Foto nº 6B
1. O José Álvaro Carvalho, 85 anos, natural de Reguengo Grande, Lourinhã, entrou recentemente para o nosso blogue. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*).
Não dispondo da sua caderneta militar (diz que nunca a teve), o Zé Álvaro (como eu o trato, afetuosamente), não sabe exatamente em que data chegou ao CTIG, para render um alferes de uma companhia de intervenção, sediada em Bissau. Aponta para a primavera de 1963, escassos depois da guerra ter "oficialmente" começado, na "narrativa" do PAIGC, com o ataque a Tite, na região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963.
Já estava há 26 meses na tropa. E deve ter cumprido mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o segundo semestre de 1965. Passou por Bissau, Olossato e Catió, aqui já a comandanr um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo).
O alf mil Maurício Saraiva, nascido em Sá da Bandeira, quando ainda frequentava o curso de comandos, em Luanda, em 1963. Foto de Virgínio Briote (2015) |
Pelas nossas contas (e apenas com base dos livros da CECA), essa companhia para a qual ele terá ido, inicialmente, em rendição individual, pode ter sido a CCAÇ 273 (mobilizada pelo BII 17, Angra do Heroísmo): esteve no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses.)
"Após confirmar por rádio para o QG as ordens que acabara de receber, desviou a marcha no sentido da povoação de O[lossato] , entrando na região onde a guerrilha tinha começado a atuar recentemente e era constituída por um polígono com cerca de 120 kms de comprimento na sua maior dimensão e oitenta na outra , cuja principal estrada, que o atravessava em diagonal, estava obstruída por árvores derrubadas assim como todos os pontões e pequenas pontes já destruídas que atravessavam as linhas de água, que eram muitas em todo o território por ser este a foz dum rio importante, que se dividia por grandes e pequenos canais que se ligavam e entrelaçavam entre si." (...)
Guiné > Carta da Província (1961) (Escal: 1/500 mil) > Posição relativa do Olossato, em pleno coração da região do Oio... Do Olossato a K3 / Saliquinhedim eram c. 20 km por estrada. (A ocupação de Saliquinhedim ao Km 3 da estrada Farim-Mansabá foi feitta pela CCaç 1421 no final do ano de 1965.)
− Eles aí estão, meu Alferes!!!
Choviam tiros por todo o lado. As metralhadoras dos postos principais matraqueavam o mais que podiam à medida que aumentavam os pec-bum dos disparos contrários.
Pegou numa granada de mão e, curvado, correu para o posto mais próximo.
−Deixem-nos vir!!!
As metralhadoras calaram-se. As palmeiras suavam humidade, indiferentes aos homens e aos ruídos da noite.
Ouviam-se rebentamentos ao longe.
− Estão a estoirar com os acessos!!!
Tinham medo que alguma ajuda fosse pedida, mas não corriam esse risco. À noite o teto de nuvens era tão baixo que o rádio só emitia ruídos.
Chamou o furriel mais próximo.
− Não quero mais tiros! Deixem-nos chegar à vedação e depois acendam as luzes exteriores e abram fogo de novo. Por cada tiro quero um homem ferido ou morto! Se se vão embora sem "levar na tromba", amanhã estão cá de novo!
No dia seguinte:
− Encontrámos alguns rastos de sangue.
− Quantos?
− Quatro.
− Já não foi mau.
O sol a pique aquecia a humidade excessiva, para que as plantas vivessem prósperas, numa inundação de verdura que era preciso destruir diariamente, à volta do celeiro de amendoim, único edifício do aquartelamento.
Durante o dia, a carne dos homens ficava mole. Ainda bem que só havia ataques à noite.
Era a hora do rancho. Os quinze homens do pelotão desfalcado, os nove da secção que o reforçava e os quatro condutores juntaram-se à volta das panelas fumegantes na cozinha de campanha instalada ao fundo do edifício, para receberem a sua ração e irem em seguida para a mesa de refeições, num compartimento separado por divisórias de esteira com 2 metros de altura como todos os outros que formavam as instalações do pelotão.
O impedido aproximou-se:
− Meu Alferes, o jantar está pronto.
Trazia-lhe a amostra: sopa de feijão, batatas com bacalhau, bolachas, café instantâneo e vinho.
Provou e disse:
− Está bom.
Sentado com os três furriéis à volta duma mesa de caixotes, aguardava em silêncio que o impedido lhe trouxesse a refeição, a pensar que o tempo nunca mais passava.
O operador rádio trouxe-lhe uma mensagem cifrada do pelotão do alferes que comandava uma guarnição a Norte, a guarnição de B [Bigene], que havia pouco tempo ali tinha estado a contar-lhe do almoço com o comandante da lancha patrulha do rio C[acheu]
Tinha-lhe dito que esse comandante era uma óptima pessoa, uma vez que, mesmo sem o conhecer, tinha atracado a lancha no cais e convidara-o para um excelente almoço.
Na referida mensagem indicava-se em pormenor todo o percurso dos guerrilheiros treinados num campo junto à fronteira do S [enegal]. que passavam na região Norte, atravessavam no rio junto à povoação de K[3], onde recebiam apoio logístico e seguiam depois por um trilho a corta-mato até à estrada que passava a alguns km do seu aquartelamento, entrando depois na zona que o inimigo pretendia dominar, lutando por ocupar e controlar um território que lhe parecia estrategicamente propício.
Depois do café disse aos furriéis :
− Vamos arrasar o K[3].
− Fica a 30 kms.
− Por isso não nos esperam.
Levantou-se da mesa e foi fumar um cigarro sentado do lado de fora do edifício. Não havia vento. O calor continuava a encharcar-lhe o corpo. Tinha anoitecido. As estrelas mal se descortinavam por entre a humidade do ar. Devia ser aí que habitavam as coisas certas e decentes. Dentro em pouco viria mais uma das repentinas trovoadas da época, a descarregar água por todo o lado, a inundar tudo.
Já deitado, pensava que com alguma sorte a operação correria bem. O K[3] era a passagem obrigatória dos abastecimentos e dos homens do inimigo, treinados junto à fronteira, que diariamente reforçavam os efectivos da região. Ali se devia esconder todo o apoio necessário à travessia do rio: canoas e barcos de borracha, como dizia a mensagem cifrada. Nas palhotas da aldeia próxima, ouvia-se o choro de crianças assustadas.
Eram 4 horas da manhã. O sargento de ronda que o antecedia, foi acordá-lo:
− Meu alferes, está na hora.
Levantou-se cheio de sono, e acendeu um cigarro que apagou depois de saborear algumas fumaças com força. Deu a volta a todos os postos e parou por fim no último.
− Tudo bem?!
− Tudo bem, meu alferes.
Para lá do arame farpado pouco se via além do reflexo das poças de água onde centenas de rãs coaxavam no silêncio da noite. Sentou-se ao lado da sentinela a sacudir os mosquitos que lhe mordiam o corpo por cima do fato de combate.
Já no seu compartimento, estendeu-se na cama à espera do café.
Pensava nas praias da sua terra, naquela altura cheias de gente e sol e paz. Deu-lhe vontade de rir o facto da vida poder ser tão diferente.
O rádio, em escuta, fazia a zoada do costume. Ouviu o ruído dos homens a acordar e foi até à cozinha.
− Quer provar o café, meu alferes?
− Não, obrigado.
Depois de comer chamou os 4 furriéis ao seu compartimento. Apontou um deles e disse:
− Você entra comigo no centro da aldeia.
Apontando outro disse:
− Você fica no aquartelamento.
Apontando os dois restantes disse:
− Vocês entram à direita e à esquerda. 100 balas a cada homem, quatro granadas de mão, uma ração de combate. Levantar às zero horas, partida à uma. Caras sujas com rolha queimada.
Apontou no mapa e disse:
− Seguimos por aqui a corta-mato durante cerca de 20 kms até onde se situa a estrada que conduz ao K[3].. Nesta altura estamos a 2 kms do objectivo. Seguimos a pé. Os carros estacionam escondidos. Os motoristas aguardam no máximo 8 horas pelo nosso regresso. Se não regressarmos ao fim desse tempo, voltam para o aquartelamento pela estrada. Se forem descobertos ou tiverem suspeitas disso regressam também de imediato. Se mandar retirar e dispersar, o local de reunião será sempre junto do estacionamento das viaturas mesmo depois destas terem partido. O ataque não pode demorar mais do que 15 minutos. Ao fim desse tempo retiramos à minha ordem. Se houver algum tiro prévio que nos denuncie, abandonamos o objetivo, dispersamos e retiramos para o ponto de reunião sem atacar. Vamos entrar de Este para Oeste, destruindo tudo o que for útil ao apoio do inimigo.
Apontou um furriel e continuou :
A humidade diluía o suor, tornando-lhes o corpo peganhento, as roupas pesadas, repulsivas, a cara negra com riscas brancas. Pousavam os pés no chão com todo o cuidado, e investigavam com os olhos, reflexos e sombras. Sabiam bem o que os podia denunciar.
[Ele, o alf Carvalho], seguia à frente com os guias. Em cada curva do caminho levava dois homens e avançava algumas dezenas de metros. Só depois o resto do pelotão avançava.
A terra exalava humidade e calor. Os mosquitos não os largavam há muito. Zumbido enlouquecedor, ávido de sangue quente.
Perto da aldeia, abandonaram a estrada e redobraram as cautelas. O céu, com rasgos de luz menos escura, anunciava os sons da manhã.
Progrediam agora a dois e dois, de abrigo em abrigo. A alguns metros das primeiras cubatas, sentada no chão e encostada a um tronco velho, a primeira sentinela dormitava. Foi engolida em silêncio pelas facas de dois soldados.
Alguns cães ladraram. Farejavam sarilho. Rebentou a primeira granada. Daí em diante foram sombras vertiginosas, respirações de morte, ferro e fogo, gritos, ferro e fogo, confusão, instantes infernais, ferro e fogo, palavrões, guinchos, ferro e fogo, gemidos, correrias, aflições, ferro e fogo, e cubatas a arder reflectidas na água mole e suja do rio e tiros, tiros e explosões.
Veio depois o silêncio da retirada dispersa e rápida, corrida louca para o ponto de encontro junto das viaturas, com tiros ocasionais a persegui-los. Contou os homens já com os motores em marcha. Estavam todos. Regressaram.
Levantou-se. Tomou o pequeno almoço e foi passear pela povoação.
− Bum dia, noss' alfero.
As poucas casas dispostas dos dois lados da estrada faziam-lhe lembrar a aldeia onde tinha nascido.
O inimigo lutava o mais que podia para arranjar simpatizantes e para isso não molestava a população civil, branca ou negra. Só em ultimo caso empregava a força.
Homens e mulheres faziam a sua vida de todos os dias como se nada houvesse, mas, por de trás dos olhos de cada um, lá estava o terror, a duvida, a ansiedade, a insegurança da hora seguinte. Os nervos tensos à espera do mínimo sinal para fugir, recolher ao abrigo possível.
Depois da sesta da tarde, verificou a situação de todas as medidas defensivas instaladas. Esperava uma represália. Passou o resto da tarde a estudar a forma de melhorar as defesas existentes e implementar métodos de ataque em situação de fogo como sair do aquartelamento através de trincheiras etc.
A noite adivinhava-se pesada, escura, trovejante, desagradável. São estas noites que escondem medos e vergonhas, disfarces e desumanidades. Mas não são noites de guerra, porque a falta de claridade dificulta os movimentos.
Pensava em tudo isto depois de dar ordem de prevenção, e se encostar solitário junto ao abrigo duma sentinela.
Estava tudo a postos para mais um jogo de morte.
O pequeno Unimog blindado com chapas de bidão endireitadas, tinha a traseira encostada à porta principal do celeiro de amendoim que servia de aquartelamento.
A corda amarrada ao “cavalo” de arame farpado que na vedação servia de porta, estava estendida no terreiro e entrava no interior do edifício de modo a que daqui, puxando-a, se desobstruísse a entrada e o Unimog pudesse sair.
As metralhadoras das duas portas foram abastecidas com mais caixas de munições. Os dois morteiros, um atrás e outro à frente, entrincheirados também.
Fora enviado para ali porque o destacamento anterior tinha sido várias vezes encurralado no aquartelamento com fogo cruzado inimigo que, após enfiar uma metralhadora a cada porta, se passeava no povoado abastecendo-se nos estabelecimentos existentes, a troco de improvisadas requisições supostamente válidas, alardeando o seu poder e exibindo a sua melhor propaganda.
Tinha esperança de que com o seu pelotão isso nunca acontecesse.
Todas as máquinas de guerra do destacamento luziam limpas e oleadas, possivelmente satisfeitas por poderem vomitar fogo tão frequentemente. Tinham-nas feito para isso.
(*) Vd. poste de 26 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão