1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 9 de Agosto de 2017:
Queridos amigos,
Já estamos no fim da festa, o viandante parte no dia seguinte de Moffat para Manchester. Vibrou com a campanha eleitoral e há muitos anos que não passava a noite acordado, a ver o resultado e os comentários das eleições britânicas. Apanhou a campanha eleitoral do princípio ao fim, por pura coincidência, via diariamente os noticiários e estava atento à reação dos eleitores, aos apontamentos da propaganda, ao teor das mensagens. O fenómeno mais surpreendente a partir da segunda semana da campanha foi a ascensão meteórica de Jeremy Corbyn, enchia estádios e grandes espaços, trazia ideias novas, prometia um Brexit diferente, o aprofundamento do diálogo europeu.
Quanto à Escócia, ela é inesquecível, propositadamente não se foi a Glasgow nem Edimburgo, o viandante agora anda a cismar num passeio até ao Norte e apanhar um barco até à Islândia, ou escolher um porto da costa ocidental e passar para a Irlanda. A seu tempo se verá, por ora saboreiam-se gratas recordações.
Um abraço do
Mário
Lesmahagow, adeus a Moffat, primeiro dia em Manchester (8)[1]
Beja Santos
Acreditem que o viandante viveu aqui, na noite das eleições legislativas da Grã-Bretanha, tempos emocionantes. Acompanhou diariamente a evolução da campanha, deu para perceber que a senhora primeira-ministra da Escócia estava a meter-se em trabalhos escusados quando propunha um segundo referendo para a independência do país, como é evidente tratava-se de assunto subalterno num período crucial em que era preciso dizer em que tipo de Brexit se pretendia votar, o partido nacionalista escocês perdeu para os conservadores e trabalhistas. Theresa May pedia tudo: maioria absoluta com esmagamento dos trabalhistas, um governo credível para negociar em força o Brexit, passou a ser visível nos ecrãs que tudo era enfadonho, as passeatas não tinham povo e as que tinha era com gente com pouco ânimo; os liberais democratas ainda não estavam refeitos da queda depois da governação conjunta com David Cameron, exigiam um novo referendo, continuam europeístas, ganharam alguns deputados. E desde os primeiros dias da campanha que se notava um fôlego crescente nas movimentações dos trabalhistas, Jeremey Corbyn, o seu dirigente, fazia passar mensagens substantivas, eloquentes e acessíveis, mostrava-se motivado e ardoroso, enchendo estádios e praças. Naquela noite, pelas 22 horas prefixas, anunciaram-se as previsões: os conservadores ganhariam sem maioria, haveria uma subida espetacular dos trabalhistas e um afundamento total da extrema-direita, o partido de Nigel Farage pulverizava-se. Tudo isso se viu e comentou numa noite fervilhante, inesquecível. No dia seguinte apanhei este desenho de humor que para o viandante só comprova que é a dimensão do desenho onde o génio é mais rasgado, para captar as ironias do quotidiano: as farroncas de Theresa May engoliram-na à dimensão microscópica. E o Reino Unido ficou ainda mais dividido, mais confuso e com um Brexit mais conflituoso.
O viandante acordou tardíssimo, já a companha andava agitada a discutir os resultados das eleições. Tinha-se acordado que era dia de folga, cada um amanhava-se, depois de comido o viandante foi para as estações dos autocarros, era muito tarde para ir até Glasgow, pediu um bilhete para a estação seguinte, Lesmahagow, acabou por não se arrepender, viu colinas verdejantes, ribeiros serpentantes, florestas densas, muito verde e rochas. Desembarcou, apeteceu-lhe um café e ainda hoje tem remorsos de não ter pedido licença para tirar uma fotografia a um canto cheio de dvd’s, cd’s e livros, tudo a uma libra, para as crianças de um hospital. São coisas que embevecem, este tipo de solidariedade de entregar o que já não nos faz falta e neste caso dar algumas alegrias a crianças hospitalizadas. Tomou-se o café e começou a deambulação.
É frequente ver-se edifícios exclusivamente dedicados ao culto maçónico, na Grã-Bretanha. O viandante impressionou-se com a sobriedade do templo e tomou nota. Mais tarde, procurou explicação para a premência do culto maçónico, alguém justificou que os maçons intervêm em muita filantropia local, o que lhes dá credibilidade, ninguém lhes atribui conotações sinistras.
Esta digressão não tem história, é turismo à carta e de proximidade, nada havia de retumbante mas o viandante entrega-se a pormenores, realça-os e argumenta consigo próprio que mesmo em sensaboria urbanística há sempre um dado que se impõe, peculiar, se não original. É o caso desta fonte, uma boa peça da arquitetura do ferro, felizmente que não há razão a pretexto de por ali qualquer outro equipamento urbano. Feliz da vida, regressa-se à base, está um dia chocho, nada como andar a bisbilhotar pelas ruas de Moffat, a fazer horas. Amanhã começa o regresso, é preciso registar as últimas impressões, Moffat é um local inesquecível.
A próxima etapa é Manchester, para fazer economias é melhor ir dormir num quase arrabalde, escolheu-se Chorley, pelo bom preço e por estar a 20 minutos da grande cidade. Chorley não tem 40 mil habitantes foi até aos anos 1970 um dos muitos polos algodoeiros do país, não se via à vista desarmada monumentos significativos. O viandante encontrou um templo anglicano em horário de ofício, aproveitou para fazer as suas orações. E depois lançou-se à procura de espaços verdes, entardecia. Pois foi precisamente aqui que se encontrou um monumento tocante. Vejam com atenção. É tudo simples, feito de madeira, uma veneração àqueles que tombaram na guerra, em cada um dos capacetes uma papoila, símbolo das gotas do sangue derramado sobretudo na Flandres. O que mais impressionou o viandante é dar-se a dignidade ao dever de memória com materiais tão simples, tão diretos à reflexão.
Manchester é a segunda cidade da Grã-Bretanha, é uma típica cidade do Norte da Europa, sente-se a pujança dos negócios, há a lembrança do que foi nos tempos do império. Tudo compacto, mas não deixa de ser chocante o contraste entre uma certa sumptuosidade da arquitetura e o caos das lojas, cada cor o seu paladar, a visão da sumptuosidade sai sempre menorizada.
Ao atravessar a rua, viandante e companha são confrontados com uma manif em Piccadilly Gardens Manchester, unidos contra o racismo e o ódio, uma constelação de grupos vem protestar contra organizações da direita radical, havia bancas dos comunistas, dos trotskistas, dos LGBT. O viandante entrou certamente no momento aceso de discursos, os manifestantes contra o racismo e o ódio procuravam cercar a área onde estavam os manifestantes da direita radical. Uma chuva de ovos passou rente, viandante e companha, por prudência, mudaram de local, mas com a excitação de terem participado numa manif em direto.
O principal museu de Manchester é Manchester Art Gallery, riquíssima em arte ocidental, o peso da coleção começa com os mestres holandeses, segue para o século XVIII e os românticos, os britânicos novecentistas estão ali praticamente todos, a começar pelos pré-rafaelitas, os grandes pintores do século XX têm ali acento, é o caso de Francis Bacon e Lucian Freud.
O viandante sempre venerou este senhor Bacon que torce e retorce até tornar nítido a vertigem dos movimentos. Há ali algo de animalesco, a fúria do que se torce e contorce, o sombreado das cores e o vórtice do sangue, tudo em espaços fechados. Podem supor-se inúmeras metáforas, para o viandante o impacto é a construção do homem, o que o acompanha toda a vida entre quedas e levantamentos. Não sei como lhe agradecer, meu caro Bacon, estes momentos tão felizes na sua companhia!
Freud é outra representação, o predomínio dos tons cerúleos e acinzentados, a preocupação pelos enquadramentos onde só cabem certos volumes, é uma fuga ao retrato convencional. Trata-se de um quadro seguramente da juventude, Freud irá evoluindo para a exibição carnal, nunca perdendo o sentido figurativo, a sua genialidade nunca foi contestada, o seu retrato de Isabel II já faz parte da lenda da pintura.
Está a chegar ao fim o primeiro dia em Manchester, estes casarões vitorianos, eduardianos, estas réplicas muito tardias de um medievalismo que ainda excita as imaginações, espalham-se por esta cidade onde houve um grande orgulho cívico, aqui foi um centro irradiante do dinheiro das minas, de grandes fábricas, do capitalismo próspero dos séculos XIX e XX. Só para olhar toda esta monumentalidade vale a pena calcorrear Manchester.
Em caso algum o viandante fica indiferente ao reconhecimento que se faz a quem deu a vida pela pátria. Num jardim, encontraram-se estas duas modestas lápidas, têm um profundo significado, lembrar os outros que combaterem ao nosso lado e que as gerações seguintes puramente ignoram e lembrar os filhos da terra que se associaram ao mais sublime dos deveres cívicos. Eu sei que é assim por todo o Reino Unido, e aqui já se deixaram imagens eloquentes, lápides em colégios de Oxford e Cambridge, monumentos singelos em aldeias, vilas e cidades, testemunhos de um desmedido compromisso para assegurar a independência do país e dos aliados. E o que mais assombra é que este orgulho no testemunho está embebido na cultura, faz parte do entendimento humano, é um aporte histórico irrecusável. O que nos faz pensar quanto ao nosso desmazelo e indiferença.
(Continua)
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Notas do editor
[1] - Poste anterior de 1 de novembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17922: Os nossos seres, saberes e lazeres (237): Em Drumlanrig Castle, o esplendor dos jardins escoceses (7) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 2 de novembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17924: Os nossos seres, saberes e lazeres (238): Mais uma vez os velhinhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)