sexta-feira, 12 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25737: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte II: 15 minutos, de ferro e fogo, no K3, em meados de 1963


Foto nº  5


Foto nº 6


Foto nº 6A

Foto nº 6B


Foto nº 7

Guiné > s/l > s/d > O alf mil art José Álvaro Carvalho  (1º trimestre de 1963/meados de 1965) > Nestas fotos do seu álbum ainda não conseguimos identificá-lo: talvez possa ser o militar que se vê na foto nº 6B, em segundo plano, de pefil, de óculos.




Angola > Ponte do rio Cuanza (em contrução, desenhada pelo eng. Edgar Cardoso) > c. 1971 > O José Álvaro Almeida de Carvalho, diretor do departamento de trabalhos externos da empresa L. Dargent Lda. Aqui ainda no início da montagem do tabuleiro da ponte...Viveu 5 anos em Angola (até depois do 25 de Abril de 1974).

Fotos: © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O José Álvaro Carvalho, 85 anos, natural de Reguengo Grande, Lourinhã, entrou recentemente para o nosso blogue. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*). 

Não dispondo da sua caderneta militar (diz que nunca a teve), o Zé Álvaro (como eu o trato, afetuosamente), não sabe exatamente em que data chegou ao CTIG, para render um alferes de uma companhia de intervenção, sediada em Bissau. Aponta para a primavera de 1963, escassos depois da guerra ter "oficialmente" começado, na "narrativa" do PAIGC,  com o ataque  a Tite, na região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963.

Já estava há 26 meses na tropa. E deve ter cumprido mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o segundo semestre de 1965. Passou por Bissau, Olossato e Catió, aqui já a comandanr um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo).


O alf mil Maurício Saraiva,
nascido em Sá da Bandeira,
quando ainda frequentava
 o curso de comandos,
em Luanda, em 1963.
Foto de Virgínio Briote
(2015)
No CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico do fado, "Carvalhinho" (*) . O Mário Dias, o Manuel Luís Lomba, o Virgínio Briote são (ou ainda são) do seu tempo e rconhecem-no.  O Armor Pires Mota (ex-alf mil, CCAV 488/BCAV 490, Bissau, Ilha do Como, Jumbebem, 1963/65) também era do seu tempo (ligeiramente mais novo: jul 63/ ago 65). Era também amigo do então alferes  'comando' Maurício Saraiva, que será depois visita da sua casa, em Lisboa (foto à direita, em q963, quando frequentava, em Angola, o curso de comandos).De acordo com as as suas memórias de guerra, ao oitavo mês de Guiné, o Carvalho (ou "Carvalhinho") ainda estava no Olossato. E no excerto que passamos a reproduzir. preparava-se para fazer uma golpe de mão ao K .  
Por sua conta e risco, tanto quanto dá para perceber. (K, leia-se K3 / Saliquinhedim: 
Saliquinhedim ao Km 3 da estrada Farim-Mansabá, será ocupado mais tarde, no último trimestre de 1965, pela  CCaç 1421).

Na versão, digital, que nos facultou, em formato pdf,  das suas memórias de guerra, os topónimos da Giné aparecem só com as iniciais (como é o caso  de O, 
de Olossato). Não há nomes de militares.  Nem datas.  Esclarecimentos  e informações  complementares têm sido obtidas através das  nossas conversas na Praia da Areia Branca (onde reside atualmente).

Pelas nossas contas (e apenas com base dos livros da CECA), essa companhia para a qual ele terá ido, inicialmente, em rendição individual,  pode ter sido a CCAÇ 273 (mo
bilizada pelo BII 17, Angra do Heroísmo): esteve no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses.)  

Sabe-se que a CCAÇ 273 teve um pelotão destacado no Olossato, por períodos variáveis, em 1963. Era comandada pelo cap inf Jerónimo Roseiro Botelho Gaspar.

Mas voltemos às memórias do Olossato, destacamento que ele vai reforçar,  dois meses depois de estar em Bissau, a fazer segurança a Bissalanca (de 3 em 3 dias) e patrulhamentos nos arredores.  

De acordo com o poste anterior, ele  tinha saído em coluna auto,  para uma missão na região do Cacheu, de que foi desviado, para o Olossato, ao chegar a Mansoa, por ordem do QG (**): 

(...) "O pelotão para aí destacado, não conseguia não só defender o povoado, como até impedir que o inimigo, encurralando-o de metralhadoras apontadas a cada porta do edifício do quartel, um antigo celeiro de amendoim rodeado de arame farpado a distância conveniente, se passeasse impunemente na aldeia, entrando nos dois estabelecimentos comerciais existentes, abastecendo-se do que bem entendia, em troca de requisições supostamente válidas, após ganha a guerra e exercendo junto da população civil branca ou africana as mais variadas formas de propaganda e intimidação.

"Após confirmar por rádio para o QG as ordens que acabara de receber, desviou a marcha no sentido da povoação de 
O[lossato] , entrando na região onde a guerrilha tinha começado a atuar recentemente e era constituída por um polígono com cerca de 120 kms de comprimento na sua maior dimensão e oitenta na outra , cuja principal estrada, que o atravessava em diagonal, estava obstruída por árvores derrubadas assim como todos os pontões e pequenas pontes já destruídas que atravessavam as linhas de água, que eram muitas em todo o território por ser este a foz dum rio importante, que se dividia por grandes e pequenos canais que se ligavam e entrelaçavam entre si." (...)

Portanto, quando chegou ao Olossato, com o seu pelotão, a "guerra subversiva" tinha começado na região do Oio. Estava-se já na época das chuvas. (E na sua terra, Lourinhã, estava-se em plena época balnear.) É uma narrativa, quase telegráfica, incisiva, "pura e dura", que me faz lembrar as crónicas do "Tarrafo",  o livro de 1965, do Armor Pires Mota, que também andou por aqueles lados (sector de Farim), além de ter estado na Ilha do Como (Op Tridente).



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil) > Pormenor: localização de Saliquinhedim / K3, entre o Olossato e Farim. (Não confundir com o verdadeiro Olossato, que fica a sudoeste de Farim, e que está localizado na carta de Binta.)



Guiné > Carta da Província (1961) (Escal: 1/500 mil) > Posição relativa do Olossato, em pleno coração da região do Oio... Do Olossato a K3 / Saliquinhedim eram c. 20 km por estrada. (A o
cupação de Saliquinhedim ao Km 3 da estrada Farim-Mansabá foi feitta pela  CCaç 1421 no final do ano de 1965.)

Infografias:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) 

Parte II:   15 minutos, de ferro e fogo, no K3, em meados de 1963



Durante as sestas, depois do almoço , o sono era calmo e repousado. Mas agora era noite e não conseguia dormir.

− Eles aí estão,  meu Alferes!!!

Choviam tiros por todo o lado. As metralhadoras dos postos principais matraqueavam o mais que podiam à medida que aumentavam os pec-bum dos disparos contrários.

Pegou numa granada de mão e, curvado, correu para o posto mais próximo.

 
Deixem-nos vir!!!

As metralhadoras calaram-se. As palmeiras suavam humidade, indiferentes aos homens e aos ruídos da noite.

Ouviam-se rebentamentos ao longe.

  Estão a estoirar com os acessos!!!

Tinham medo que alguma ajuda fosse pedida, mas não corriam esse risco. À noite o teto de nuvens era tão baixo que o rádio só emitia ruídos.

Chamou o furriel mais próximo.

 
− Não quero mais tiros! Deixem-nos chegar à vedação e depois acendam as luzes exteriores e abram fogo de novo. Por cada tiro quero um homem ferido ou morto! Se se vão embora sem "levar na tromba",  amanhã estão cá de novo!

No dia seguinte:

− Encontrámos alguns rastos de sangue.

− Quantos?

− Quatro.

− Já não foi mau.

O sol a pique aquecia a humidade excessiva, para que as plantas vivessem prósperas, numa inundação de verdura que era preciso destruir diariamente, à volta do celeiro de amendoim, único edifício do aquartelamento.

Durante o dia, a carne dos homens ficava mole. Ainda bem que só havia ataques à noite.

Era a hora do rancho. Os quinze homens do pelotão desfalcado, os nove da secção que o reforçava e os quatro condutores juntaram-se à volta das panelas fumegantes na cozinha de campanha instalada ao fundo do edifício, para receberem a sua ração e irem em seguida para a mesa de refeições, num compartimento separado por divisórias de esteira com 2 metros de altura como todos os outros que formavam as instalações do pelotão.

O impedido aproximou-se:

−  Meu Alferes, o jantar está pronto.

Trazia-lhe a amostra: sopa de feijão, batatas com bacalhau, bolachas, café instantâneo e vinho.

Provou e disse:

 Está bom.

Sentado com os três furriéis à volta duma mesa de caixotes, aguardava em silêncio que o impedido lhe trouxesse a refeição, a pensar que o tempo nunca mais passava. 

Tinha tido 26 meses de serviço militar na metrópole e já estava em África havia oito meses.

O operador rádio trouxe-lhe uma mensagem cifrada do pelotão do alferes que comandava uma guarnição a Norte, a guarnição de B
 [Bigene],  que havia pouco tempo ali tinha estado a contar-lhe do almoço com o comandante da lancha patrulha do rio C[acheu]

Tinha-lhe dito que esse comandante era uma óptima pessoa, uma vez que,  mesmo sem o conhecer, tinha atracado a lancha no cais e convidara-o para um excelente almoço. 

Não lhe apeteceu dizer que aquele almoço se destinava a ele, conforme tinha sido previamente combinado mas não tivera oportunidade de informar o comandante da lancha do desvio que lhe fora imposto e da alteração das instruções do quartel-general.

Na referida mensagem indicava-se em pormenor todo o percurso dos guerrilheiros treinados num campo junto à fronteira do S
 [enegal]. que passavam na região Norte, atravessavam no rio junto à povoação de
K[3],  onde recebiam apoio logístico e seguiam depois por um trilho a corta-mato até à estrada que passava a alguns km do seu aquartelamento, entrando depois na zona que o inimigo pretendia dominar, lutando por ocupar e controlar um território que lhe parecia estrategicamente propício.

Depois do café disse aos furriéis :

− Vamos arrasar o 
K[3].

− Fica a 30 kms.

 Por isso não nos esperam.

Levantou-se da mesa e foi fumar um cigarro sentado do lado de fora do edifício. Não havia vento. O calor continuava a encharcar-lhe o corpo. Tinha anoitecido. As estrelas mal se descortinavam por entre a humidade do ar. Devia ser aí que habitavam as coisas certas e decentes. Dentro em pouco viria mais uma das repentinas trovoadas da época, a descarregar água por todo o lado, a inundar tudo.

Já deitado, pensava que com alguma sorte a operação correria bem. O 
K[3] era a passagem obrigatória dos abastecimentos e dos homens do inimigo, treinados junto à fronteira, que diariamente reforçavam os efectivos da região. Ali se devia esconder todo o apoio necessário à travessia do rio: canoas e barcos de borracha,  como dizia a mensagem cifrada. Nas palhotas da aldeia próxima, ouvia-se o choro de crianças assustadas.

***

Eram 4 horas da manhã. O sargento de ronda que o antecedia, foi acordá-lo:

− Meu alferes, está na hora.

Levantou-se cheio de sono, e acendeu um cigarro que apagou depois de saborear algumas fumaças com força. Deu a volta a todos os postos e parou por fim no último.

− Tudo bem?!

 
− Tudo bem, meu alferes.

Para lá do arame farpado pouco se via além do reflexo das poças de água onde centenas de rãs coaxavam no silêncio da noite. Sentou-se ao lado da sentinela a sacudir os mosquitos que lhe mordiam o corpo por cima do fato de combate.

Já no seu compartimento, estendeu-se na cama à espera do café.

Pensava nas praias da sua terra, naquela altura cheias de gente e sol e paz. Deu-lhe vontade de rir o facto da vida poder ser tão diferente.

O rádio, em escuta, fazia a zoada do costume. Ouviu o ruído dos homens a acordar e foi até à cozinha.

 Quer provar o café,  meu alferes?

 Não, obrigado.

Depois de comer chamou os 4 furriéis ao seu compartimento. Apontou um deles e disse:

 Você entra comigo no centro da aldeia.

Apontando outro disse:

 Você fica no aquartelamento.

Apontando os dois restantes disse:

 
− Vocês entram à direita e à esquerda. 100 balas a cada homem, quatro granadas de mão, uma ração de combate. Levantar às zero horas, partida à uma. Caras sujas com rolha queimada.

Apontou no mapa e disse:

 Seguimos por aqui a corta-mato durante cerca de 20 kms até onde se situa a estrada que conduz ao 
K[3].. Nesta altura estamos a 2 kms do objectivo. Seguimos a pé. Os carros estacionam escondidos. Os motoristas aguardam no máximo 8 horas pelo nosso regresso. Se não regressarmos ao fim desse tempo, voltam para o aquartelamento pela estrada. Se forem descobertos ou tiverem suspeitas disso regressam também de imediato. Se mandar retirar e dispersar, o local de reunião será sempre junto do estacionamento das viaturas mesmo depois destas terem partido. O ataque não pode demorar mais do que 15 minutos. Ao fim desse tempo retiramos à minha ordem. Se houver algum tiro prévio que nos denuncie, abandonamos o objetivo, dispersamos e retiramos para o ponto de reunião sem atacar. Vamos entrar de Este para Oeste,  destruindo tudo o que for útil ao apoio do inimigo.

Apontou um furriel e continuou :

 − O Furriel J, da 1ª secção que entra pela esquerda, vai passar no rio e com granadas de mão o seu pessoal, destrói todas as canoas assim como qualquer outro tipo de embarcação. A segunda secção dá-lhe apoio. Hoje à tarde quem não estiver de serviço deita-se e procura dormir. Podem retirar-se.   [...]

 Na madrugada seguinte, á saída da povoação  [do Olossato],  entraram no mato. As viaturas, ligadas entre si por correntes, roncavam no trilho enlameado estreito demais para elas. A vegetação rompia as capotas. Os homens seguiam em silêncio. O domínio do medo torcia-lhes as caras pintadas. De quando em quando era necessário que os guias indígenas procurassem melhores trilhos explorando o caminho mais à frente. e, em cada uma destas paragens, os soldados saltavam e escondiam-se no mato. Os motores ferviam. 

Ao fim de 3 horas, encontraram a estrada que levava a K[3]. Esconderam as viaturas e dentro em pouco os gritos da floresta tornaram-se normais. Caminhavam curvados, a um e outro lado da estrada em fila indiana, em silêncio. Parecia participarem num jogo de segredos fora do tempo, em que jogavam a vida.

A humidade diluía o suor, tornando-lhes o corpo peganhento, as roupas pesadas, repulsivas, a cara negra com riscas brancas. Pousavam os pés no chão com todo o cuidado, e investigavam com os olhos, reflexos e sombras. Sabiam bem o que os podia denunciar. 

Há mais de 1 ano que andavam metidos naquelas andanças. Agora davam mais importância  vida, porque a morte, na guerra é sempre uma derrota.

 [Ele, o alf Carvalho], seguia à frente com os guias. Em cada curva do caminho levava dois homens e avançava algumas dezenas de metros. Só depois o resto do pelotão avançava.

A terra exalava humidade e calor. Os mosquitos não os largavam há muito. Zumbido enlouquecedor,  ávido de sangue quente.

Perto da aldeia, abandonaram a estrada e redobraram as cautelas. O céu, com rasgos de luz menos escura, anunciava os sons da manhã.

Progrediam agora a dois e dois, de abrigo em abrigo. A alguns metros das primeiras cubatas, sentada no chão e encostada a um tronco velho, a primeira sentinela dormitava. Foi engolida em silêncio pelas facas de dois soldados.

Alguns cães ladraram. Farejavam sarilho. Rebentou a primeira granada. Daí em diante foram sombras vertiginosas, respirações de morte, ferro e fogo, gritos, ferro e fogo, confusão, instantes infernais, ferro e fogo, palavrões, guinchos, ferro e fogo, gemidos, correrias, aflições, ferro e fogo, e cubatas a arder reflectidas na água mole e suja do rio e tiros, tiros e explosões.

Veio depois o silêncio da retirada dispersa e rápida, corrida louca para o ponto de encontro junto das viaturas, com tiros ocasionais a persegui-los. Contou os homens já com os motores em marcha. Estavam todos. Regressaram.

***

Levantou-se. Tomou o pequeno almoço e foi passear pela povoação.

 
− Bum dia, noss' alfero.

As poucas casas dispostas dos dois lados da estrada faziam-lhe lembrar a aldeia onde tinha nascido.

O inimigo lutava o mais que podia para arranjar simpatizantes e para isso não molestava a população civil,  branca ou negra. Só em ultimo caso empregava a força.

Homens e mulheres faziam a sua vida de todos os dias como se nada houvesse, mas,  por de trás dos olhos de cada um, lá estava o terror, a duvida, a ansiedade, a insegurança da hora seguinte. Os nervos tensos à espera do mínimo sinal para fugir, recolher ao abrigo possível.

Depois da sesta da tarde, verificou a situação de todas as medidas defensivas instaladas. Esperava uma represália. Passou o resto da tarde a estudar a forma de melhorar as defesas existentes e implementar métodos de ataque em situação de fogo como sair do aquartelamento através de trincheiras etc.

A noite adivinhava-se pesada, escura, trovejante, desagradável. São estas noites que escondem medos e vergonhas, disfarces e desumanidades. Mas não são noites de guerra, porque a falta de claridade dificulta os movimentos.

Pensava em tudo isto depois de dar ordem de prevenção, e se encostar solitário junto ao abrigo duma sentinela.

Estava tudo a postos para mais um jogo de morte.

O pequeno Unimog blindado com chapas de bidão endireitadas, tinha a traseira encostada à porta principal do celeiro de amendoim que servia de aquartelamento. 

Junto a esta porta, o piso do edifício era sobrelevado em relação ao chão cerca de 1,2 metros, a fim de permitir o carregamento fácil dos camions de transporte que em tempo aí se abasteciam.

A corda amarrada ao “cavalo” de arame farpado que na vedação servia de porta, estava estendida no terreiro e entrava no interior do edifício de modo a que daqui, puxando-a,  se desobstruísse a entrada e o Unimog pudesse sair.

As metralhadoras das duas portas foram abastecidas com mais caixas de munições. Os dois morteiros, um atrás e outro à frente,  entrincheirados também.

Fora enviado para ali porque o destacamento anterior tinha sido várias vezes encurralado no aquartelamento com fogo cruzado inimigo que,  após enfiar uma metralhadora a cada porta, se passeava no povoado abastecendo-se nos estabelecimentos existentes, a troco de improvisadas requisições supostamente válidas, alardeando o seu poder e exibindo a sua melhor propaganda.

Tinha esperança de que com o seu pelotão isso nunca acontecesse.

Todas as máquinas de guerra do destacamento luziam limpas e oleadas, possivelmente satisfeitas por poderem vomitar fogo tão frequentemente. Tinham-nas feito para isso.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos, parênteses retos: LG)
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de  
26 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão

Guiné 61/74 - P25736: Parabéns a você (2289): SMor Paraquedista António Dâmaso das CCP 121 e CCP 123 do BCP 12 (Guiné, 1969/70 e 1972/74)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 9 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25728: Parabéns a você (2288): Adriano Moreira, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70) e Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto da CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa e Empada, 1968/70)

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25735: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (51): Operação Jaguar Vermelho - I: dia 26 de Maio de 1970



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


OPERAÇÃO JAGUAR VERMELHO - I

Para quem não sabe, informo que a Operação Jaguar Vermelho1 foi uma grande operação na zona do MORÉS, que ficava a cerca de 5 ou 6 Km, em linha recta, dos nossos quartéis do OLOSSATO, onde estava a minha CCAV 2721 e de MANSABÁ, onde estava a CART 2732, do Carlos Vinhal.

Durante um mês, aproximadamente, os nossos aviões Fiats e T-6 iam lá várias vezes largar as bombas.
E eram bombas de "pouca potência".
Eram tão "fraquinhas" que quando rebentavam, até as casas do Olossato tremiam e muita população que vivia sob controle do PAIGC se ia entregar nos nossos quartéis.
E assim chegou o dia 26 de Maio de 1970.
Localização do MORÉS - Região do Oio - no triângulo formado pelos itinerários Mansoa-Bissorã-Mansabá-Mansoa
Infografia: © Luís Graça & Camaradas da Guiné


1970/MAIO/26 ÀS 09H00M

Às 9H00M o meu grupo de combate (4.º GComb), reforçado com 15 milícias, saiu para a região de BISSANCAGE, onde encontrou um trilho muito recente e batido, de MORÉS para MADINA MANDIGA.
O alferes Silva decidiu emboscar neste local.
Enquanto o alferes Silva estava a instalar os primeiros elementos do 4.º grupo de combate, que eram milícias, surgiram 2 elementos inimigos armados.
Deste contacto resultou o ferimento e captura de 1 elemento inimigo e a fuga do outro.
Neste contacto também resultou a morte de um soldado milícia nosso, que foi morto pela rajada dum soldado nosso (FR) que, por precipitação ou por medo fez fogo para o local onde estava o alferes e os soldados milícias e só parou o fogo quando o alferes e os soldados da milícia gritaram para parar o fogo.
Não sei se o alferes tinha avisado o que se estava a passar, mas o soldado "tinha" que saber que estavam ali os nossos militares.

Quando a situação estava controlada e trouxeram o guerrilheiro para o local onde estava o resto do grupo de combate, os outros milícias queriam matá-lo à pancada. Tive que intervir para acabar com esta cena de vingança. Mas há uma frase dum soldado milícia nosso que não esqueci, nem esquecerei e que é a seguinte:
- "Furriel, se turra apanha nós (e fez um gesto com o dedo indicador no pescoço = corta-nos o pescoço OU mata-nos) mas se apanhar pessoal branco trata-o bem".

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 4 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25715: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (50): Ataque ao quartel no dia 12 de Maio de 1970

Guiné 61/74 - P25734: In Memoriam (506): Armando Carvalhêda (1950-2024), "um senhor da Rádio", que passou pelo Programa das Forças Armadas da Guiné, o "PIFAS", entre Abril de 1972 e Setembro de 1973, morre aos 73 anos (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS - TSF)

IN MEMORIAM


ARMANDO CARVALHÊDA (1950-2024)


1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS, TSF  (Piche e Bissau, 1970/72), com data de 10 de Julho de 2024:

Caros amigos,

Fiquei surpreendido pela notícia do falecimento deste nosso "camarada da Guiné" que esteve em Gadamael e depois no PIFAS.

Como radialista foi um grande divulgador da música portuguesa.

Não pertenceu ao nosso Blogue por incompatibilidades com outra pessoa.
Se acharem que é pertinente, podem usar, no todo ou nas partes que melhor considerem.
Se acharem que não tem cabimento ou tem pouco, pois então arquivem...

Abraços
Héder Sousa



SOBRE O ARMANDO CARVALHÊDA

Como já se devem ter apercebido, faleceu o Armando Carvalhêda1, nosso camarada da Guiné, que teve alguma notoriedade no PIFAS.

Natural de Almada, passou a infância e juventude em Setúbal. Teve a sua primeira experiência radiofónica na primeira rádio-pirata nacional, o Rádio Clube de Alcácer do Sal, onde esteve em 1967.

Foi mobilizado para a Guiné, colocado em Gadamael mas depois foi cooptado para O PIFAS.
Quando voltou acabou por integrar a Emissora Nacional e já mais recentemente dava corpo a um notável programa de defesa e divulgação da música portuguesa, designado por “Vivá Música”.

Amigos comuns aqui de Setúbal, que com ele partilharam aulas no então Liceu de Setúbal, recordaram-me que, para além de excelente amigo era um brincalhão compulsivo.

Entre várias peripécias, mais ou menos divertidas, contaram-me uma que se passou na época de Carnaval, em que o bom do Armando resolveu colocar várias “bombinhas de carnaval” numa sanita da Escola e, claro está, o excesso fez rebentar aquilo. Contactado o pai (naqueles tempos havia essa noção de responsabilidade…) para que a situação fosse reposta, o Armando foi “aconselhado” pelo pai a transportar a nova sanita às costas desde o local da compra até ao Liceu (cerca de 400 metros), o que ele fez perante o divertimento do pessoal discente, principalmente o feminino.

O Armando era também conhecido do “nosso outro Armando”, o Pires.

Tentei que entrasse ou colaborasse com o nosso Blogue, conforme podem apreciar na troca de mails que tivemos, mas o seu (dele) desentendimento com um outro elemento do PIFAS não lhe permitiu.


********************

2. Mail que enviei a 06/03/2012

Boa noite!

Peço desculpa duma intromissão deste tipo mas estou como uma curiosidade que não consegui conter.

E curiosidade sobre quê? Bem, sempre que me desloco de carro e como tenho quase sempre sintonizada a "Antena 1", ouço muitas vezes programas do "Armando Carvalhêda" e dou por mim a pensar: "será que eu o conheço?"...

É que tenho ideia de haver um "Armando Carvalhêda" que trabalhou na "Rádio Azul", em Setúbal e também em outros locais aqui à volta de Setúbal, onde vivo, e com o qual já tive contactos. E acresce ainda que esse mesmo "Armando" foi meu contemporâneo na Guiné, em Bissau, e era conhecido dum camarada meu aqui de Setúbal, chamado Nelson Batalha.

Acontece ainda que estou 'associado' a um blogue de pessoas que estiveram na Guiné, a que chamamos "Tabanca Grande", promovido por um tal Luís Graça, professor na Escola Nacional de Saúde Pública, podendo também ser encontrado por "Luís Graça e Camaradas da Guiné" e acontece ainda também que, por estes dias, nesse blogue têm passado muitas recordações sobre um programa que por lá havia, o PFA (programa das Forças Armadas), mais conhecido na gíria por PIFAS.

Recordação atrás de recordação, veio inevitavelmente à baila o nome do João Paulo Diniz e também apareceu citado o "Armando".

Acresce que o JPDiniz, alertado pelo Joaquim Furtado sobre a existência do Blogue, foi lá espreitar e já entrou em contacto connosco propondo-se até para participar no nosso Encontro, o VII, que terá lugar em Monte Real em 21 de Abril.

Por isso, meu amigo, se for o "Armando " errado, peço desculpa pela intromissão e pelo atrevimento.

Se for o "Armando" certo, fico muito satisfeito e mais ficarei se houver 'volta do correio'.

Com consideração
Hélder Sousa


********************

3.
Mail recebido a 07/03/2012

Olá Hélder,
De facto sou eu mesmo esse tal Armando Carvalhêda. O que esteve no PFA na Guiné; o que passou em dois momentos diferentes pela Rádio Azul; e, ainda antes de tudo isto, o que estudou no Liceu de Setúbal e no Externato Frei Agostinho da Cruz; o que, enquanto estudante, ajudou a fazer (e a desfazer…) em 66/67, o Rádio Clube de Alcácer do Sal – RCAS.Emissor 225.

É assim: acabamos sempre “descobertos” e chamados a “prestar contas”…

Um abraço do
Armando Carvalhêda
Direção de Programas Rádio
armando.carvalheda@rtp.pt


********************
4. Mail enviado a 12/03/2012

Ora então, muito boa tarde, ou melhor, boa noite! e... "VIVÁ MÚSICA!"
Armando, foi com bastante emoção que vi e li a tua resposta ao meu mail 'exploratório'.
E antes de continuar quero-te pedir desculpa por não ter reagido logo de imediato, mas tive um problema com o carro e outras coisas e só agora estou então a dar seguimento.

Pronto, 'foste descoberto', como dizes. Bem que tinha 'quase' a certeza que eras tu mas como já passou tanto tempo podia ser mais a vontade que fosses e não estava a querer 'dar barraca'.
De facto essa tua frequência do Liceu de Setúbal é que te deve ter dado o conhecimento do Nelson Batalha ("o Nelsinho de olho azul, o menino-bonito do Bairro da Conceição", como ele costumava dizer, e que casou com a namorada de sempre, a Zezinha, filha do Chico Primo, grande jogador do Vitória).

Na época eu não tinha relação com Setúbal, vivia em Vila Franca de Xira, só vim para cá 2 meses antes de 25 de Abril de 74 e foi portanto com o Nelson e através dele que eu estive contigo em Bissau algumas vezes. Nós pertencíamos às Transmissões, fizemos o curso do STM juntos, ele foi para Catió onde foi ferido e eu fui para Piche. Depois regressámos a Bissau e fomos integrar e desenvolver a "Escuta" donde enviávamos trabalhos para a ACAP, entre outras coisas.
Entretanto tenho também a ideia, como já disse, de ter estado posteriormente contigo na "Rádio Azul" e não sei ao certo mas talvez também na "Rádio Pal" ou qualquer coisa assim, nuns programas de divulgação de empresas de região, mas posso estar a fazer confusão.

Como te disse antes, o João Paulo Diniz, informado pelo Joaquim Furtado, consultou o tal Blogue de que te falei, quando na semana passada se fizeram vários 'post' e comentários sobre o PFA ou "PIFAS" como a malta mais genericamente se referia ao programa, e entrou em contacto através dos endereços que lá estão sendo que já se inscreveu para participar no nosso VII Encontro a ocorrer em Monte Real no sábado 21 do próximo mês de Abril. Muito sinceramente gostava de te ver por lá e acho até que seria muito engraçado e curioso essa 'reedição' do JP Diniz e Armando Carvalhêda. Tenho a certeza que muitas lágrimas furtivas haveriam de afluir a muitos olhos...
Entretanto, para não te maçar com estes revivalismos, fico por aqui.
Quando quiseres e tiveres paciência responde e diz qualquer coisa.

Um forte abraço
Hélder Sousa


********************
5. Mail recebido a 13/03/2012

Olá Hélder,

Pois é… como se vê, cada vez menos, é impossível viver isolado e passar despercebido. Neste caso, é saudável e permite retomar memórias que habitam as zonas mais “adormecidas” do nosso cérebro.
Não sei o que é feito do Nelson, meu companheiro do Liceu e do Colégio, mas também meu vizinho – visto eu ter morado perto de sua casa no Bairro da Conceição – e ainda companheiro de músicas. Ele tocava teclados e eu tinha a mania, entre outras, que tocava bateria. Depois dessa vivência conjunta em Setúbal, reencontrámo-nos em Bissau.

Andava eu a dizer mal da minha vida, após ter desembarcado e sido “abandonado”, aguardando colocação – viria a sair-me em sorte a “bela estância turística” de Gadamael –, encontrei o Nelson que me proporcionou um luxo verdadeiramente principesco: um duche numa vivenda que ele tinha alugado com outros companheiros de Transmissões, ali para os lados do QG.

O que um e-mail pode espoletar…

Já agora, fui de facto contemporâneo do J. Paulo Diniz no PFA mas, ao contrário das boas recordações que o Nelson me suscita, em relação a ele nada de bom retenho. São, enfim, histórias antigas, e algumas até dolorosas, já com quatro décadas de “pó” acumulado nas prateleiras da memória.

Um abraço grande do
Armando Carvalhêda


********************
6. Mail enviado a 26/03/2012

Olá, Armando!

Retomemos então as nossas informações e memórias.

Começo por te agradecer o que escreveste, que me avivou ainda mais a memória e, sem nostalgias, ajuda a recarregar baterias.

Falo agora do Nelson.Pois o nosso amigo Nelson, mercê da nossa vivência, amizade e companheirismo, acabou por ter bastante influência no facto de eu ter vindo trabalhar para a Sapec e viver em Setúbal. Eu sou 'produto' da margem norte do Tejo. Nascido numa aldeia perto do Cartaxo, Vale da Pinta mais exatamente, mas logo com 3 meses a seguir para Vila Franca de Xira onde bebi toda a formação que aquela boa terra me foi capaz de possibilitar e eu de absorver.
O Nelson e a mulher, a namorada de sempre, a 'Zezinha' filha do Xico Primo, acabaram por ser os meus padrinhos de casamento, melhor dizendo, da cerimónia religiosa ocorrida em 1998, já que o casamento civil ocorreu em 1972 quando ainda estava na Guiné.~

Referiste o 'banhinho' que te proporcionaram lá numa vivenda.... tudo certo, apenas que não era uma vivenda alugada pelo Nelson e amigos mas sim alojamentos proporcionados pelo Agrupamento de Transmissões a sargentos e furriéis. Se te conseguires lembrar e visionar era um conjunto de três edifícios separados, cada qual com três fogos. O fogo do meio, do edifício do meio, era onde funcionava a "Escuta", onde na ocasião o Nelson, eu e mais uns quantos desempenhávamos funções. Olhando da estrada de acesso ao conjunto para a frente desses edifícios, o fogo à direita da "Escuta" era onde, num dos três quartos que cada fogo possuía, eu e o Nelson tínhamos o nosso poiso. Portanto, na época, o quarto tinha dois ocupantes, eu e ele (e umas osgas, e baratas e mosquitos, e...).

Dos conhecidos do Nelson, aqui de Setúbal, para além é claro, também estive lá com um tal João, sobrinho do 'Isidro dos frangos' mas lembro-me de pouco. Ele também me falou de um tal Pedro 'qualquer coisa', também morador no Bairro da Conceição, salvo erro na Av. Jaime Cortesão, que vai dar lá abaixo ao Quebedo e que o pai dele era (ou foi depois) diretor da Alfândega. Para não falar do Vítor Raposeiro, que ele chamava de Vítor 'Caniços' e que era guitarrista num dos conjuntos que havia na época e que foram aos 'concursos yé-yé'. Sei que também foste colega do António Justo Tomaz, que também esteve na Guiné e que foi requisitado para a Câmara de Bissau e mais tarde Presidente do Vitória.

Do Nelson posso falar-te de mais coisas com amizade, respeito, consideração, pois tenho muitas histórias dele e/ou passadas com ele.

O problema é o Nelson atual e foi por isso que demorei mais tempo a responder. Vacilei em dar-te as notícias mas agora acho que as coisas são como são e há que falar francamente. O nosso amigo Nelson está com um problema de 'alzeimer', que se tem vindo a agravar progressivamente e agora está muito complicado. Quando falamos com ele, às vezes lembra-se, outras não, e o tipo de linguagem é quase só 'pois, pois, pois', 'o dinheiro, pois, pois, o dinheiro' (está a chamar dinheiro a tudo por lhe faltar o vocabulário).

 Isto custa-me muito, a impotência de fazer qualquer coisa, está a rebentar com os nervos dos familiares, como calculas. Já não estou com ele há mais de um mês, embora telefone com regularidade a saber dele.

Enfim, amigo, uma nota triste, mas achei preferível dar-te conhecimento.

Agora, um outro assunto. Com que então Gadamael... não podias ter tido melhor sorte... local arborizado, perto dum rio, com muito fogo de artifício, nada de monotonias.... quando hoje se conta um bocadinho dessas autênticas epopeias a malta nova não acredita e pensa que se está a exagerar. Enfim, espero que não tenham que passar por nada semelhante.

Relativamente ao resto.... pois, sendo uma coisa que não te é agradável, não falo disso. Apenas gostava que desses então uma olhadela no tal Blogue "Luís Graça e Camaradas da Guiné" (ou então procura por "Tabanca Grande") e diz-me qualquer coisa. O meu interesse é que gostava de ter alguma intervenção tua em termos de recordação da tua participação na Guiné (em geral, ou no PIFAS em particular, se possível). Isso pode ser entrando diretamente em comunicação para o Editor de acordo com os endereços lá disponibilizados ou então para mim que posso veicular, já que sou um "colaborador permanente".

Já agora, que estou numa de escrever... talvez pudesse ser para ti uma proposta de trabalho ires repescar o que fazem (individualmente ou ainda como grupo) as várias 'bandas' ou conjuntos desses tempos dos concursos no Monumental...

Um forte abraço.
Hélder Sousa


********************
7. Mail enviado mais tarde, a 07/12/2015

Meu amigo Armando
Aqui te envio um texto (um 'post') saído na passado sábado no Blogue de que te já falei, "Luís Graça e Camaradas da Guiné". (trata-se do “post” 15449).

É a propósito da tua intervenção no programa das músicas do tempo da guerra, do Marinho.
Vê se gostas.

Acho que está bem...

Abraço
Hélder Sousa


********************
8. Mail recebido a 09/12/2015

Olá Hélder,

É sempre bom recordar momentos marcantes da nossa vida. E como a Guiné nos marcou a todos…
Obrigado pelo que escreveste sobre o que tem sido o meu percurso profissional.

Um abraço forte do
Armando Carvalhêda
Antena 1


********************

Depois disto não houve mais troca de mails.

Cheguei a tentar combinar com o Armando Pires aparecer num dos programas ao vivo do “Vivá Música” mas por diversas razões nunca aconteceu.

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

_____________

Notas do editor:

[1] - Vd. post de 5 DE DEZEMBRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P15449: O PIFAS de saudosa memória (19): O Armando Carvalhêda no programa "Canções da Guerra", do Luís Marinho, na Antena Um: "O PIFAS, o Programa das Forças Armadas, era mais liberal do que a Emissora Nacional"...:

1. O Armando Carvalhêda é outro dos grandes senhores da rádio (*) que passou pelo Programa das Forças Armadas, o popular PIFAS, entre abril de 1972 e setembro de 1973, conforme ele recorda em conversa com o Luís Marinho, no programa da Antena Um, Canções da Guerra. O seu depoimento pode ser aqui ouvido, em ficheiro áudio de 4' 55''.
Segundo o Armando Carvalhêda, o PIFAS, transmitido pela Emissora Oficial da Guiné, era "mais liberal" do que a estação oficial, transmitindo canções de "autores malditos", como José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Zeca Afonso, que não faziam parte da "playlist" (como se diz agora) da Emissora Nacional, em Lisboa.
Eram os próprios radialistas, os locutores de serviço, jovens a cumprir o serviço militar e coaptados para a Rep Apsico, para o Serviço de Radiodifusão e Imprensa, que faziam "a pior das censuras", que era a autocensura...
O Armando dá um exemplo, com o LP do José Mário Branco, "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" (que tinha sido editado em Paris, em 1971)... Havia um consenso tácito sobre algumas músicas que não deviam passar no PIFAS. Neste LP, era, por exemplo, o "Casa comigo, Marta!"...


Último post da série de 5 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25718: In Memoriam (505): A. Marques Lopes, cor inf ref, DFA (1944-2024), um histórico do nosso blogue: despedida amanhã, às 11h45, no Tanatório de Matosinhos; e Elisabete Vicente Silva (1945 - 2024), viúva do nosso camarada, dr. Francisco Silva (1948 - 2023): o funeral é hoje, na igreja de Porto Salvo, Oeiras, às 16h00

Guiné 61/74 - P25733: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (3): "A morte da professora de Samba Culo ainda me pesa na consciência"...



"Um vaso de flores" (Imagem: Página do Facebook do A. Marques Lopes, 19 de abril de 2023): 

(...) "Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro." (...)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967/69) > O A. Marques Lopes em 1967, com duas bajudas da localidade .  

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Nunca é demais relembrar aqui a morte trágica da professora do PAIGC que, tal como o  nosso saudoso amigo e camarada A. Marques Lopes (1944-2024),  então alf mil da CART 1690 (Geba, 1967/68) estava no sítio errado, e à hora errada, na barraca" de Samba Culo, no antigo regulado de Banjara, em 7 de julho de 1967, uma sexta-feira.  Foi morta por um rajada de G3, disparada pelo alf Lopes. Seria de etnia manjaca e cristã.

Foi um duelo de morte, coisa que era raro acontecer naquela guerra de guerrilha e contraguerrilha: os combatentes de um lado e do outro não tinham muitas ocasiões para se olharem olhos nos olhos. Como nos filmes do Faroeste,  o alferes foi mais rápido a puxar pelo gatilho. Fora treinado para matar. Mas só queria não morrer. A morte da professora marcou-o, para o resto da vida (*).

Trinta anos depois, em 2008, o A. Marques Lopes (já como cor inf ref, DFA) voltou lá, a Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, no antigo regulado de Banjara, para fazer contas com os fantasmas do passado. (**)

E deixa-nos, em prosa poética (**), um texto que é revelador dos valores e princípios de um grande ser humano e de um militar português com sentido de honra e consciência moral.

Sobre este episódio da sua vida de combatente escreveu "ad nauseam" (no nosso blogue, no sue livro, na sua página do Facebook...). O fantasma da professora de Sama Culó tê-lo-á perseguido toda a vida. E isso ajuda a explicar  o seu gesto solidário, ajudando mais tarde a construir  a escola de Samba Culo:  fez-se sócio da ONGD "Ajuda Amiga" (****).

Há dois anos e 4 meses, ainda em vida,  em 19 de janerio de 2022, ele deixou esta mensagem pungente na sua página do Facebook:


(...) A morte da professora ainda me pesa na consciência 

Escrevi isto no meu livro “Cabra-cega”. Os nomes são fictícios, não os reais dos intervenientes. Mas há um que denuncio: o Aiveca é o alferes Lopes, (...)



Voltamos a transcrever este excerto que ele selecionou, do livro "Cabra Cega" (205, pp. 389/393), omitindo deliberadamente (?) o pormenor escabroso, patológico.  em que o soldado Cosme (nome fictício, que morrerá mais tarde em combate, em Sinchã Jobel)) "estava em cima da rapariga" (já cadáver...) "puxando-lhe a saia para cima e com a mão já nas cuecas" (pág. 393).  São 16 linhas que ele em 2022 censurou, considerando a cena indigna de um "tuga"...



A. Marques Lopes
(1944-2024).
Foto de LG (2015)
A morte da professora 
de Samba Culo ainda me pesa na consciência

por A. Marques Lopes


(...) Seguiram à beira da mata por uma faixa não alagada. Foram três horas e meia a ser massacrados pelo sol e pelos mosquitos, às vezes a enterrar-se quase até aos joelhos em poças de lama. Viu um ou outro soldado a sair da coluna para ir encher o cantil na água da margem mas não disse nada. Eles só queriam era beber, não se preocupavam e ele já não
 estava  para se chatear com isso. Já não sabia   que era pior, se uma doença ou aquilo  em que andavam metidos.

Pararam finalmente. O PCV, que volteara por ali desde o início e desaparecera algumas vezes, andava agora no ar novamente. O Lindolfo é que sabia, porque estava em contacto, mas Aiveca supunha que, quando desaparecia, era para se ir reabastecer. 

Estavam todos sentados e com as camisas do camuflado abertas. O Sousa Rato estava lixado dizendo que tinham sido muito mais de três quilómetros, tinham sido para aí uns seis ou mais. Aiveca desculpou-se, fora o capitão Lindolfo que lhe dissera que eram três. Alguém se aproximava vindo lado da companhia e reconheceu o alferes Rodrigo.

 
− É, pá, o Lindolfo diz que ficamos aqui um bocado a descansar. Só arrancamos quando o PCV ordenar. Agora é o gajo lá de cima que manda.

−  Lá em cima não se deve estar mal - comentou Aiveca.

Soergueu-se massajando as costas com a mão direita.

− E, olha
 continuou o Rodrigo  − quando estivermos em cima da base,  o Lindolfo diz para te avisar que vamos avançar em linha. Tu pela direita e nós pela esquerda.

Parou para ver se ele tinha entendido.

− Ok, chefe.

Bateu-lhe a pala, gozão, e esticou-se novamente. O Rodrigo não lhe ligou mais e foi-se embora.

Foi pouco descanso. Muito pouco tempo depois de o Rodrigo se ter afastado e de o PCV ter passado por cima uma vez, mas bastante por alto, depreendeu que não queria denunciar a presença da tropa ali. Notou, depois, que os soldados da companhia se estavam todos a levantar com as G3 na mão.

 Andor, pessoal!  
− disse para os seus.

Meteram pela mata atrás dos outros. Após vinte minutos tiveram de parar, os da frente tinham feito o mesmo. Já deviam ter andado um quilómetro mas parecia-lhe que ainda havia muita mata pela frente. Estava a criticar mentalmente o Guilhermino por também não saber calcular as distâncias quando vieram de longe, mas não muito, os sons de numerosa fuzilaria e rebentamentos.

−  É o capitão Guilhermino que está a levar  
− disse para o Belmiro, que estava com ele à cabeça.

Os da companhia retomaram a marcha, mas de forma mais acelerada. Deu indicação para fazerem o mesmo. Dez minutos andados e as árvores foram substituídas por arbustos, não muito altos mas que os tapavam. Os da companhia estavam parados e em linha. 
Eram três e meia da tarde. Fizeram igual. Os furriéis e o Belmiro estavam ao pé dele quando o Rodrigo lhe viera dar o recado, tinham ouvido as indicações. Começaram a andar. As G3, que tinham andado descansadas a tiracolo ou aos ombros como enxadas, iam agora nas mãos com ar ameaçador de sanha assassina. 

Após andarem uma trintena de metros lá estava a base, mesmo ali, quase a tocar-lhes. Do lado esquerdo, na direcção dos da companhia eram talvez umas trinta casas, algumas com telhados de zinco. Em frente dele uma barraca rectangular com paredes e cobertura de capim, estava bastante separada das casas. O Guilhermino continuava a levar. Era do outro lado, percebia-se bem agora.

Quando avançaram todos rapidamente, quase em corrida, Aiveca e os seus entraram de rompante na barraca. Os do Lindolfo, do outro lado, já tinham começado às rajadas. Viu logo que era uma escola. Uma rapariga que estava ao pé do quadro tirava uma kalashnikov que estava lá pendurada.

Levantou a mão esquerda ao alto para ninguém disparar.

− Tá quieta! Firma lá!  
− gritou-lhe.

Mas ela não. Com a arma já empunhada meteu o dedo no gatilho. Disparou instintivamente. Ela caiu para trás e as balas da kalash furaram o capim do tecto.

Ficou estático de olhos esbugalhados fitados nela. A cabeça escaldava-lhe e o coração parecia querer soltar-se. Os soldados puseram-se à volta dela a observar e a comentar. A sua rajada acertara-lhe na barriga e no peito. Era bonita e devia ter vinte e poucos anos. Alguns levantavam a cabeça para Aiveca mas, ao ver a cara que tinha, preferiam não dizer nada.

 
− Meu alferes, se não tivesse disparado,  ela matava-o − acabou por dizer o sargento Belmiro.

Os outros apoiaram-no. Acalmou um bocado. Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro.

 Deixa-me ver isso, Carmelita.

 Estão ali uma data deles por trás do quadro, meu alferes.

Tinha uma capa vermelha. Na metade superior e em letras grandes brancas dizia: "O Nosso Primeiro Livro de Leitura". Na outra metade tinha a reprodução a cores da fotografia de um grande ajuntamento com um cartaz: O PAIGC Vencerá. Folheou-o também. Eram as várias letras e ditongos do alfabeto com vários exemplos de palavras portuguesas. Havia também alguns textos sobre a luta deles.

− Meu alferes, venha ver o que está aqui.

Era o Martins ajoelhado a um canto ao pé de uma mala aberta.

−  Carmelita, guarda-me este livro no bolso das calças.

Foi ver o que tinha o Martins. Ficou pasmado assim que olhou. Era um casulo para a missa. Ajoelhou-se também e pôs-se a remexer no que estava na mala, cada vez mais pasmado. Estava lá tudo o que bem conhecia da liturgia da missa: o casulo, a estola, a alva e o cíngulo para a apertar. Aiveca estava completamente atónito. (...)



(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Detalhe > Posição relativa de Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, a sudoeste de Canjambari, afluente do rio Farim, e aonde havia, em 1967, uma "barraca" do PAIGC, com uma escola e uma professora.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
_______________


(**) Vd. poste de 8 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11215: Blogpoesia (327): In Memoriam: A professora de Samba Culo, morta em 7/7/1967, de Kalash na mão (A. Marques Lopes)

(***) Postes anteriores da série > 

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25732: Historiografia da presença portuguesa em África (431): João Vicente Sant’Ana Barreto, e o estado da Saúde na Guiné, vai para um século (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Foi uma surpresa, numa memória destinada a uma exposição internacional, o oficial médico João Barreto, autor da única História da Guiné na área da Saúde, redige um curto ensaio sobre a climatologia e nosografia (classificação das doenças) na Província da Guiné, num impressionante desacordo do que redigiu, por exemplo, no seu relatório apresentado em 1927 à direção dos Serviços de Saúde e Higiene, houvera uma missão para averiguar se a doença do sono existia ou não entre as populações indígenas da colónia, e ao mesmo tempo proceder a inquéritos sobre outras doenças, tendo concluído que na circunscrição de Buba a doença do sono existia de uma forma endémica, a extensão da tripanossomíase era enorme, havia casos de lepra em Bolama, como de elefantíases, ora o que o leitor tem pela frente nesta memória é uma imagem tranquilizadora e de uma quase inexistência de doenças, estamos a falar do mesmo médico no referido relatório apresentado em 1927, propõe a criação de uma brigada médica com caráter permanente, de forma indispensável a erradicar a tripanossomíase. Fica-se com a ideia que o Dr. João Barreto, por iniciativa própria ou a pedido, resolveu uma imagem altamente positiva da profilaxia, do sistema de vacinação e do bom funcionamento dos serviços. Felizmente que está escrito o contraditório...

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, e o estado da Saúde na Guiné, vai para um século

Mário Beja Santos

No mesmo ano em que Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro publica o anuário da Guiné de 1925, é dado à estampa uma memória da sua responsabilidade destinada à Exposição Colonial Interaliada de Paris. É no âmbito dessa publicação que aparece um texto da responsabilidade de João Vicente Santana Barreto, oficial médico, diretor do Laboratório de Análises do hospital civil e militar de Bolama. A sua intervenção intitula-se Climatologia e Nosografia. Começa por referir que a província apresenta os característicos dos climas tropicais, a média da temperatura atmosférica, à sombra, em mês algum é inferior a 20º C; não há altitudes ou ocidentes geográficos notáveis; do ponto de vista térmico podem distinguir-se na Guiné uma zona marítima, compreendendo o arquipélago dos Bijagós, a qual se faz sentir a ação moderada do oceano, e uma zona continental em que a média de temperaturas máximas é mais elevada, assim como a diferença entre estas e as mínimas. Dá conta do funcionamento do observatório meteorológico de Bolama, dirigido por um oficial da Marinha, o resumo das observações é publicado no mapa mensal no Boletim Oficial da Colónia; alude seguidamente às duas épocas bem distintas (seca e chuvas), tece observações sobre a temperatura atmosférica e as chuvas, é com base nestes elementos que elencas as seguintes considerações:
“Podemos concluir que esta Província não tem condições muito favoráveis para aclimatação e fixação definitiva do elemento europeu, mas nada há que obste a sua permanência mais ou menos prolongada nesta colónia, quer como funcionário quer como colono, sobretudo depois dos melhoramentos sanitários introduzidos nos últimos anos e com uma compreensão mais nítida dos deveres da profilaxia individual.
Verifica-se que não existe na Guiné muitas das endemias que em geral se encontram nas regiões tropicais. Os principais factores que se opõem à fácil aclimatação do europeu nesta colónia são o elevado grau de temperatura e humidade atmosférica e o paludismo endémico.
É evidente que um individuo da raça branca adaptado ao clima temperado ou frio e transportado para um meio em que raras vezes o termómetro chega a 22º C, não pode deixar de manifestar sinais de anemia e debilidade nervosa, que se traduzem por uma rápida diminuição da atividade funcional e das faculdades de trabalho.

É o paludismo a doença que mais de perto interessa o imigrante europeu. Felizmente a luta contra esta endemia é relativamente fácil na Guiné, porque a grande parte da sua população, que é indígena, conserva-se totalmente indemne às febres palustres. A malária domina entre os imigrantes estranhos à colónia, os europeus, os cabo-verdianos e em especial entre as crianças mestiças. São essas crianças o principal reservatório do hematozoário que nelas se desenvolve admiravelmente, favorecido pela ausência da higiene e profilaxia antipalustre e ainda pela falta de tratamento convenientemente dirigido. Sob o ponto de vista restrito da malária, as crianças mulatas são o reservatório permanente do parasita que o Anófeles vai buscar para o inocular nos imigrantes.”
E refere as medidas especiais para combater a endemia palustre, enunciado os diplomas.

E repertoria as principais doenças existentes na Guiné: varíola - não é endémica, só aparece sob a forma de pequenas epidemias localizadas a uma ou mais tabancas (o indígena aceita a vacinação preventiva sem relutância); peste - não é nem nunca foi endémica, em 1921 esta doença foi importada do Senegal e localizou-se na vila de Cacheu, a partir dessa data até hoje não se encontraram quaisquer indícios da doença, quer no homem quer nos animais; cólera - não consta ter havidos casos dessa doença; febre amarela - o vómito negro não é nem foi endémico nesta província; lepra – existem algumas dezenas de indígenas portadores da doença; elefantíase - encontram-se exemplos notáveis de portadores dessa enfermidade entre os Manjacos da Costa de Baixo e regiões vizinhas, fora das quais é mais raro encontrarem-se casos em número apreciável; tripanossomíase - não consta ter-se verificado a existência da doença do sono, quer pela observação clínica, quer pelos exames laboratoriais; parasitas intestinais - além das vulgares lombrigas, encontram-se amibas disentéricas; febres tifoides e paratifoides - nas estatísticas nosológicas da Guiné encontram-se um ou dois casos de febres tifoides, mas é fácil verificar que se trata de doentes importados, casos autóctones de febres paratifoides só se registaram três, em 1921, na vila de Cacheu.

“De tudo isto é lícito concluir que a malignidade do clima da Guiné é uma lenda que tende a desfazer-se com o conhecimento mais exato da verdadeira situação da colónia.”


Bissau - Residência do Governador na Fortaleza
Bafatá, utensílios fabricados por indígenas
Bafatá - Rua principal
Bissau - Fábrica de cerâmica
Cacheu - O antigo Forte
_____________

Nota do editor

Último post da série de 3 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25711: Historiografia da presença portuguesa em África (430): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (2) (Mário Beja Santos)