sexta-feira, 31 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25587: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte V: um país apaixonante, cheio de contrastes... e contradições




O Toké (em Timor), ou Tokay Gecko.
Copyright (c) 1998 Richard Ling/GFDL
Fonte: Wikimedia Commons
(com a devida vénia...)
Vd. aqui áudios com as vocalizações
deste pequeno réptil
(Wikipedia, em inglês).
1. Continuação da publicação das primeiras crónicas do Rui Chamusco,  quando ele foi, pela primeira vez, a Timor-Leste (e onde permaneceu dois meses, de 5 de maio a 7 de julho de 2016) (*)

O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em limha reta). 

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste. A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018, a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo).

Nessa primeira viagem  exploratória,  foi decidido, pelo Rui Chamusco e pelo Gaspar Sobral, depois de identificadas as necessidades, expetativas e preferências 
da população local,   construir-se uma escola  nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. 

Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal. Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. 

Nestas crónicas acompanhamos  o dia a dia desta família, que vive no bairro Ailoc Laran, e que durante a ocupação da indonésia viu a sua casa incendiada, tendo-se refugiado nas montanhas como tantos outros timorenses. Ficamos a saber algo mais sobre a história recente de Tim0or Leste.

Dessas crónicas de 2016, sob a forma de diário, decidimos publicar uma boa parte dos apontamentos, dado o interesse documental que nos parece ter para os nossos leitores que, tal como nós, ainda sabem pouco da história, da geografia, da cultura e dos usos e costumes dos nossos amigos e irmãos timorenses. Para além da grande generosidade humana e do talento literário do autor, são crónicas com "cor, sabor e humor", que acrescentam algo mais sobre a sociedade timorense de ontem e de hoje, incluindo pequenas histórias de vida.


Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte V:   

por Rui Chamusco (*)



Rui Camusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra.
Foto: LG (2017).

  • Dia 17 de junh0 de 2016, sexta feira  - Levi, o homem da estátua

Conhecer os heróis enquanto vivos é um privilégio. Aquando da visita à igreja de santo António e aos jardins de Motael tivemos a ocasião de tirar umas fotografias junto à grande estátua de homenagem aos combatentes da resistência, situada no largo da baía e Dili. 

O monumento é imponente pela sua grandeza e realidade nua e crua: dois jovens, um caído sob os disparos inclementes 
da tropa indonésia e outro que carinhosamente o tenta manter consciente para que se lhe possa prestar assistência.

Ambos sobreviveram aos ataques de Dezembro em 1991. Entretanto, Levi foi para Portugal, e em Coimbra licenciou-se em Hotelaria e Turismo e neste momento está integrado na vida ativa de Timor. Hoje teve a gentileza de vir passar grande do dia connosco, em Ailok Laran. 

Pelo que me dei conta Levi está empenhado na construção deste país, bem preparado para enfrentar os desafios de presente e de futuro. Muito interessado na consolidação de um novo partido político que amanhã vai realizar um congresso em Dili. 

Gosto especialmente da forma como aborda os assuntos: com decisão e sempre pelo caminho da não violência. Pronto para o combate de ideias e de programas que possam fazer de Timor um país melhor. 

Este monumento,  símbolo da resistência, personifica e homenageia tantos jovens anónimos que, vivos ou mortos, se sacrificaram em prol da independência de Timor e em particular representa os heróis dos acontecimentos de Montael e do Cemitério de Santa Cruz. 

Dizem que o monumento devia ser mais explícito, indicando o nome dos heróis. Mas toda a gente é unânime em reconhecer que o jovem em terra é mesmo o Levi. E eu feliz por conhecer e falar com esta história viva…

  • Dia 18 de junho de 2016, sábado - A alegria contagiante das crianças

Por mais que se escreva nada nem ninguém conseguirá expressar cabalmente o manancial de virtudes destas crianças: simples como as pombas, alegres como os passarinhos, humildes como os pobres…Sem grandes artefactos para as suas brincadeiras, qualquer coisa lhes serve e despoleta a imaginação. E de repente, num ato de recriação, vejo-me rodeado de meia dúzia de crianças que não param e cuja vivacidade despertam qualquer velho sonolento como eu. Tentam incluir-me na
brincadeira, nem que seja de uma forma passiva. Brincam com o meu cabelo, fazem os penteados que as divertem e uma delas comenta” o Ti Rui tem um cabelo muito bonitu”.

É assim que eu quero continuar a ser, com alma de criança para que possa apreciar e desfrutar da riqueza deste mundo dos pequeninos, que “pula e avança como bola colorida nas mãos duma criança”.


  • 19 de Junho de 2016, domingo- “… Somos crianças de Timor, queremos um mundo melhor.”


Faz parte do refrão da canção aprendida pelas crianças das escolas. É que hoje, domingo, realizou-se uma jornada de sensibilização ambiental na praia de Dolok Oan, uma de duas praias com areia branca da região de Dili. Crianças, pais e encarregados de educação, movimento Tasi Mos. 

E até o Secretário de Estado do Turismo participou na recolha de lixo na praia...  Munidos de sacos pretos depressa os encheram, ficando de novo o areal à disposição dos prevaricadores ambientais. 

É de pequenino que se torce o pepino, diz o ditado. Por isso acredito que estas ações tenham uma influência enorme na educação ambiental do presente e do futuro. Mas há tanta coisa a fazer neste país em vias de desenvolvimento. Quanto lixo a recolher, quantas campanhas a fazer, quantas infraestruturas a implantar! 

O preço do progresso é muito alto. As agressões e a falta de respeito para com a mãe natureza são enormes. O mundo do plástico invade todos os cantos e recantos das ruas, das ribeiras, das matas, dos mares. Muito tem a fazer o ministério do ambiente e do turismo se quiser preservar este património ambiental de que a natureza é pródiga em Timor. Não estraguemos estas belezas que Deus nos dá…


  • 20 de junho de 2016, segunda feira - Finalmente, o número de conta solidária da ASTIL!


Já não era sem tempo. As dificuldades para a abertura de uma conta solidária foram imensas mas finalmente conseguimos o que pretendíamos. O número de conta (IBAN) já pode ser publicado para que as pessoas com vontade de ajudar economicamente o possam fazer com confiança. 

Serei eu o titular, com mais três amigos timorenses que fazem parte do projeto. O controle de entradas e saídas passará por mim, tendo os outros titulares necessidade de pelo menos duas assinaturas para qualquer levantamento ou importância. Qualquer donativo ou qualquer despesa constará obrigatoriamente no dossiê do projeto, de modo a poder ser consultado por quem de direito. Tudo será transparente e devidamente documentado. Não queremos ser em qualquer circunstância objeto de desconfiança ou de más intenções. 

É um serviço humanitário que pretendemos implementar, com incidência particular na construção de uma escola em zona carenciada nas montanhas de Boebau e num programa de apadrinhamento de crianças e jovens nas zonas mais pobres de Dili. 

Muito temos ainda a fazer, mas não desistimos de fazer o bem sem olhar a quem. Ou por outra, olhando para os mais pobres, os que mais necessitam da nossa ajuda. Aceitaremos toda a boa vontade, desde o óvulo da viúva pobre ao donativo mais expressivo de quem mais pode. Que Deus nos ajude!... porque “se o Senhor não construir a casa, em vão trabalharão os seus construtores”.


  • 21 de junho de 2016, terça feira -. Informação aos amigos: Projeto de Solidariedade “ Uma Escola em Timor”

Finalmente, hoje posso anunciar que, depois de algumas dificuldades na criação da conta solidária, já temos o número de conta bem como o respetivo IBAN. A partir de agora quem achar por bem poder e querer contribuir para a edificação da escola em Boibau poderá fazê-lo depositando o seu donativo através do 

IBAN: TL 38 0020124493691000162

Code: CGDITLDI
  
(Caixa Geral de Depósitos – Sucursal Timor / BNU Timor). 
 

Por uma questão de confiança aparecerá como primeiro titular o nome de Rui Manuel Fernandes Chamusco, estando associados mais três titulares para a movimentação da conta, com regras impostas pelo sistema bancário internacional. (...)

O dia 7 de Julho estamos de volta. Até lá… Rui e Gaspar (...)


  • 23 de junho de 2016, quinta feira - O império  do zinco

Dizem que nem sempre foi assim. Mas hoje em dia, quem visita Timor ou por cá permaneça algum tempo, é impossível que não estranhe a quantidade enorme de zinco que impera nas construções. Poucas ou nenhumas casas estarão livres da sua presença, mas é evidente sobretudo nos telhados, barracões, vedações e outras coisas mais. Dá um aspeto de pobreza, de tristeza ( depressa enferruja…) , de abandono. 

É uma questão de eficácia e de custos, dizem.  O negócio foi introduzido pelos indonésios, que no início era considerado um luxo, e que progressivamente foi alastrando a tudo o que é sítio. Por isso podemos prever que este negócio está para durar, no presente e no futuro, dominado pelo império do zinco e administrado pela raínha da sucata. 

Falar a esta gente em telhados com telha de barro ou de outro material é quase uma ofensa porque exclamam logo “é muito caro!”. As pessoas com mais posses, as pessoas ricas optam por telhados tradicionais, feitos com folhas de palapeira (uma espécie de palmeira) e, claro está, com outros materiais acessórios que lhes confere outra categoria em estilo e segurança. Vejam-se por exemplo as construções turísticas. Mas em todo o lado é assim: quem o tem é que o mostra.

No entanto, custa a compreender que sendo Timor Leste um país onde o calor e a humidade tanto se fazem sentir não haja outra alternativa. Estou a pensar nas casas (barracas) normais de timorenses mais pobres e até de classe média, em que as chapas do zinco são a única cobertura, acumulando o calor já de si insuportável em quase todos os dias do ano. 
Será que ninguém do Ordenamento Territorial ou dos Diretórios Municipais estará sensível ao problema?


  • Trocas e baldrocas… um automóvel  por um bicho!

Das primeiras imagens sonoras registadas logo que chegamos a Timor está sem dúvida o “Toké!”, provocado às noites pelo réptil que lhe dá o nome. Este animal muito apreciado em Timor e na Indonésia, tem um valor patrimonial e económico incalculável. Dizem os timorenses que os indonésios chegam a oferecer um automóvel em troca deste querido bicho. 

Um negócio apetecível, não fora o governo timorense ter declarado o seu apoio à preservação desta espécie. Mesmo assim, cá como em qualquer parte do mundo, há-de haver sempre uns “fura-tudo” capazes de dar a volta à lei e aos agentes de modo a conseguirem os seus intentos. 

Cá por mim prefiro ouvir todas as noites a presença do “Tó…ke! Tó…ke!”, que por tradição traz saúde e felicidade. Uma dádiva da natureza, mais um irmão a acrescentar ao Cântico das Criaturas de Francisco de Assis – Louvado sejas meu Senhor pelo irmão lagarto que todas as noites nos anuncia os seus louvores ao som do “Tó…ke! Tó…ke”, dando-nos o exemplo de sermos agradecidos e confiantes na tua proteção. De Ti, Senhor, é a imagem da harmonia universal e da contemplação das tuas maravilhas…

 
  • Dia 25 de junho de 2016, sábado - Irra!  Outra vez?!...


Foi ele, D.Basílio do Nascimento bispo de Baucau e meu ilustre colega de trabalho na Comunidade de Imigrantes em Paris, que propôs o encontro: “dia 25, jantamos em Dili.” 

Tudo bem combinado, com contactos diretos de telemóvel, e vai daí que nem um toque de sua parte. Eu bem tentei mas umas vezes estava incomunicável (“o telefone que contactou não está disponível”), outras chamava mas ninguém atendia. 

Como até agora ainda não houve qualquer justificação sou levado a concluir que foi mais uma “mentira” do Basílio. Não sei como se irá redimir, mas cá por mim sou capaz de lhe chamar algum nome feio. O que mais nos esperará?...

  • Dia 26 de junho de 2016, domingo -  Que susto! O que se passa?...


Eram quase seis e trinta da manhã ( hora local ) quando se ouviu um enorme grito e algazarra. Mais parecia um ataque de guerra. De tal maneira que o Gaspar, muito temeroso por situações que estão a acontecer em Timor, até pensou que seria algum ataque de algum grupo. 

Felizmente eram os festejos do golo de Portugal no jogo contra a Croácia para o campeonato europeu. Como é possível tão longe sentir tanta afeição por Portugal? É verdade que é raro encontrar alguém timorense que não tenha nome ou sobrenomes portugueses, mas acreditar que laços como o futebol, as canções, os cânticos religiosos tenham tanta força e expressão só vendo para crer… 

Bem podemos onfirmar e dizer que se em todas as ex-colónias portuguesas houver tanta afeição Portugal será um país duradoiro porque está no coração destas gentes.


  • Mais prazer em dar do que em receber –  Quem dá aos pobres empresta a Deus


Quando se entra na casa de gente pobre, eles dão tudo o que têm. Tudo o que nós damos não é nada em comparação com a generosidade deles. Podem não ter dinheiro mas sente-se uma felicidade imensa quando somos integrados nos seus mundos, nos seus corações. 

Quem pode ficar indiferente aos sorrisos abertos destas crianças? Ser chamado de irmão, de Ti Rui, de Pai Rui, enaltece-me e alarga a minha família. À semelhança do “Principezinho” de Saint-Exupéry, quando somos cativados por uma amizade sincera não há dificuldades ou obstáculos que quebrem os laços estabelecidos.

Com tanta gente, tantas crianças a querer-nos bem como podemos não ser felizes? E temos o dever de ajudar os outros a serem felizes também. Olho para estas crianças que brincam sem grande soft hard de jogos e dou-me conta que o ter não é mais importante do que o ser. Qualquer coisa, qualquer objeto serve para estimular a imaginação e a alegria do jogo, com algumas regras, mas onde o exercício e o prazer de jogar são bem patentes. 

Talvez seja a velhice já a comandar-me, mas neste contexto apetece-me cantarolar um velho cântico dos meus tempos de mais jovem “ faz-me ser criança entre os irmãos”. Ou então entoar o “ecce quam bonum et quam jucundum” (em portuguªes, "como é bom, como é agradável") pois a simplicidade, a precaridade, a alegria desta gente é tão grande que transborda para os nossos corações. E se é verdade que “pobres e ricos sempre os tereis convosco”,  também é verdade que “quem dá aos pobres empresta a Deus”. 

Quem quiser acumular pontos para o julgamento definitivo é melhor começar desde já a investir em algo com garantia de sucesso. E, que se saiba, vamos todos acabar pobres. Pouco ou nada nos deixarão levar. Sejamos, portanto, sábios e prudentes, para fazermos das nossas vidas algo interessante que sirva para a construção de um mundo melhor e que nos dê a certeza de que valeu a pena passarmos por cá, rumo à pátria definitiva.

  • Que história tão rica, a da família Sobral


Hoje o Gaspar e o irmão Eustáquio foram até à montanha Boebau/Manati e chegaram carregados de muitas histórias e de uma espada, património da família materna, utilizada pelo seu bisavô (que foi liurai, régulo). Teve ocasião de ouvir e gravar os seus ascendentes e o ritual anual que está associado a este objeto ( espada). 

Segundo o relato esta espada matou quatro pessoas nas lutas dos “manuhatis” e data dos anos 1700 e qualquer coisa. Tem sido guardada religiosamente pela família e, todos os anos por altura do ano novo, é celebrado o ritual que consiste em colocar a espada em cima de uma mesa e sobre a folha metálica, são colocados quatro pequenos montinhos constituídos por arroz e carne que são exorcizados pelo chefe de família, pedindo que as culpas das suas mortes não recaiam sobre ninguém da família. Todo o material comestível é em seguida atirado para fora (não é consumido). 

Tudo isto se vem arrastando através de várias gerações. E perante a queixa de que não haveria quem pudesse continuar com esta tradição, o Gaspar aceitou ser ele o continuador deste ancestral costume. Não sei é como ele irá proceder porque trouxe a espada consigo e afirma que vai levá-la para Portugal.

Entendam-se, é o que eu mais lhes desejo. Esta “guerra” não é minha. Mas a mim faz-me confusão.

  • Quem tem cú tem medo!...

Já há muito tempo que não sentia o Gaspar com tanto medo. E aqui estão as contradições do meu amigo. Fala sem medo, diz o que ele acha que está certo (e para ele é o que deve seguir), argumenta com razões válidas ainda que para isso tenha de repetir mil e uma vezes a mesma coisa, faz críticas a quem acha que deve fazer, etc…,etc…

Mas bem lá no fundo ele tem medo de assumir funções, tem receio de viajar em determinados sítios, desconfia de movimentações controladas pelo poder. Está confuso em engajar-se neste contexto e pensa que o melhor é regressar a Portugal onde livremente poderá exercer a sua crítica. Estará ele a ser sensato e prudente em querer armar-se de “o salvador da Pátria”? 

Sei que o amigo Carlos Almeida antes de partirmos lhe disse “ Não te esqueças que deixas uma mulher e uma filha em Portugal|…” Por mim também já foi repreendido algumas vezes, mas o dom da palavra dele tenta sempre vencer-me. Agora aparece alguém, o amigo Levi, que lhe conta coisas em que acredita, e estou a sentir-lhe um nervoso miudinho, com sinais de medo. Mais vale prevenir que remediar,  lhe digo eu. 

Vamos a ver em que alhadas se mete. E estou a lembrar-me da quadra do poeta Aleixo que deve ser lema para toda a gente: “Para não fazeres ofensa / E teres dias felizes / Não digas tudo o que pensas / Mas pensa tudo o que dizes.”

Juizinho,  “pacaça”. Depois não digas que ninguém te avisou… Aliás o Gaspar, ele próprio, tem de vez em quando levos de alguma humildade comentando connosco que é uma pessoa fraca, que não consegue envolver-se neste pequeno mundo de “mafias controladas”. 

Assume que não tem estrutura física nem psíquica para enfrentar este mundo adverso. Em conclusão, vamos ter o Gaspar a lutar como o tem feito até agora pelo desenvolvimento deste país ( e não esqueçamos que ele foi dos primeiros e dos que mais se empenharam na diáspora pela libertação e independência de Timor ) com a pena, caneta, computador, redes sociais, etc… dizendo o que está bem e o que está mal neste país com já 14 anos de independência e que, em muitos campos tanto há a fazer.

Aqui, como em muitos mais países, um dos temas de que mais se fala é da corrupção. Mas fala-se baixinho que as paredes têm ouvidos… e “quem tem cú tem medo!...”


  • Questões de justiça - Os veteranos da resistência

Este é um problema delicado, com difícil resolução. Depois de 14 anos de independência, onde já muito se fez mas muito mais há para fazer, a situação dos veteranos da guerra está a preocupar (a revoltar) boa parte da povoação. 

Uns conseguiram arranjar lugar na administração territorial, encaixaram-se na estrutura estatal com trabalho bem remunerado, cujo salário contrasta com a grande maioria do trabalhador timorense: presidentes, deputados, ministros, assessores, secretários uma legião de “gente boa” ocupando lugares de relevo; outros esquecidos e abandonados à sua sorte, sem qualquer ajuda económica, a lamentarem-se do suor e sangue derramado nas batalhas, da esperança depositada em líderes e programas políticos, da condução e orientação deste país. Promove-se quem pouco ou nada fez; esquecem-se os heróis que arriscaram a vida.

O Painô, jovem dinâmico e com alguma influência no seu meio, conseguiu gravar através de um processo não muito ortodoxo, o testemunho de um ex-combatente, que reproduzo com palavras textuais: ” um caralho! Alguns em vez de combater andaram a roubar bananas e agora recebem pensões e são condecorados. Um caralho!...” 

Pois é, quando a verdade vem ao de cimo mais não resta que a revolta.

O Vitor, que foi comandante na guerrilha, é um dos habitantes de Ailoc Laran. Homem por volta dos 70 anos, tem uma grande família, ainda com crianças. Queixa-se, mas não se revolta, da injustiça a que são votados os veteranos da guerra. Prefere não receber nada que sujeitar-se a uma pensão de miséria. É uma questão de dignidade: andar direito na vida, ( e juro-vos que ele fisicamente anda direitinho) sem ter que humilhar-nos perante os poderosos.

Mas até quando se aguentará esta situação perigosa? Será que o tempo apagará esta mágoa, esta injustiça? Até onde chegarão os clamores dos pobres?!...

(Revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do editor;

Último poste da série > 26 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25562: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte IV: um encontro, privado, com Ramos Horta, colega de escola do Gaspar Sobral

Guiné 61/74 - P25586: Parabéns a você (2277): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 30 de Maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25581: Parabéns a você (2276): Fernando Andrade de Sousa, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) e Joaquim Pinto Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 e CCAÇ 6 (Buba e Bedanda, 1971/73)

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25585: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (45): Há indivíduos com sorte, mesmo na guerra



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


HÁ INDIVÍDUOS COM SORTE, MESMO NA GUERRA

1) - Certa noite, estando de serviço num dos postos de vigia foi encontrado a dormir e o graduado "roubou-lhe" a G3.

2) - Numa operação, o oficial comandante do Grupo de Combate mandou parar o grupo, para os nossos soldados milícias analisarem as pegadas recentes que encontraram no trilho.
Nessa altura surgiram 2 elementos do PAIGC. Houve troca de tiros com os nossos soldados milícias e o nosso soldado "refilão" fez rajada para o local donde tinham surgido os tiros.
Atingiu e matou um dos nossos milícias e só não fez mais vítimas porque o oficial e os outros milícias gritaram para parar o tiroteio.

3) - Retiramos desse local para fazermos a evacuação de 1 guerrilheiro ferido e do nosso soldado milícia morto. Quando encontramos um local adequado para fazer as evacuações surgiu um grupo de "turras" que nos perseguia.
O "soldado refilão" viu o grupo IN aproximar-se, mas não avisou o comandante da secção dele, nem o oficial, nem os camaradas da secção. Agiu por conta própria.
Armou-se em "herói" e, sem avisar ninguém resolveu atacar o IN. Por sorte ou azar a bala não percutiu, mas fez o barulho suficiente para alertar todos os presentes - grupo do PAIGC e o nosso Grupo de Combate.
Este contacto não teve consequências para ambos os grupos.
Após a retirada do PAIGC deslocamo-nos para outro local e fizemos as evacuações.

4) - Mas um "herói lusitano" tem que continuar a ser o protagonista desta epopeia.
No dia 7 de Abril de 1971, o nosso grupo de combate estava de serviço e sofremos um ataque ao quartel.
O nosso "herói" saiu da caserna aos tiros de rajada, a caminho da vala.
Por sorte não matou nem feriu nenhum camarada.
Quando cheguei ao local os outros dois furriéis do meu grupo informaram-me que os soldados se tinham queixado das rajadas do tal camarada.
No final, quando achamos que o ataque já tinha acabado, chamei o "artista" e fiz-lhe ver as asneiras que tinha feito e que podia ter ferido ou morto algum camarada.
Quando ele veio ter comigo, pelo andar verifiquei que ele tinha álcool a mais, e ameacei-o pela asneira que ele tinha feito. Mas o álcool deu-lhe para "refilar" comigo. Preferi terminar aqui, e no dia seguinte voltarmos a falar e proceder de acordo com a reacção dele.

5) - Mas como disse atrás um "herói lusitano" tem que honrar os seus pergaminhos.
Estava se serviço ao posto das 2 às 4 horas da manhã. E o furriel de ronda às 3h45m foi à caserna acordar os soldados para render os postos e foi passar ronda aos postos da tabanca, feitos pelos milícias.
Como o "herói lusitano" não foi rendido às 4h00, fez uma rajada.
Lá veio o furriel de ronda a correr da tabanca para o posto donde tinha sido feita a rajada e encontrou os oficiais e os sargentos todos a pé, para saberem o que se passava. Eu estava de oficial de dia, também me levantei e equipei para ir ver o que se passava.
Como tudo serenou voltei a deitar-me - DEPOIS DE UM ATAQUE DE 30 MINUTOS APÓS O JANTAR, UMA RAJADA ÀS 4H15M É MUITO PERTURBADORA.

Às 6 horas da manhã, o furriel miliciano que estava de ronda informou-me que o capitão queria falar comigo, por causa desta situação.
O capitão queria que eu participasse para dar uma "porrada" ao soldado. Nessa altura já sabíamos que íamos para Nhacra e uma porrada podia originar uma transferência para uma zona de porrada.
Argumentando as consequências, convenci o capitão a não participar e darmos-lhe cabo do corpo = castigo físico.
Propus-lhe que sempre que o soldado não estivesse em serviço fosse trabalhar no heliporto, na substituição os troncos de palmeira que substituíam as valas, etc.
O capitão concordou e lá o safei duma porrada, quando na noite anterior eu estava decidido a dar-lhe um castigo pela irresponsabilidade que ele demonstrou aquando do ataque.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 23 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25554: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (44): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Sobreposição à CCAV 3378

Guiné 61/74 - P25584: Humor de caserna (60): O anedotário da Spinolândia (XI): "Continua, meu rapaz, salvas-te tu para que este batalhão não seja a merda mais completa" (Um anedota contada pelo saudoso Rui A. Ferreira,1943-2022)


1. O nosso saudoso amigo e camarada Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022), ten cor inf ref, que fez duas comissões no CTIG, a última como cmdt da CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, jan 71 / set 72), foi também um talentoso escritor, tendo-nos deixado três livros de memórias....Além de ter sido um grande operacional, gostava também de pregar as suas partidas e contar as suas cenas pícaras... Esta é um delas... Anedota ou não, fica bem na série "Humor de caserna"...

Vamos condensá-la e resumi-la: 


Numa visita a uma guarnição no mato (o que era frequente e de surpresa, e muitas vezes a desoras), Spínola deparou com um comandante de batalhão, "trapalhão, pouco esclarecido, desconhecendo muitas das realidadaes do seu próprio quartel", enganando-se várias vezes ao identificar "os sucessivos lugares por onde iam passando" (sic).

A gota de água que fez entornar o copo foi a visita à "casa do piquete": ao abrir-se  a porta, constatou-se que era uma sala de aulas, onde um militar ensinava a uma classe de miúdos. Enfim, tratava-se de um PEM (Posto Escolar Militar).

Atrapalhado, o professor, que não devia ter dado conta da visita do Com-chefe ao quartel, àquela hora, nem muito menos estava à espera de tão ilustre visitante, "desajeitadamente, não sabendo o que fazer, mandou levantar os alunos".

Spínola, mandou-os de imediato sentar, dizendo: "Continua, meu rapaz, salvas-te tu para que este batalhão não seja a merda mais completa.

Comenta o Rui Alexandrino : "Não sei quantos dias levou este , mas lá levar levou" (pág. 350). (Refiria-se, obviamente, ao comandante de batalhão...)

Fonte: Adapt de Rui Alexandrino Ferreira - "Quebo: nos confins da Guiné". Coimbra: Palimage, 2014, 364 pp.
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25438: Humor de caserna (59): O anedotário da Spinolândia (X): Alferes, cabra de mato!... Pum, pum!!! (David Guimarães, ex-fur mil at art, MA, CART 2716, Xitole, 1970/72)

Guiné 61/74 - P25583: Fotos à procura de...uma legenda (181): Bambadinca, Natal de 1968: Hoje há leitão à Bairrada à mesa do Zé Soldado (Manuel da Costa, ex-sold maqueiro e barbeiro, CCS/BCAÇ 2852, 1968/70)




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Vésperas de Natal de 1968 > O sold maqueiro Manuel da Costa, de bata branca, finge que faz a "vistoria sanitária" aos leitões que irão à mesa natalícia... Leitões "turras", por certo comprados nas tabancas de Nhabijões, consideradas sob "duplo controlo"... Mas a legenda pode ser melhorada pelos nossos leitores (*)... Por exemplo: "o vagomestre perdeu a cabeça"... Ou: "Leitões ? Só de aviário!...". Ou ainda: "Comprados ? Os balantas não os vendiam aos 'tugas', só se fossem 'atropelados' peçlo burrinho"...

Foto (e legenda) : © Manuel da Costa (2015).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Manuel da Costa é o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca. Foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), pertencendo aos serviços de saúde , chefiados pelo saudoso alf mil médico David Payne. E lá também exerceu a arte de barbeiro, escanhoando caras e rapanda couros cabeludos de oficiais, sargentos e praças.

Tem uma página na Net (Nova Barbearia Costa). Foi profissionamente motorista de longo curso. Reformado, tomou conta e remodelou a barbearia do seu pai.(**)

Da sua página do Facebook (ele é também amigo da nossa página, Tabanca Grande Luís Graça),  tomámos a liberdade  de lhe pedir emprestada esta imagem, que fala por si (vd. acima): o nosso soldado maqueiro a exercer, com rigor e vigor, a autoridade de vedor das carnes que hão de ir às mesas  da Consoada (embora separadas) da Nobreza, do Clero e do Povo, em Bambadinca, 1968...

Acrescenta ele, bem humorado: 

(...) Esta foto foiu irada nas vésperas do Natal de 1968 onde estou numa brincadeira fazendo crer que estava a examinar os leitões. Chamaram-me na barbearia que era junto à cozinha e refeitório geral para os praças e cabos. O que está em tronco nu é o cabo cozinheiro Carneiro e o do camuflado era o cozinheiro Teixeira, já falecido" (...)

(...) Fiz parte da Companhia Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão de Caçadores 2852. estava ligado à enfermagem como maqueiro, mas dado a minha profissão de barbeiro que tinha na vida civil desde 1964, comecei a desempenhar essa arte na barbearia do comando, alternando sempre que era preciso vir à enfermaria e aos domingos sempre que o ilustre e saudoso médico Dr. David Payne, já falecido, precisava, lá ia eu fazer psíco às Tabancas só para rapar os cabelos das feridas crónicas dos civis. (...).

Já em tempos o convidei a ingressar no blogue da Tabanca Grande. Ele tem hitórias para contar e mais fotos para partilhar. Não sei se tem aparecido nos convívios anuais da malta de Bambadinca (1968/71): nunca o encontrei, mas eu também sou pouco assíduo (em 28 convívios, fui a meia dúzia)... De qualquer modo, o Manuel da Costa será bem vindo ao nosso blogue. (**)

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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 30 de maio de  2015 >  Guiné 63/74 - P14680: Efemérides (190): o ataque a Bambadinca foi há 46 anos, em 28/5/1969, recorda o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca, o Manuel da Costa, que foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)

Guiné 61/74 - P25582: O Cancioneiro da Nossa Guerra (25): Os Gandembéis - Canto IV, Estrofes de I a XI (Fim) (CAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)



Guiné > Região de Tombali >   Ponte Balana > CCAÇ 2317 (1968/69) >  Rio Balana  "O pequeno destacamento foi um bastião na defesa de uma ponte (sobre o rio Balana)n que a engenharia militar recuperaria, mas que também acabaria por ruir" > Álbum fotográfico de Idálio Reis > Foto 422 > "Aproveitando os restos da antiga ponte, davam-se belos mergulhos para banhos retemperadores"



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 (Gandembel, Ponte Balana, Buba e Nova Lamego, 1968/69) > Julho de 1969 > Foto do álbum de Idálio Reis: "Foi na fonte de Semba Uala, que os nossos corpos se retemperaram de energias abaladas. Também, com exasperados desejos, se buscavam encontros de encantos (...) Junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam-Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas. (...)".




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Mesmo junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam - Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas, como se constata no celebérrimo banho à fula que estas duas bajudas estão a tomar.


Fotos (e legendas): © Idálio Reis (2007).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Última parte de "Os Gandembéis", poema épico-burlesco,
 parodiando "Os Lusíadas", de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010) (foto à esquerda): escrito em 1969,  retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*). Foi ecolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, ex-alf mil at inf da CCAÇ 2317, no seu livro "A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", edição de autor, s/l, 2012 (il, 250 pp.). (O livro é ilustrado por mais de meia centena de fotos dos arquivos do Idálio Reis e dos seus camaradas.) (*)


Sobre o Canto IV (úllima parte de "Os Gandembéis"), explicou-nos oportunamente  o Idálio Reis (**):


Depois de receber ordens para abandonar Gandembel, em 28 de janeiro de 1969, a CCAÇ 2317 passa por Aldeia Formosa e fixa-se em Buba, sede do COP 4 (comandado na altura pelo major Carlos Fabião). Em 14 de maio de 1969, deixa Buba e segue, de avião, para Nova Lamego, região do Gabu, onde irá terminar a sua comissão sete meses depois. Ali foram, finalmente, "gente feliz, sem lágrimas"... E ai tiveram tempo e talento para escrever Os Gandembéis.

Torna-se demasiado evidente que a Ilha dos Amores [Canto IX, Os Lusíadas, de Luís de Camões], tem nesta fase final uma emulação muito mais forte. E não poderia ser doutra forma, porquanto a nossa guerra de Nova Lamego também não tinha cotejo com a de tempos anteriores.

á uma forte razão para que entre um certo sentimento de lascívia neste poiso. A grande generalidade da Companhia, antes de chegar a Nova Lamego, não tinha visto uma qualquer mulher. A guerra tinha facetas pérfidas.

Em Gandembel, não havia população, e a visão de um rosto feminino só era propiciado aquando de alguma evacuação, onde ia sempre uma enfermeira paaquedista. Grotescamente, lembro que quando havia evacuações em que o pessoal sentia que o evacuado era um ferido ligeiro, tal até era motivo para que surgisse um maior aglomerado em torno do helicóptero, para bem visualizar a doce face da enfermeira.

Depois a tabanca de Buba era pequena, e atendendo à muita tropa que por lá andava, tudo estava sob controlo apertado. E um dia Spínola, a queixas do malogrado Carlos Fabião que lhe foi dizer que havia elementos da população que prestavam informações ao IN, o que até era verdade, fez um discurso inflamado à população traidora, e manda vir uma LDG, despachando-a rumo aos Bijagós. O nosso sueco José Belo, com mais tempo do que eu em Buba, talvez saiba melhor contar o enredo de tudo isto.

E depois a Companhia arriba a Nova Lamego, e houve forrobodó. Eu não fui com a Companhia para Nova Lamego, pois fiquei em Buba na entrega do material. Fi-lo voluntariamente, porquanto Carlos Fabião era um homem/militar excepcional; a sua conduta no PREC revela essa sua faceta humanista, e vem a acabar por ser postergado.

Fiquei talvez duas semanas em Buba, mais uma em Bissalanca nos Páras (foram as minhas férias), e quando arribo a Nova Lamego, a primeira notícia que recebo, é a seguinte:

- Meu alferes, metade da Companhia apanhou a venérea!

Os cuidados médicos lá foram sarando essas feridas. Sei de um que teve de ser evacuado para Bissau, e que de imediato foi recambiado para Lisboa. Como foi um homem que nunca mais deu notícias, não sabemos o que lhe aconteceu.

Mas Nova Lamego recuperou energias, aumentou consideravelmente a nossa autoestima, éramos gaiatos felizes. E as narrativas que impendem sobre aquela vila, tem forçosamente de conter essa situação de jovens, com pouco mais de 20 anos, a enlear-se com o sexo oposto, após 15/16 meses sem essa benesse. E, nos nossos convívios, vem sempre uma história de uma bajuda.



Canto IV - Estrofes de I a XI (Fim)

I
Deixando Buba, enfim, do doce rio
E tomando a mala já arrumada,
Fizemos desta terra certo desvio.
E para evitar qualquer cilada,
O Dakota tomámos, suave e frio,
Fazendo boa viagem e descansada:
Melhor é fazer uma viagem de avião
Que andar a pé de arma na mão.

II
Gabu se chama a terra aonde o trato
De melhor alimento mais florescia
De que tinha proveito grande e grato
O soldado que esse reino possuía.
Daqui à Metrópole, por contrato,
Não falta muito tempo à Companhia.
Por toda a parte um grito se apregoa:
“D´ora a sete meses estamos em Lisboa”.

III
Aqui, sublime, o descanso estava em cima,
Que a nenhuma parte se sustinha;
Daqui o fim da guerra sempre anima
O soldado que Nino, furtado tinha.
Logo após ele leve se sublima
A feliz mudança, que mais azinha
Tomou lugar junto do Batalhão
Mas continuamos a dormir no chão.

IV
Fulas são todos, mas parece
Que com gente melhor comunicavam:
Palavra alguma dele se conhece
Entre a linguagem sua que falavam,
E, com pano delgado, que se tece
De algodão, as cabeças apertavam;
Com outro que de várias cores se tinge,
Cada um as vergonhosas partes cinge.

V
Já néscios, já da guerra desistindo,
Uma noite, de amor prometida,
Nos aparece de longe o gesto lindo
Da negra Bajuda, única, despida.
Como doidos corremos, de longe abrindo
Os braços para aquela que era vida
Deste corpo, e começámos os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.

VI
Formosas são algumas e outras feias,
Segundo a qualidade for das chagas,
Que o veneno espalhado pelas veias
Curam-no às vezes ásperas triagas.
Ao pescoço e nos braços trazem cadeias
De contas feitas com sábias magas.
Elas, que vão do doce amor vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas.

VII
Alguns, por outra parte, vão topar
Com bajudas despidas que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam.
Umas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.

VIII
Todas de correr cansam, bajuda pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu de mim foges para a mata escura?
Quem te disse que eu era o que te digo?
Deixa-me ir contigo nesta aventura
E no capim vem sentar-te comigo.
Já que desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo de quem levas a alma.

IX
Já não foge a bela bajuda tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

X
Oh! Que famintos beijinhos na testa,
E que mimoso choro que suava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que amor com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

XI
Ao fim de tanto amor e falsas guerras
Finalmente chegou a hora desejada;
Das gentes nos despedimos e destas terras
Com furiosos gritos e alegria desusada,
Por voltarmos às metropolitanas serras,
Pois temos a comissão terminada.
Não se indigne o herói nem a Pátria querida
Que, por seu nome, aqui muitos deram a VIDA.

(Revisão / fixação de texto: ID / LG)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25573: O Cancioneiro da Nossa Guerra (24): Os Gandembéis - Canto III, Estrofes de I a VIII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)


(**) Vdf. poste dfe 21 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9778: O Cancioneiro de Gandembel (8): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte VIII): Nova Lamego e Cansissé, a " Ilha dos Amores" do pessoal da CCAÇ 2317 (Idálio Reis)

Guiné 61/74 - P25581: Parabéns a você (2276): Fernando Andrade de Sousa, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) e Joaquim Pinto Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 e CCAÇ 6 (Buba e Bedanda, 1971/73)

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Nota do editor

Último post da série de 28 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25571: Parabéns a você (2275): António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV / BCAV 8320/72 e da CCAÇ 17 (Buka e Binar, 1973/74)

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25580: Historiografia da presença portuguesa em África (425): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Pareceu-me útil fazer uma rápida recapitulação dos conteúdos do livro deste médico goês que depois de 12 anos na Guiné se atirou ao estudo para escrever a primeira e até agora única história do território. Não ilude a presença portuguesa como ténue, destaca a crescente competição de franceses, ingleses e holandeses para se apoderarem das nossas posições na Costa Ocidental africana, e como tiveram sucesso, a tal Senegâmbia que ia teoricamente do Cabo Verde à Serra Leoa ficou confinada a um enclave que depois da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886 nos empurrou para a ocupação e fixação administrativa, até então os nossos presídios e feitorias situavam-se primordialmente em zonas litorâneas, até Geba. João Barreto esmera-se por explicar a evolução do território entre os séculos XVII até ao século XIX, deixou no livro uma preciosa relação dos capitães e governadores entre o século XV e o século XIX e vamos agora entrar na história do governo autónomo da Guiné, ele levará este estudo até 1918.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (4)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

João Barreto terá redigido esta singularíssima obra (é a primeira e única história da Guiné) em Lisboa, depois de 12 anos como facultativo sediado em Bolama, consultou muito livro e investigou, soube organizar a sequência cronológica dos acontecimento desde o reconhecimento da Costa Ocidental Africana, a sucessivas expedições, realça as viagens de Cadamosto e de Diogo Gomes, o arrendamento da Costa da Guiné a Fernando Gomes; como se processou a presença portuguesa, as relações comerciais e a vida das feitorias; a perda de influência portuguesa na Senegâmbia designadamente durante o período filipino; como se tentou reagir depois da Restauração com a fundação da feitoria de Cacheu e com as feitorias do rio de Buba, o peso da concorrência inglesa, francesa e holandesa, que pesou até ao princípio do século XX; descreve detalhadamente a história das três fortalezas de Bissau, a s tentativas francesas para tomar posse de Bissau, como foi tumultuosa a presença portuguesa em Cacheu e Farim, desde finais do século XVII e ao longo de todo o século XVIII; e chegados à terceira fortaleza de Bissau, dissolvida a Companhia do Grão-Pará, criada a terceira Companhia de Cabo Verde e Guiné, vai-se abandonando a nossa presença ao sul do Cacine; é nisto que os ingleses desembarcam em Bolama, é o início de um contencioso que culminará com a sentença arbitral de um presidente dos Estados Unidos.

Estamos agora no início do século XIX, a soberania portuguesa assenta entre os rios de Casamansa e de Bolola, com duas capitanias: em Cacheu e Bissau. São intermináveis as insurreições e submissões na Capitania de Bissau, um capitão foi obrigado a fugir para Geba, outro foi vítima de envenenamento. Para pôr cobro ao estado de coisas, o Governo da metrópole convidou Manuel Pinto de Gouvêa a tomar conta da Capitania de Bissau, parte em fevereiro de 1805 de Lisboa acompanhado de 150 condenados do Limoeiro, na vila da Praia juntaram-se mais 80 criminosos de Cabo Verde, assim se organizou a guarnição militar de Bissau. Não obstante, vão suceder-se as revoltas em Bissau e Cacheu, não se pagavam os vencimentos ou chegavam atrasados. Em 1815, ocorre um novo fator que irá influir na administração política e financeira da Guiné: as primeiras determinações para a abolição do tráfico de escravos. Como observa Barreto, se bem que no território guineense o tráfico de escravos tivesse decrescido consideravelmente, não podiam deixar de se fazer sentir os efeitos desta determinação, diminuiu a atividade comercial e alfandegária, houve exaspero entre os indígenas, habituados a ter na permuta de escravos um meio fácil de adquirir os artigos necessários para a vida.

Como já não bastasse a falta de recursos financeiros, chegam primeiros os reflexos do absolutismo e depois a luta entre D. Pedro e D. Miguel. Estabelece-se um posto militar em Bolama e o proprietário Joaquim António de Matos negoceia a cedência da ilha das Galinhas. Finda a guerra civil, há mudanças na Guiné, o Distrito foi convertido em Comarca, reconheceu-se a necessidade de acabar com a autonomia das duas Capitanias de Cacheu e Bissau, colocou-se a sede da comarca em Bissau. É um novo período turbulento, com lutas políticas violentas, na ascensão do liberalismo. É neste contexto que Honório Pereira Barreto entra no Governo da Guiné, esta personalidade ímpar cursou no Colégio dos Nobres em Lisboa, é contemporâneo da invasão dos franceses no Casamansa, começou por firmar a nossa soberania em diversos pontos da colónia, apresenta-se nos Bijagós, faz acordos na ilha de Bissau, informa sistematicamente as autoridades de quem depende de tudo o quanto se está a passar na região do rio Casamansa, protesta constantemente junto das autoridades francesas.

Começam a ser inquietantes as revoltas dos Papéis, cresce a intranquilidade em Cacheu, Honório Pereira Barreto não desfalece e adquire territórios para a Coroa. Noutros pontos da colónia há sublevações, os Biafadas sublevaram-se no rio Geba, tentaram impedir a navegação pelo rio; em meados do século, unificou-se a administração da província da Guiné, acabou-se com os dois distritos autónomos de Bissau e Cacheu, subordinaram-se as duas praças a um Governo único da Costa da Guiné, em setembro de 1851 é nomeado interinamente como governador o tenente-coronel Alois da Rôlla Dziezaski; novas insubordinações da guarnição de Bissau, uma força francesa domina os soldados revoltosos. Honório Barreto volta aos Bijagós em janeiro de 1856, vem com o intuito de obter a boa amizade dos habitantes da ilha e para combater a influência que os franceses e ingleses iam adquirindo, celebra um tratado de paz com o rei de Orango; no ano seguinte, fez-se uma tentativa para a colonização do Rio Grande de Bolola, com imigrantes cabo-verdianos. Honório Barreto pede exoneração do cargo, grupos de influentes de Bissau pedem-lhe a continuação da sua residência ali, o governador-geral de Cabo Verde nomeia Barreto Governador Interino, irá falecer em abril de 1859 na fortaleza de Bissau.

Prosseguem as insurreições e é neste clima que irá ocorrer o desastre de Bolor, em 30 de dezembro de 1878 foi massacrada na margem direita do rio Bolor uma força militar que para ali tinha ido com o fim de castigar os Felupes de Jufunco. Este massacre deixou em estado de choque a opinião pública metropolitana, pensou-se desde logo em dar autonomia administrativa à Guiné e dotá-la com meios suficientes para completar a ocupação militar. É promulgado o decreto de 8 de março de 1879 e nomeia-se o Coronel Agostinho Pereira como Governador da nova Província. Começava então a história moderna da colónia.

Vindo um pouco atrás, há que juntar mais elementos sobre a questão de Bolama, que se reacendeu em 1834, anos depois os ingleses exercem violências contra os moradores de Bolama e há conflitos com as autoridades de Bissau; em 1860, o Governo britânico proclama a incorporação de Bolama na colónia da Serra Leoa, instala-se um posto inglês na ilha. A diplomacia portuguesa entra em campo e propõe arbitragem internacional, depois de muitas delongas, Inglaterra aceita. O presidente Ulysses Grant profere sentença favorável a Portugal.

Em capítulo separado, João Barreto elenca uma relação nominal dos capitães e governadores que administraram a província, é um quadro exaustivo que começa no século XV e vai até à constituição do Governo autónomo da Guiné (1879), de grande utilidade para estudantes e investigadores. O autor irá agora dar-nos uma síntese sobre o tráfico de escravos na Guiné e os factos predominantes dos primeiros tempos do Governo autónomo da Guiné.


S. Domingos - Tipos de mulheres Felupes
S. Domingos - Tipos de Felupes
Cacine - Tipos de Nalus
Guiné - Tipos de Mancanhas
Cacine - Feiticeiro Nalu

Cinco imagens retiradas do Boletim da Agência Geral das Colónias, fevereiro de 1929, ano 5.º, n.º 44, dedicado à Guiné
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
Imagem da fortaleza de Cacheu, 2005
Estátua do presidente Ulysses Grant em Bolama, por Manuel Pereira da Silva
Edifício do BNU, depois Hotel do Turismo, hoje uma ruína, Bolama

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 22 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25551: Historiografia da presença portuguesa em África (424): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25579: S(C)em Comentários (38): Gandembel, em que é que foi diferente dos 3 G (Guileje, Guidaje, Gadamael ?) (Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)


1. Comentário de Alberto Branquinho, advogado e escritor , ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) (*):

Data 28/05/2024, 20:24 

Boa tarde, Luís

Já desisti de insistir com a gente da CCAÇ 2317 para que não se esqueçam que chegámos no mesmo dia (eles mais nós, CART 1689) ao espaço onde Gandembel foi construído. 

Aliás, o primeiro a chegar ao terreno foi o meu pelotão. Eles chegaram de sul com viaturas e não de norte. E que, depois, estivemos com eles durante os primeiros 40/45 dias, até que os abrigos enterrados e cobertos de cibes, chapa de bidon e terra, mais as fiadas de arame farpado ficaram prontos. 

Claro que eles sofreram aquela situação durante mais cerca de oito meses, com os paraquedistas a patrulharem as imediações.

Certo é que nunca falam na (então) velhinha CART 1689.

O Idálio, depois de um mal-entendido, reconheceu isto depois da publicação do livro.(**)

Os 3G  (Guileje, que ficava logo ali, de onde a CCAÇ 2317 veio , Guidage e Gadamael) foram um inferno. O que Gandembel teve de diferente é que se estava a construir um quartel  onde não havia nenhuma construção.(***)


Abraço, Alberto Branquinho

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Notas do editor: