cáries que lhe sujavam o sorriso bonito, estendeu-me a mão e apresentou-se:
- Sara, la bailarina. Sarita.
- Encantado.

E sem deixar cair a prisca, respondeu com uma pequena gargalhada:
- A esta hora? Domingo? Ah!... Ah!... Ah!...

De repente, com ar sério, emendou:
- Verdad!... El hotel!

E apontou o meu hotel que se destacava na rua por três pequenas bandeiras e pela sua forte cor azul.

- Me pagas el desayuno?
- Sí, por que no?
- Graaaaacias!

Aguardámos alguns minutos, em silêncio, debaixo de um beiral, até que os lentos ponteiros marcassem as oito. Ela cuspiu a prisca e entrámos no hotel. O rapaz, ainda ensonado, mas simpático, um tanto surpreendido pela minha inesperada companhia, indicou-nos a escada para a primeira planta.

A sala pequena, mas confortável, toda decorada com velhos instrumentos musicais, estava vazia. Os clientes ainda faziam meia-noite. Comi um pão com manteiga e bebi dois copos de leite al tiempo. Sarita pediu café com leite, comeu com vontade, mas sem sofreguidão, um pão com manteiga, um pão barrado com compota, um croissant, pediu mais um pouco de café solo e foi buscar uma banana e uma maçã que meteu na mala.

Pela primeira vez, ergueu o rosto e olhou de frente para mim com um leve sorriso que me pareceu conter alguns laivos de felicidade. Era de facto bonita, tinha olhos verdes que me trouxeram à memória os peixes verdes de Eugénio de Andrade. Eram, no entanto, olhos vazios, sem transparências de vida, olhos que se perderam, há muito, para lá das órbitas. Algumas rugas vagueavam dispersas pelo seu rosto seco à procura de fazerem ninho.

-Vámonos?
- Quando quiseres.

Já na rua, abriu a grande saca que me parecia um poço sem fundo e vasculhou, vasculhou, retirando um isqueiro. Remexeu mais uma vez e, resignada, encolheu os ombros:
- No hay… no hay!

Percebi e disse-lhe que não fumava, mas lhe daria dinheiro para comprar cigarros. Retirei da carteira uma nota de vinte euros que ela segurou delicadamente na ponta dos dedos. Beijou-me na testa, levantou os braços, esboçou um passo de dança, deu meia-volta sobre si mesma e deixou-me com aquele adeus final da Liza Minnelli no Cabaret.

Só depois de ela ter desaparecido ao fundo da rua, eu me dei conta que tinha nas mãos o guarda-chuva vermelho. Calma e solenemente fui restituí-lo ao seu legítimo dono, o caixote do lixo.

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Nota do editor

Último post da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25212: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (6): "A Laidinha"

Guiné 61/74 - P25231: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (20): A abetarda que não é mais desastrada...


A abetarda (Otis tarda),uma espécie eurasiática, parecida com  o peru ("Estado de conservção: Em perigo, em Portugal, pouco preocupante na Europa e vulnerável internacionalmente, segundo a Lista Vermelha da IUNC – União Internacional para a Conservação da Natureza"). 

Fonte: Biodiversidade, by The Navigator Company > Biogaleria > Conheça a Espécie > Abetarda) (Com a devdia vénia...)


1. Aos veteranos, antigos combatentes da Guerra dos Cem Anos,  desculpa-se muita coisa, aos velhos quase tudo e aos avós tolera-se todas as bizarrias... 

Estava eu a frequentar um curso "on line" sobre escrita para crianças, uma organização da empresa escrever escrever, quando tive a 29 passado, na véspera do último dia do curso, de ser operado a uma catarata (senil), um autêntico "pedregulho", segundo a oftalmologista que me operou. 

Durante 72 horas (que ainda decorrem) não posso expôr-me de todo a écrãs...  A ultima sessão do curso, de duas horas e meia (4 sessões, ao todo, semanais), foi sacrificada. Mas já tinha o TPC feito... Partilho, com a vossa paciência e tolerância, uma das historietas que escrevi... e que dedico à minha neta Clara Klut Graça, oui só Clarinha, de 4 anos e meio.  Amanhã retomo as atividades bloguísticas. 

É um microconto que é dedicado aos avós, e sobretudo aos nossos netos, com votos de que haja para eles (e para a abertarda) um melhor lugar do que aquele que nos coube, ao nascermos, no velhinho Portugal que continuamos, apesar de tudo,  a amar.

A abetarda que não é mais desastrada…

Por Luís Graça


Foi num passeio ao Baixo Alentejo que a Clarinha viu, pela primeira vez, as “abetardas”. Ao vivo e a cores.

O avô tinha-lhe mostrado um vídeo com o “abetardo” a querer namorar com a “abetarda”.

− Ó avô, não gosto do “abetardo”!

− Não gostas ?!... Mas é tão fofinho!... Com aquele casaco de penas…

E lá explicou o avô à neta que as “abetardas”, eles e elas, os machos e as fêmeas, são um bocado pesadões, e por isso difíceis de ver a voar, aos bandos… Além disso, fazem os ninhos no chão, nos campos de trigo (que agora já não há, substituídos por quilómnetros de vinhas e olivais). 

− E depois vêm as máquinas, e zás!, estragam os ninhos. E os filhotes, coitadinhos, fogem com dói-dóis, cheios de medo…

− Mas, ó avô, a tua história é da abetarda… ”desastrada”…

− Mas já não é mais “desastrada”, porque tu agora vais ajudá-la a salvar-se!

− Não tem cuidado, e atravessa a estrada com o sinal vermelho, é isso, avô?!

− Ora vês?!... E depois é atropelada!

E o avô, passando-lhe os binóculos, lá contou que ela não tem culpa, porque ela já lá estava, na sua casinha, com os seus filhotes, muito antes da estrada, e dos campos de trigo, dos vinhegso e dos olivais, e das máquinas pesadas que andam nos campos…

− Então, vamos ajudá-la… Eu só não gosto é do “abetardo”, que parece um pavão.

− Gosta de namorar, como tu!

− O meu namorado é o Peter Pan, não é o “abertado”… Vou casar com ele quando for grande… Já pedi liença ao meu pai...

E lá chegaram a uma ideia de salvar a “abetarda” e os filhotes, incluindo o pai, que era o “abetardo”…

Com outros meninos e meninas de Castro Verde, uma terra que fica no Baixo Alentejo e tem umas minas muito grandes de cobre e zinco, fizeram um "herdade" só para as “abertadas”… Lá não entram carros nem máquinas… E todas as “abertadas”, eles e elas, são felizes na sua nova casinha com jardim…

Cansada, mas também muito feliz pela sua boa ação, a Clarinha contou depois à Laura e às sus amigas da Escolinha (o Peter Pan agora está na Terra do Nunca), que a “abertada” já não é mais “desastrada”…

− Já não é atropelada na estrada… 

E lá combinaram, ela e as amigas, virem um dia, nas férias grandes do verão, brincar com as “abetardas” que agora já não são mais “desastradas”…
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Nota do editor

Último poste da série > 29 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25226: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (19): O Braço e a Perna...

sábado, 2 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25230: Os nossos seres, saberes e lazeres (617): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (144): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Visitado, e com imenso agrado, o piso térreo do Museu Nacional de Évora, fui desfrutar da valiosíssima coleção pictórica que ele alberga, estão ali representados os nomes sonantes da pintura antiga portuguesa, o Mestre de Sardoal, Frei Carlos, Grão Vasco, Álvaro Pires de Évora, Josefa de Óbidos, e outros mais. Uma coleção que vai do século XVI à contemporaneidade, continuam as doações e os empréstimos, e não faltam artistas modernos. O ponto alto é dado pelo retábulo do altar-mor, inegavelmente obra de flamengos, como também estará presente Francisco Henriques, um outro flamengo que viveu na cidade no início do século XVI, um dos grandes momentos de apogeu de Évora. Sem pretender enfastiar o leitor, alinham-se algumas dessas imagens que me cativaram, e não esqueci de captar um Santo António bem juvenil no momento da saída, na escadaria. E daqui parti para outra casa de cultura de envergadura, o Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, havia que fazer render o escasso fim de semana neste magnificente centro histórico onde é urgente voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (144):
Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (4)


Mário Beja Santos

O Museu Nacional de Évora – Frei Manuel do Cenáculo, instalado no que foi a residência do Arcebispo de Évora, possui a singularidade de ter coleções que vão desde a presença romana até ao século XX, o visitante pode usufruir de vestígios de casas senhoriais e conventos, de heráldica imponente, peças góticas, alfaias religiosas de lavra impressionante, tudo ao nível do piso térreo. No andar superior, a sua secção de pintura é impressionante, atenda-se que o acervo do museu recolhe obras provenientes de outros tempos religiosos, de doações e não deixa de merecer a atenção as riquezas pictóricas adquiridas fundamentalmente no século XVI, o retábulo do altar-mor da Sé de Évora é bom exemplo, os artistas flamengos trabalharam aqui afanosamente e legaram-nos obras-primas inconfundíveis. Estão presentes alguns dos maiores pintores portugueses e flamengos, como Francisco Henriques, Avercamp, Bruegel, o Jovem, temos Grão Vasco, Frei Carlos, Josefa de Óbidos, Álvaro Pires de Évora, Silva Porto, João Vaz, entre outros. É o resultado desta deambulação que pretendo mostrar ao leitor, seguidamente a itinerância passará para o Centro de Arte e Cultura, Fundação Eugénio de Almeida, outra agradável surpresa.

Nossa Senhora da Graça, Santa Julita e S. Guerito, por Francisco Henriques, pintor flamengo ativo em Portugal entre 1506 e 1518
Retábulo do altar-mor da Sé de Évora, autoria do mestre do Retábulo da Sé de Évora (círculo de Gerard David 1460-1523), Escola Flamenga, circa 1500
Escola Flamenga, Ascensão
Ressurreição, por Gregório Lopes, século XVI
A Virgem e o Menino entre S. Bartolomeu e Santo Antão sob a Anunciação, por Álvaro Pires de Évora, Escola Italiana, circa 1410
Cordeiro Pascal, por Josefa de Óbidos, séc. XVII
Patinagem na Neve, por Hendrick Avercamp, Escola Flamenga, séc. XVI
Porto marítimo ao anoitecer, por João Vaz
Santo António de Lisboa, azulejos do séc. XVII, registo apanhado no corredor, à saída, é uma singularidade pôr o santo na natureza, tem direito a uma aura desmedida, o Menino bem de pé e uma grande cruz no braço direito

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 24 de Fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25208: Os nossos seres, saberes e lazeres (615): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (143): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25210: Os nossos seres, saberes e lazeres (616): Visita técnica no âmbito da minha Ordem Profissional, a OET (Ordem dos Engenheiros Técnicos), à chamada "Linha Circular" do Metro de Lisboa (Hélder Valério de Sousa)

sexta-feira, 1 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25229: Notas de leitura (1671): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Queridos amigos, não é a primeira vez que se refere no blogue a Operação Vulcano, escritores oriundos da Força Aérea a ela fizeram referência, temos aqui o relato pormenorizado das atividades desenvolvidas a partir de 6 de março de 1969, dentro desta saga de atividades que visavam destruir os sistemas antiaéreos do PAIGC no Quitafine. Aqui se conta o que aconteceu, os autores não escondem que havia poucas informações concretas sobre o dispositivo militar do PAIGC na Península do Quitafine, ora as antiaéreas tinham proliferado, Spínola, contrariando o desenho da operação feito pelo Coronel Diogo Neto reduziu a metade o contingente de paraquedistas, e depois veio a surpresa, o PAIGC defendeu-se fortemente, imobilizou a força paraquedista, danificou dois aviões. Houve que abortar a Operação Vulcano, pelo adiante teremos notícias de como continuou, aprendida que fora a experiência amarga.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 4: “A pedra angular”


Os autores estão a analisar as alterações introduzidas pelo novo Comandante-chefe, António de Spínola, no tocante às atividades da Força Aérea. Reconhecia-se que era prioritário fazer calar o sistema antiaéreo do PAIGC, com prioridade para o existente na área de Cassebeche.

À semelhança de operações anteriores, envolvendo paraquedistas, desenhou-se uma operação envolvendo um bombardeamento aéreo inicial, a que se seguia um ataque helitransportado. O ataque inicial foi cometido aos Fiat, procurava-se suprimir as posições antiaéreas conhecidas ou suspeitas. O comandante da Zona Aérea e da Base Aérea 12, Coronel Manuel Diogo Neto, recordou: “Era opinião de alguns pilotos experientes que se fosse possível destruir a ZPU, imediatamente a defesa do PAIGC no local entraria em colapso, o que facilitaria a ação dos paraquedistas.” O projeto deste plano previa duas companhias de paraquedistas helitransportadas que seriam postas no solo a Norte e a Sul da área-alvo. A sua missão era de destruir os posicionamentos do PAIGC, apoiados por um posto de comando DO-27, dois helicanhões, quatro T-6 e os Fiat reabastecidos e rearmados. Estes meios, T-6 e PCV, ficariam temporariamente baseados em Catió, a 45 quilómetros da zona de ação. Todos os Fiat atribuídos à Zona Aérea, 10 dos 11 Alouette III, e a maioria dos transportes de asa fixa, foram comprometidos para esta operação, bem como a generalidade dos pilotos. Na Operação Vulcano participariam mais de 25 aeronaves e 240 paraquedistas, era o maior esforço combinado de ataque de assalto e aéreo até então feito.

No entanto, o planeamento da Operação Vulcano acabou por ser prejudicado por questões que vieram a complicar a execução e o seu resultado. Havia falta de informações no Comando-Chefe quanto à disposição das forças do PAIGC no Quitafine. A informação disponível era vaga e esporádica, aludindo à presença de diferentes grupos de guerrilha “fortemente armados” na Península. Mesmo assim, Spínola reduziu inexplicavelmente para metade o número de grupos de paraquedistas, considerando que uma só companhia era suficiente, e “nada o convenceu da necessidade de empregar as duas companhias”, recordou Diogo Neto. Mas o pior para a Força Aérea era que os canhões antiaéreos se tinham multiplicado “como cogumelos” nas semanas posteriores à sua identificação.

Agendou-se a Operação Vulcano para 7 de março de 1969, não havia ilusões de que as forças portuguesas se iriam defrontar com forte oposição dos grupos de guerrilha. No dia anterior, 6 de março, 60 paraquedistas voaram em C-47 de Bissalanca para Catió, onde já estavam quatro T-6 que iriam apoiar a operação no dia seguinte. No início de 7 de março, numa sucessão de voos em quatro DO-27, chegaram 40 paraquedistas para a segunda onda de assalto de helicóptero. A primeira onda, composta por 40 paraquedistas, deveria vir diretamente de Bissalanca para o objetivo em 8 Alouette III, logo a seguir ao bombardeamento aéreo inicial. Depois de entregar a primeira onda, os mesmos 8 helicópteros Alouette III deveriam voar para Cabedú e regressar à zona de ação transportando a segunda leva de paraquedistas. A missão de ambas as formações deveriam avançar sobre Cassebeche, completando a destruição dos meios antiaéreos do PAIGC, eliminando quaisquer outras posições da guerrilha, ou outras armas existentes.

A Operação Vulcano começou às 7 horas do dia 7 de março, partiu um DO-27 encarregado de realizar o reconhecimento visual da área-alvo. Após o relatório do piloto sobre as condições atmosféricas, dez Alouette III, incluindo dois helicanhões, descolaram de Bissalanca com 40 paraquedistas. O seu sucesso dependia da capacidade do primeiro ataque suprimir a ameaça da defesa aérea para que as armas antiaéreas do PAIGC não atacassem violentamente os helicópteros. Essa tarefa coube aos 7 Fiat disponíveis, três dos quais descolaram de Bissalanca armados com bombas. Estes três subiram a 8 mil pés para um voo de 8 minutos até Cassebeche, a 120 quilómetros de distância. Contornaram a fronteira com a República da Guiné para atacar do lado do Sol, mas os Fiat encontraram imediatamente fogo das armas defensivas do PAIGC de, pelo menos, 7 posições antiaéreas ativas, compostas por 6 armas antiaéreas DShK de 12,7 mm e um ZPU-4 de 14,5 mm de cano quádruplo. Os pilotos concentraram-se na ZPU e lançaram 12 bombas de 50 kg e 6 bombas de 200 kg contra a posição, com o comandante do Grupo Operacional 1201, Capitão Fernando de Jesus Vasquez a reportar em direto o acontecimento.

Uma das posições DShK foi destruída, a parte mais difícil parecia estar feita. Como nenhuma outra atividade antiaérea fora detetada imediatamente após os ataques iniciais, o comandante da Zona Aérea concluiu erradamente que todas as atividades de defesa do PAIGC estavam suprimidas, e transmitiu essa avaliação ao PCV. Dois minutos depois, os Fiat completaram o ataque, os paraquedistas iniciaram a sua missão, protegidos por um DO armado com um foguete e dois helicanhões. Os primeiros paraquedistas pisaram o solo pelas 9h da manhã e iniciaram a sua marcha em direção às posições do PAIGC, a pouco mais de 1 km de distância. Pelas 9h16, deu-se o segundo ataque, um par de Fiat carregado de bombas como os três Alouette III anteriores começaram a atacar o ninho de defesa aérea em Cassebeche, identificando uma sétima posição antiaérea. Quatro minutos depois, a segunda leva de paraquedistas pisou solo e partiu em direção à área do objetivo, foi recebida pelos disparos de armas ligeiras. Pelas 9h27, uma terceira formação constituída por dois Fiat atingiu os lugares de defesa antiaérea à volta de Cassebeche, silenciando uma segunda DShK. Por esta altura, os paraquedistas estavam a ser atingidos por RPG e espingardas metralhadoras; o DO-27, onde funcionava o PCV, informou que havia três posições antiaéreas ativas, uma das quais atingiu a DO numa asa. Estava visto que o PAIGC recuperara do choque dos ataques iniciais, o que deixou Diogo Neto “apreensivo”.

A não eliminação de toda a capacidade aérea do PAIGC impediu que os T-6 e os helicanhões apoiassem os paraquedistas, pelo receio de que devido à sua baixa velocidade acabassem por ser inutilmente massacrados. Até os Fiat estavam em risco, na sua quarta missão dessa manhã, foram recebidos com o fogo das armas de 12,7 mm, o que danificou um dos aviões. Nessas condições, não era possível alcançar os objetivos definidos, uma vez que tudo pressupunha um avanço sem resistência significativa. O General Nico recordou mais tarde que havia uma preocupação crescente que as forças portuguesas ficassem encurraladas numa posição que estava rapidamente em deterioração. A reserva de 25 paraquedistas ficou comprometida, dado que a operação terrestre estava paralisada, enquanto três Fiat chegaram ao local para um quinto ataque contra as posições antiaéreas, trazendo desta vez foguetes e metralhadoras, mas pelo menos dois dos locais das armas do PAIGC permaneciam ativos. Os paraquedistas envolvidos foram atingidos por um intenso fogo inimigo quando estavam a 500 metros do seu objetivo. Foi chamado um outro par de Fiat com o fim de suprimir as defesas do PAIGC e liquidar a persistente ameaça antiaérea, mas um segundo avião a jato foi atingido e danificado pelo fogo de uma antiaérea de 12,7 mm, teve de regressar a Bissalanca e fazer uma aterragem de emergência.

Recordou Diogo Neto que estavam reduzidos a 5 Fiat, havia que considerar a probabilidade de novas perdas, mas também percebeu logo que sem apoio aéreo a recuperação das forças terrestres ficava seriamente comprometida. Pelas 13h30, as três colunas de paraquedistas tinham-se reunido após um sétimo ataque de Fiat contra as antiaéreas, estavam agora a ser flageladas pelo fogo do PAIGC. Pouco depois, apareceram outros três Fiat e lançaram napalm sobre a posição DShK. O ataque falhou, pelo menos três antiaéreas mantinham-se ativas enquanto os paraquedistas continuavam a ser sujeitos a um pesado fogo. Com a ameaça daquele sistema antiaéreo não suprimido, com o elemento terrestre imobilizado e dois Fiats fora da operação, Diogo Neto ordenou prudentemente a retirada de todos os elementos da Zona Aérea, incluindo os paraquedistas, e assim ficou abortada a operação.

Vista aérea de Gadamael na Península do Quitafine. A aldeia e destacamento estavam perto do ataque dos Fiat contra as ZPU do PAIGC, isto em janeiro de 1969 (Arquivo da Defesa Nacional)
Durante a Operação Vulcano (março de 1969), empregaram-se todos os Fiat contra as posições antiaéreas do PAIGC no Sul da Guiné (Coleção José Nico)
Quadro descritivo da Operação Vulcano (Matthew M. Hurley)
Coronel Diogo Neto, comandante da Zona Aérea durante a Operação Vulcano (Arquivo da Defesa Nacional)
Capitão Alberto Cruz, um dos pilotos dos Fiat que participaram na Operação Vulcano (Coleção Alberto Cruz)

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 23 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25204: Notas de leitura (1669): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25216: Notas de leitura (1670): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25228: Tabanca da Diáspora Lusófona (22): Vilma Crisóstomo está de parabéns pelo seu aniversário natalício e porque a partir de hoje é cidadã americana (João Crisóstomo)


1. Está hoje de parabéns a nossa amiga Vilma Crisóstomo, esposa do nosso amigo e camarada de armas João Crisóstomo.

Vilma, eslovena de nascimento, passa a partir de hoje, dia 1 de Março de 2024, a usufruir da cidadania norte-americana, uma prenda muito valiosa, chegada no seu dia de aniversário.
Sendo o João, cidadão luso-americano, uma pessoa muito activa culturalmente e solidário, com provas dadas nos EUA e não só, merece que a sua esposa seja reconhecida com esta distinção. São um casal muito activo, cujas intervenções vão muito para além da comunidade lusitana, e se estende a toda a sociedade americana.
Nova Iorque, 24 de Abril de 2013 > Casamento de João Crisóstomo com Vilma Kracun

2. Vamos transcrever a mensagem que o João, com todo o contentamento de um marido feliz, nos enviou no dia 28 de Fevereiro de 2024:

Caro Luís Graca e Carlos Vinhal,
O que segue não será razão para um “post", mas talvez um tal “cartãozito”, como o Luís Graça costuma dizer, não seja despropositado.
O nosso passado e experiências comuns levaram à criação deste blogue que tanto nos une e aqui partilhamos por vezes coisas que nada têm a ver com a Guiné. Mas esta Guiné fez de todos nós irmãos… e os irmãos partilham as suas vidas. Partilhamos e choramos os momentos tristes e difíceis, mas também celebramos e nos regozijamos uns com os outros nos nossos aniversários e quando surgem momentos em que sentimos que temos mesmo de fazer os nossos amigos saberem o que se passa para celebrarem connosco. Incluindo felizes coincidências.

Vocês lembram-se eu contar ter reencontrado uma amiga de longa data, depois de 40 anos à sua procura. Não era motivado por nada mais do que a saudade de uma amizade. Não havia nada de romance nessa procura. Algumas pessoas suspeitaram e sugeriram ser esse o motivo da minha longa busca. Não era. Os que me conhecem sabem o quanto eu prezo amizades. A perca de um amigo é sempre traumático para mim. E isso sucede porque tanto quanto possível eu procuro alimentar as minhas amizades. Daí as festas familiares que frequentemente tenho organizado quando vou a Portugal, para as quais convido sempre os meus amigos que fiz ao longo da vida, incluindo os meus camaradas/irmãos da Guiné.

Mas, desculpem… pois saí do que estava a contar e tenho de voltar ao que dizia: Num dia 14 de Fevereiro de 2011, recebi uma chamada; que tinham encontrado a Vilma, um dos amigos/as de cujo paradeiro eu não sabia há muito tempo, desde que tinha ido para o Brasil. E já sabem o que sucedeu: o imprevisto aconteceu e ao fim de duas horas, contente por tê-la reencontrado e verificando que tínhamos tanto em comum, eu não estive com mais medidas e sem hesitações convidei-a, pedi-lhe que viesse viver comigo para Nova Iorque.

Sei que estou a ser longo, mas também sei que a nossa amizade me permite estes devaneios. Há três anos ela resolveu pedir a cidadania americana. Mas as coisas complicaram-se porque não pudemos comparecer a uma entrevista. Na altura tranquilizaram-nos, que dentro de algum tempo haveria uma segunda entrevista. Mas entretanto a pandemia e a chegada imprevista de muitas centenas de milhares de refugiados, e outros migrantes em busca de melhor vida, causaram uma longa espera: nem podíamos sair fora dos Estados Unidos ao mesmo tempo, receosos de que uma segunda carta aparecesse com uma data próxima para a entrevista.

Era difícil, mas nada havia a fazer senão ter paciência e esperar. Mas de repente veio a carta: que nos apresentássemos no dia 14 de Fevereiro para a segunda entrevista. Contentes e felizes, ainda por cima era num dia "14 de Fevereiro" como quando a reencontrei, lá fomos e viemos para casa com um documento que dizia: "Passou o teste". ”Parabéns”. Espere uma carta com a data para se apresentar para a cerimónia de juramento…
Entretanto apresentou-se uma razão para eu ir a Portugal. Enquanto esperávamos, a Vilma tinha de ficar, pelo sim e pelo não… não fosse essa carta aparecer quando estávamos os dois fora.

E a carta apareceu assim de repente: que se apresentasse para a cerimónia de juramento para a nacionalidade americana no primeiro dia de Março… É que o dia "1 de Março" é também o dia de aniversário da minha querida…

Que hei-de dizer mais? Que choro, canto e rezo? É tudo isso e muito mais… Andava a dar voltas à cabeça de como festejar o seu aniversário. Parei de pensar mais e aceitei irmos a um encontro da "Academia de Bacalhau”. Como no caso de “encontros" da nossa Tabanca, vamos estar com amigos. Ela ainda não sabe, mas eu já providenciei um bolo de aniversário, e com ou sem boa voz, vou pôr toda a minha gente a cantar.

Não sei se a Vilma é considerada ou não “membro" da nossa tabanca. Mas… mesmo que apenas a título de “esposa dum membro” podem providenciar um “cartãozito” de aniversário para ela? Ela sempre adorou o que apareceu a seu respeito em ocasiões passadas… E vai gostar mesmo dum “cartãozito" também…

Um abraço "parte-mantenhas" mesmo grande.
João

Monte Real > Palace Hotel > 25 de Maio de 2019 > XIV Encontro da Tabanca Grande > Três instantâneos do casal Vilma e João, captados por Manuel Resende

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3. Comentário do "editor de serviço":

Caro João,
Calhou neste dia o teu editor habitual, o Luís Graça, estar de "baixa" por ter sido submetido ontem a uma intervenção para remoção de cataratas. Coisa de velhotes. Assim, estando eu de piquete, fiz o melhor que pude e soube para assinalar este dia de felicidade para a Vilma e para ti. Se ela acrescenta mais um ano à sua existência, também a partir de hoje é cidadã de pleno direito desse grande país, os EUA para nós, USA para os que aí vivem. 

Ciente de que estou a partilhar o sentimento da tertúlia, deixo aqui um beijinho de parabéns e as nossas felicitações para a Vilma e para ti o nosso abraço de amizade. 

Os nossos votos de que sejam muito felizes e tenham saúde para manter o vosso casamento por muitos e bons anos.

Carlos Vinhal

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Nota do editor

Último post da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24983: Tabanca da Diáspora Lusófona (21): Visitando velhos amigos e camaradas... em Portugal (João Crisóstomo, Nova Iorque)