quinta-feira, 11 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25735: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (51): Operação Jaguar Vermelho - I: dia 26 de Maio de 1970



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


OPERAÇÃO JAGUAR VERMELHO - I

Para quem não sabe, informo que a Operação Jaguar Vermelho1 foi uma grande operação na zona do MORÉS, que ficava a cerca de 5 ou 6 Km, em linha recta, dos nossos quartéis do OLOSSATO, onde estava a minha CCAV 2721 e de MANSABÁ, onde estava a CART 2732, do Carlos Vinhal.

Durante um mês, aproximadamente, os nossos aviões Fiats e T-6 iam lá várias vezes largar as bombas.
E eram bombas de "pouca potência".
Eram tão "fraquinhas" que quando rebentavam, até as casas do Olossato tremiam e muita população que vivia sob controle do PAIGC se ia entregar nos nossos quartéis.
E assim chegou o dia 26 de Maio de 1970.
Localização do MORÉS - Região do Oio - no triângulo formado pelos itinerários Mansoa-Bissorã-Mansabá-Mansoa
Infografia: © Luís Graça & Camaradas da Guiné


1970/MAIO/26 ÀS 09H00M

Às 9H00M o meu grupo de combate (4.º GComb), reforçado com 15 milícias, saiu para a região de BISSANCAGE, onde encontrou um trilho muito recente e batido, de MORÉS para MADINA MANDIGA.
O alferes Silva decidiu emboscar neste local.
Enquanto o alferes Silva estava a instalar os primeiros elementos do 4.º grupo de combate, que eram milícias, surgiram 2 elementos inimigos armados.
Deste contacto resultou o ferimento e captura de 1 elemento inimigo e a fuga do outro.
Neste contacto também resultou a morte de um soldado milícia nosso, que foi morto pela rajada dum soldado nosso (FR) que, por precipitação ou por medo fez fogo para o local onde estava o alferes e os soldados milícias e só parou o fogo quando o alferes e os soldados da milícia gritaram para parar o fogo.
Não sei se o alferes tinha avisado o que se estava a passar, mas o soldado "tinha" que saber que estavam ali os nossos militares.

Quando a situação estava controlada e trouxeram o guerrilheiro para o local onde estava o resto do grupo de combate, os outros milícias queriam matá-lo à pancada. Tive que intervir para acabar com esta cena de vingança. Mas há uma frase dum soldado milícia nosso que não esqueci, nem esquecerei e que é a seguinte:
- "Furriel, se turra apanha nós (e fez um gesto com o dedo indicador no pescoço = corta-nos o pescoço OU mata-nos) mas se apanhar pessoal branco trata-o bem".

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25715: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (50): Ataque ao quartel no dia 12 de Maio de 1970

Guiné 61/74 - P25734: In Memoriam (506): Armando Carvalhêda (1950-2024), "um senhor da Rádio", que passou pelo Programa das Forças Armadas da Guiné, o "PIFAS", entre Abril de 1972 e Setembro de 1973, morre aos 73 anos (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS - TSF)

IN MEMORIAM


ARMANDO CARVALHÊDA (1950-2024)


1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS, TSF  (Piche e Bissau, 1970/72), com data de 10 de Julho de 2024:

Caros amigos,

Fiquei surpreendido pela notícia do falecimento deste nosso "camarada da Guiné" que esteve em Gadamael e depois no PIFAS.

Como radialista foi um grande divulgador da música portuguesa.

Não pertenceu ao nosso Blogue por incompatibilidades com outra pessoa.
Se acharem que é pertinente, podem usar, no todo ou nas partes que melhor considerem.
Se acharem que não tem cabimento ou tem pouco, pois então arquivem...

Abraços
Héder Sousa



SOBRE O ARMANDO CARVALHÊDA

Como já se devem ter apercebido, faleceu o Armando Carvalhêda1, nosso camarada da Guiné, que teve alguma notoriedade no PIFAS.

Natural de Almada, passou a infância e juventude em Setúbal. Teve a sua primeira experiência radiofónica na primeira rádio-pirata nacional, o Rádio Clube de Alcácer do Sal, onde esteve em 1967.

Foi mobilizado para a Guiné, colocado em Gadamael mas depois foi cooptado para O PIFAS.
Quando voltou acabou por integrar a Emissora Nacional e já mais recentemente dava corpo a um notável programa de defesa e divulgação da música portuguesa, designado por “Vivá Música”.

Amigos comuns aqui de Setúbal, que com ele partilharam aulas no então Liceu de Setúbal, recordaram-me que, para além de excelente amigo era um brincalhão compulsivo.

Entre várias peripécias, mais ou menos divertidas, contaram-me uma que se passou na época de Carnaval, em que o bom do Armando resolveu colocar várias “bombinhas de carnaval” numa sanita da Escola e, claro está, o excesso fez rebentar aquilo. Contactado o pai (naqueles tempos havia essa noção de responsabilidade…) para que a situação fosse reposta, o Armando foi “aconselhado” pelo pai a transportar a nova sanita às costas desde o local da compra até ao Liceu (cerca de 400 metros), o que ele fez perante o divertimento do pessoal discente, principalmente o feminino.

O Armando era também conhecido do “nosso outro Armando”, o Pires.

Tentei que entrasse ou colaborasse com o nosso Blogue, conforme podem apreciar na troca de mails que tivemos, mas o seu (dele) desentendimento com um outro elemento do PIFAS não lhe permitiu.


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2. Mail que enviei a 06/03/2012

Boa noite!

Peço desculpa duma intromissão deste tipo mas estou como uma curiosidade que não consegui conter.

E curiosidade sobre quê? Bem, sempre que me desloco de carro e como tenho quase sempre sintonizada a "Antena 1", ouço muitas vezes programas do "Armando Carvalhêda" e dou por mim a pensar: "será que eu o conheço?"...

É que tenho ideia de haver um "Armando Carvalhêda" que trabalhou na "Rádio Azul", em Setúbal e também em outros locais aqui à volta de Setúbal, onde vivo, e com o qual já tive contactos. E acresce ainda que esse mesmo "Armando" foi meu contemporâneo na Guiné, em Bissau, e era conhecido dum camarada meu aqui de Setúbal, chamado Nelson Batalha.

Acontece ainda que estou 'associado' a um blogue de pessoas que estiveram na Guiné, a que chamamos "Tabanca Grande", promovido por um tal Luís Graça, professor na Escola Nacional de Saúde Pública, podendo também ser encontrado por "Luís Graça e Camaradas da Guiné" e acontece ainda também que, por estes dias, nesse blogue têm passado muitas recordações sobre um programa que por lá havia, o PFA (programa das Forças Armadas), mais conhecido na gíria por PIFAS.

Recordação atrás de recordação, veio inevitavelmente à baila o nome do João Paulo Diniz e também apareceu citado o "Armando".

Acresce que o JPDiniz, alertado pelo Joaquim Furtado sobre a existência do Blogue, foi lá espreitar e já entrou em contacto connosco propondo-se até para participar no nosso Encontro, o VII, que terá lugar em Monte Real em 21 de Abril.

Por isso, meu amigo, se for o "Armando " errado, peço desculpa pela intromissão e pelo atrevimento.

Se for o "Armando" certo, fico muito satisfeito e mais ficarei se houver 'volta do correio'.

Com consideração
Hélder Sousa


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3.
Mail recebido a 07/03/2012

Olá Hélder,
De facto sou eu mesmo esse tal Armando Carvalhêda. O que esteve no PFA na Guiné; o que passou em dois momentos diferentes pela Rádio Azul; e, ainda antes de tudo isto, o que estudou no Liceu de Setúbal e no Externato Frei Agostinho da Cruz; o que, enquanto estudante, ajudou a fazer (e a desfazer…) em 66/67, o Rádio Clube de Alcácer do Sal – RCAS.Emissor 225.

É assim: acabamos sempre “descobertos” e chamados a “prestar contas”…

Um abraço do
Armando Carvalhêda
Direção de Programas Rádio
armando.carvalheda@rtp.pt


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4. Mail enviado a 12/03/2012

Ora então, muito boa tarde, ou melhor, boa noite! e... "VIVÁ MÚSICA!"
Armando, foi com bastante emoção que vi e li a tua resposta ao meu mail 'exploratório'.
E antes de continuar quero-te pedir desculpa por não ter reagido logo de imediato, mas tive um problema com o carro e outras coisas e só agora estou então a dar seguimento.

Pronto, 'foste descoberto', como dizes. Bem que tinha 'quase' a certeza que eras tu mas como já passou tanto tempo podia ser mais a vontade que fosses e não estava a querer 'dar barraca'.
De facto essa tua frequência do Liceu de Setúbal é que te deve ter dado o conhecimento do Nelson Batalha ("o Nelsinho de olho azul, o menino-bonito do Bairro da Conceição", como ele costumava dizer, e que casou com a namorada de sempre, a Zezinha, filha do Chico Primo, grande jogador do Vitória).

Na época eu não tinha relação com Setúbal, vivia em Vila Franca de Xira, só vim para cá 2 meses antes de 25 de Abril de 74 e foi portanto com o Nelson e através dele que eu estive contigo em Bissau algumas vezes. Nós pertencíamos às Transmissões, fizemos o curso do STM juntos, ele foi para Catió onde foi ferido e eu fui para Piche. Depois regressámos a Bissau e fomos integrar e desenvolver a "Escuta" donde enviávamos trabalhos para a ACAP, entre outras coisas.
Entretanto tenho também a ideia, como já disse, de ter estado posteriormente contigo na "Rádio Azul" e não sei ao certo mas talvez também na "Rádio Pal" ou qualquer coisa assim, nuns programas de divulgação de empresas de região, mas posso estar a fazer confusão.

Como te disse antes, o João Paulo Diniz, informado pelo Joaquim Furtado, consultou o tal Blogue de que te falei, quando na semana passada se fizeram vários 'post' e comentários sobre o PFA ou "PIFAS" como a malta mais genericamente se referia ao programa, e entrou em contacto através dos endereços que lá estão sendo que já se inscreveu para participar no nosso VII Encontro a ocorrer em Monte Real no sábado 21 do próximo mês de Abril. Muito sinceramente gostava de te ver por lá e acho até que seria muito engraçado e curioso essa 'reedição' do JP Diniz e Armando Carvalhêda. Tenho a certeza que muitas lágrimas furtivas haveriam de afluir a muitos olhos...
Entretanto, para não te maçar com estes revivalismos, fico por aqui.
Quando quiseres e tiveres paciência responde e diz qualquer coisa.

Um forte abraço
Hélder Sousa


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5. Mail recebido a 13/03/2012

Olá Hélder,

Pois é… como se vê, cada vez menos, é impossível viver isolado e passar despercebido. Neste caso, é saudável e permite retomar memórias que habitam as zonas mais “adormecidas” do nosso cérebro.
Não sei o que é feito do Nelson, meu companheiro do Liceu e do Colégio, mas também meu vizinho – visto eu ter morado perto de sua casa no Bairro da Conceição – e ainda companheiro de músicas. Ele tocava teclados e eu tinha a mania, entre outras, que tocava bateria. Depois dessa vivência conjunta em Setúbal, reencontrámo-nos em Bissau.

Andava eu a dizer mal da minha vida, após ter desembarcado e sido “abandonado”, aguardando colocação – viria a sair-me em sorte a “bela estância turística” de Gadamael –, encontrei o Nelson que me proporcionou um luxo verdadeiramente principesco: um duche numa vivenda que ele tinha alugado com outros companheiros de Transmissões, ali para os lados do QG.

O que um e-mail pode espoletar…

Já agora, fui de facto contemporâneo do J. Paulo Diniz no PFA mas, ao contrário das boas recordações que o Nelson me suscita, em relação a ele nada de bom retenho. São, enfim, histórias antigas, e algumas até dolorosas, já com quatro décadas de “pó” acumulado nas prateleiras da memória.

Um abraço grande do
Armando Carvalhêda


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6. Mail enviado a 26/03/2012

Olá, Armando!

Retomemos então as nossas informações e memórias.

Começo por te agradecer o que escreveste, que me avivou ainda mais a memória e, sem nostalgias, ajuda a recarregar baterias.

Falo agora do Nelson.Pois o nosso amigo Nelson, mercê da nossa vivência, amizade e companheirismo, acabou por ter bastante influência no facto de eu ter vindo trabalhar para a Sapec e viver em Setúbal. Eu sou 'produto' da margem norte do Tejo. Nascido numa aldeia perto do Cartaxo, Vale da Pinta mais exatamente, mas logo com 3 meses a seguir para Vila Franca de Xira onde bebi toda a formação que aquela boa terra me foi capaz de possibilitar e eu de absorver.
O Nelson e a mulher, a namorada de sempre, a 'Zezinha' filha do Xico Primo, acabaram por ser os meus padrinhos de casamento, melhor dizendo, da cerimónia religiosa ocorrida em 1998, já que o casamento civil ocorreu em 1972 quando ainda estava na Guiné.~

Referiste o 'banhinho' que te proporcionaram lá numa vivenda.... tudo certo, apenas que não era uma vivenda alugada pelo Nelson e amigos mas sim alojamentos proporcionados pelo Agrupamento de Transmissões a sargentos e furriéis. Se te conseguires lembrar e visionar era um conjunto de três edifícios separados, cada qual com três fogos. O fogo do meio, do edifício do meio, era onde funcionava a "Escuta", onde na ocasião o Nelson, eu e mais uns quantos desempenhávamos funções. Olhando da estrada de acesso ao conjunto para a frente desses edifícios, o fogo à direita da "Escuta" era onde, num dos três quartos que cada fogo possuía, eu e o Nelson tínhamos o nosso poiso. Portanto, na época, o quarto tinha dois ocupantes, eu e ele (e umas osgas, e baratas e mosquitos, e...).

Dos conhecidos do Nelson, aqui de Setúbal, para além é claro, também estive lá com um tal João, sobrinho do 'Isidro dos frangos' mas lembro-me de pouco. Ele também me falou de um tal Pedro 'qualquer coisa', também morador no Bairro da Conceição, salvo erro na Av. Jaime Cortesão, que vai dar lá abaixo ao Quebedo e que o pai dele era (ou foi depois) diretor da Alfândega. Para não falar do Vítor Raposeiro, que ele chamava de Vítor 'Caniços' e que era guitarrista num dos conjuntos que havia na época e que foram aos 'concursos yé-yé'. Sei que também foste colega do António Justo Tomaz, que também esteve na Guiné e que foi requisitado para a Câmara de Bissau e mais tarde Presidente do Vitória.

Do Nelson posso falar-te de mais coisas com amizade, respeito, consideração, pois tenho muitas histórias dele e/ou passadas com ele.

O problema é o Nelson atual e foi por isso que demorei mais tempo a responder. Vacilei em dar-te as notícias mas agora acho que as coisas são como são e há que falar francamente. O nosso amigo Nelson está com um problema de 'alzeimer', que se tem vindo a agravar progressivamente e agora está muito complicado. Quando falamos com ele, às vezes lembra-se, outras não, e o tipo de linguagem é quase só 'pois, pois, pois', 'o dinheiro, pois, pois, o dinheiro' (está a chamar dinheiro a tudo por lhe faltar o vocabulário).

 Isto custa-me muito, a impotência de fazer qualquer coisa, está a rebentar com os nervos dos familiares, como calculas. Já não estou com ele há mais de um mês, embora telefone com regularidade a saber dele.

Enfim, amigo, uma nota triste, mas achei preferível dar-te conhecimento.

Agora, um outro assunto. Com que então Gadamael... não podias ter tido melhor sorte... local arborizado, perto dum rio, com muito fogo de artifício, nada de monotonias.... quando hoje se conta um bocadinho dessas autênticas epopeias a malta nova não acredita e pensa que se está a exagerar. Enfim, espero que não tenham que passar por nada semelhante.

Relativamente ao resto.... pois, sendo uma coisa que não te é agradável, não falo disso. Apenas gostava que desses então uma olhadela no tal Blogue "Luís Graça e Camaradas da Guiné" (ou então procura por "Tabanca Grande") e diz-me qualquer coisa. O meu interesse é que gostava de ter alguma intervenção tua em termos de recordação da tua participação na Guiné (em geral, ou no PIFAS em particular, se possível). Isso pode ser entrando diretamente em comunicação para o Editor de acordo com os endereços lá disponibilizados ou então para mim que posso veicular, já que sou um "colaborador permanente".

Já agora, que estou numa de escrever... talvez pudesse ser para ti uma proposta de trabalho ires repescar o que fazem (individualmente ou ainda como grupo) as várias 'bandas' ou conjuntos desses tempos dos concursos no Monumental...

Um forte abraço.
Hélder Sousa


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7. Mail enviado mais tarde, a 07/12/2015

Meu amigo Armando
Aqui te envio um texto (um 'post') saído na passado sábado no Blogue de que te já falei, "Luís Graça e Camaradas da Guiné". (trata-se do “post” 15449).

É a propósito da tua intervenção no programa das músicas do tempo da guerra, do Marinho.
Vê se gostas.

Acho que está bem...

Abraço
Hélder Sousa


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8. Mail recebido a 09/12/2015

Olá Hélder,

É sempre bom recordar momentos marcantes da nossa vida. E como a Guiné nos marcou a todos…
Obrigado pelo que escreveste sobre o que tem sido o meu percurso profissional.

Um abraço forte do
Armando Carvalhêda
Antena 1


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Depois disto não houve mais troca de mails.

Cheguei a tentar combinar com o Armando Pires aparecer num dos programas ao vivo do “Vivá Música” mas por diversas razões nunca aconteceu.

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

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Notas do editor:

[1] - Vd. post de 5 DE DEZEMBRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P15449: O PIFAS de saudosa memória (19): O Armando Carvalhêda no programa "Canções da Guerra", do Luís Marinho, na Antena Um: "O PIFAS, o Programa das Forças Armadas, era mais liberal do que a Emissora Nacional"...:

1. O Armando Carvalhêda é outro dos grandes senhores da rádio (*) que passou pelo Programa das Forças Armadas, o popular PIFAS, entre abril de 1972 e setembro de 1973, conforme ele recorda em conversa com o Luís Marinho, no programa da Antena Um, Canções da Guerra. O seu depoimento pode ser aqui ouvido, em ficheiro áudio de 4' 55''.
Segundo o Armando Carvalhêda, o PIFAS, transmitido pela Emissora Oficial da Guiné, era "mais liberal" do que a estação oficial, transmitindo canções de "autores malditos", como José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Zeca Afonso, que não faziam parte da "playlist" (como se diz agora) da Emissora Nacional, em Lisboa.
Eram os próprios radialistas, os locutores de serviço, jovens a cumprir o serviço militar e coaptados para a Rep Apsico, para o Serviço de Radiodifusão e Imprensa, que faziam "a pior das censuras", que era a autocensura...
O Armando dá um exemplo, com o LP do José Mário Branco, "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" (que tinha sido editado em Paris, em 1971)... Havia um consenso tácito sobre algumas músicas que não deviam passar no PIFAS. Neste LP, era, por exemplo, o "Casa comigo, Marta!"...


Último post da série de 5 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25718: In Memoriam (505): A. Marques Lopes, cor inf ref, DFA (1944-2024), um histórico do nosso blogue: despedida amanhã, às 11h45, no Tanatório de Matosinhos; e Elisabete Vicente Silva (1945 - 2024), viúva do nosso camarada, dr. Francisco Silva (1948 - 2023): o funeral é hoje, na igreja de Porto Salvo, Oeiras, às 16h00

Guiné 61/74 - P25733: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (3): "A morte da professora de Samba Culo ainda me pesa na consciência"...



"Um vaso de flores" (Imagem: Página do Facebook do A. Marques Lopes, 19 de abril de 2023): 

(...) "Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro." (...)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967/69) > O A. Marques Lopes em 1967, com duas bajudas da localidade .  

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Nunca é demais relembrar aqui a morte trágica da professora do PAIGC que, tal como o  nosso saudoso amigo e camarada A. Marques Lopes (1944-2024),  então alf mil da CART 1690 (Geba, 1967/68) estava no sítio errado, e à hora errada, na barraca" de Samba Culo, no antigo regulado de Banjara, em 7 de julho de 1967, uma sexta-feira.  Foi morta por um rajada de G3, disparada pelo alf Lopes. Seria de etnia manjaca e cristã.

Foi um duelo de morte, coisa que era raro acontecer naquela guerra de guerrilha e contraguerrilha: os combatentes de um lado e do outro não tinham muitas ocasiões para se olharem olhos nos olhos. Como nos filmes do Faroeste,  o alferes foi mais rápido a puxar pelo gatilho. Fora treinado para matar. Mas só queria não morrer. A morte da professora marcou-o, para o resto da vida (*).

Trinta anos depois, em 2008, o A. Marques Lopes (já como cor inf ref, DFA) voltou lá, a Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, no antigo regulado de Banjara, para fazer contas com os fantasmas do passado. (**)

E deixa-nos, em prosa poética (**), um texto que é revelador dos valores e princípios de um grande ser humano e de um militar português com sentido de honra e consciência moral.

Sobre este episódio da sua vida de combatente escreveu "ad nauseam" (no nosso blogue, no sue livro, na sua página do Facebook...). O fantasma da professora de Sama Culó tê-lo-á perseguido toda a vida. E isso ajuda a explicar  o seu gesto solidário, ajudando mais tarde a construir  a escola de Samba Culo:  fez-se sócio da ONGD "Ajuda Amiga" (****).

Há dois anos e 4 meses, ainda em vida,  em 19 de janerio de 2022, ele deixou esta mensagem pungente na sua página do Facebook:


(...) A morte da professora ainda me pesa na consciência 

Escrevi isto no meu livro “Cabra-cega”. Os nomes são fictícios, não os reais dos intervenientes. Mas há um que denuncio: o Aiveca é o alferes Lopes, (...)



Voltamos a transcrever este excerto que ele selecionou, do livro "Cabra Cega" (205, pp. 389/393), omitindo deliberadamente (?) o pormenor escabroso, patológico.  em que o soldado Cosme (nome fictício, que morrerá mais tarde em combate, em Sinchã Jobel)) "estava em cima da rapariga" (já cadáver...) "puxando-lhe a saia para cima e com a mão já nas cuecas" (pág. 393).  São 16 linhas que ele em 2022 censurou, considerando a cena indigna de um "tuga"...



A. Marques Lopes
(1944-2024).
Foto de LG (2015)
A morte da professora 
de Samba Culo ainda me pesa na consciência

por A. Marques Lopes


(...) Seguiram à beira da mata por uma faixa não alagada. Foram três horas e meia a ser massacrados pelo sol e pelos mosquitos, às vezes a enterrar-se quase até aos joelhos em poças de lama. Viu um ou outro soldado a sair da coluna para ir encher o cantil na água da margem mas não disse nada. Eles só queriam era beber, não se preocupavam e ele já não
 estava  para se chatear com isso. Já não sabia   que era pior, se uma doença ou aquilo  em que andavam metidos.

Pararam finalmente. O PCV, que volteara por ali desde o início e desaparecera algumas vezes, andava agora no ar novamente. O Lindolfo é que sabia, porque estava em contacto, mas Aiveca supunha que, quando desaparecia, era para se ir reabastecer. 

Estavam todos sentados e com as camisas do camuflado abertas. O Sousa Rato estava lixado dizendo que tinham sido muito mais de três quilómetros, tinham sido para aí uns seis ou mais. Aiveca desculpou-se, fora o capitão Lindolfo que lhe dissera que eram três. Alguém se aproximava vindo lado da companhia e reconheceu o alferes Rodrigo.

 
− É, pá, o Lindolfo diz que ficamos aqui um bocado a descansar. Só arrancamos quando o PCV ordenar. Agora é o gajo lá de cima que manda.

−  Lá em cima não se deve estar mal - comentou Aiveca.

Soergueu-se massajando as costas com a mão direita.

− E, olha
 continuou o Rodrigo  − quando estivermos em cima da base,  o Lindolfo diz para te avisar que vamos avançar em linha. Tu pela direita e nós pela esquerda.

Parou para ver se ele tinha entendido.

− Ok, chefe.

Bateu-lhe a pala, gozão, e esticou-se novamente. O Rodrigo não lhe ligou mais e foi-se embora.

Foi pouco descanso. Muito pouco tempo depois de o Rodrigo se ter afastado e de o PCV ter passado por cima uma vez, mas bastante por alto, depreendeu que não queria denunciar a presença da tropa ali. Notou, depois, que os soldados da companhia se estavam todos a levantar com as G3 na mão.

 Andor, pessoal!  
− disse para os seus.

Meteram pela mata atrás dos outros. Após vinte minutos tiveram de parar, os da frente tinham feito o mesmo. Já deviam ter andado um quilómetro mas parecia-lhe que ainda havia muita mata pela frente. Estava a criticar mentalmente o Guilhermino por também não saber calcular as distâncias quando vieram de longe, mas não muito, os sons de numerosa fuzilaria e rebentamentos.

−  É o capitão Guilhermino que está a levar  
− disse para o Belmiro, que estava com ele à cabeça.

Os da companhia retomaram a marcha, mas de forma mais acelerada. Deu indicação para fazerem o mesmo. Dez minutos andados e as árvores foram substituídas por arbustos, não muito altos mas que os tapavam. Os da companhia estavam parados e em linha. 
Eram três e meia da tarde. Fizeram igual. Os furriéis e o Belmiro estavam ao pé dele quando o Rodrigo lhe viera dar o recado, tinham ouvido as indicações. Começaram a andar. As G3, que tinham andado descansadas a tiracolo ou aos ombros como enxadas, iam agora nas mãos com ar ameaçador de sanha assassina. 

Após andarem uma trintena de metros lá estava a base, mesmo ali, quase a tocar-lhes. Do lado esquerdo, na direcção dos da companhia eram talvez umas trinta casas, algumas com telhados de zinco. Em frente dele uma barraca rectangular com paredes e cobertura de capim, estava bastante separada das casas. O Guilhermino continuava a levar. Era do outro lado, percebia-se bem agora.

Quando avançaram todos rapidamente, quase em corrida, Aiveca e os seus entraram de rompante na barraca. Os do Lindolfo, do outro lado, já tinham começado às rajadas. Viu logo que era uma escola. Uma rapariga que estava ao pé do quadro tirava uma kalashnikov que estava lá pendurada.

Levantou a mão esquerda ao alto para ninguém disparar.

− Tá quieta! Firma lá!  
− gritou-lhe.

Mas ela não. Com a arma já empunhada meteu o dedo no gatilho. Disparou instintivamente. Ela caiu para trás e as balas da kalash furaram o capim do tecto.

Ficou estático de olhos esbugalhados fitados nela. A cabeça escaldava-lhe e o coração parecia querer soltar-se. Os soldados puseram-se à volta dela a observar e a comentar. A sua rajada acertara-lhe na barriga e no peito. Era bonita e devia ter vinte e poucos anos. Alguns levantavam a cabeça para Aiveca mas, ao ver a cara que tinha, preferiam não dizer nada.

 
− Meu alferes, se não tivesse disparado,  ela matava-o − acabou por dizer o sargento Belmiro.

Os outros apoiaram-no. Acalmou um bocado. Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro.

 Deixa-me ver isso, Carmelita.

 Estão ali uma data deles por trás do quadro, meu alferes.

Tinha uma capa vermelha. Na metade superior e em letras grandes brancas dizia: "O Nosso Primeiro Livro de Leitura". Na outra metade tinha a reprodução a cores da fotografia de um grande ajuntamento com um cartaz: O PAIGC Vencerá. Folheou-o também. Eram as várias letras e ditongos do alfabeto com vários exemplos de palavras portuguesas. Havia também alguns textos sobre a luta deles.

− Meu alferes, venha ver o que está aqui.

Era o Martins ajoelhado a um canto ao pé de uma mala aberta.

−  Carmelita, guarda-me este livro no bolso das calças.

Foi ver o que tinha o Martins. Ficou pasmado assim que olhou. Era um casulo para a missa. Ajoelhou-se também e pôs-se a remexer no que estava na mala, cada vez mais pasmado. Estava lá tudo o que bem conhecia da liturgia da missa: o casulo, a estola, a alva e o cíngulo para a apertar. Aiveca estava completamente atónito. (...)



(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Detalhe > Posição relativa de Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, a sudoeste de Canjambari, afluente do rio Farim, e aonde havia, em 1967, uma "barraca" do PAIGC, com uma escola e uma professora.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
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(**) Vd. poste de 8 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11215: Blogpoesia (327): In Memoriam: A professora de Samba Culo, morta em 7/7/1967, de Kalash na mão (A. Marques Lopes)

(***) Postes anteriores da série > 

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25732: Historiografia da presença portuguesa em África (431): João Vicente Sant’Ana Barreto, e o estado da Saúde na Guiné, vai para um século (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Foi uma surpresa, numa memória destinada a uma exposição internacional, o oficial médico João Barreto, autor da única História da Guiné na área da Saúde, redige um curto ensaio sobre a climatologia e nosografia (classificação das doenças) na Província da Guiné, num impressionante desacordo do que redigiu, por exemplo, no seu relatório apresentado em 1927 à direção dos Serviços de Saúde e Higiene, houvera uma missão para averiguar se a doença do sono existia ou não entre as populações indígenas da colónia, e ao mesmo tempo proceder a inquéritos sobre outras doenças, tendo concluído que na circunscrição de Buba a doença do sono existia de uma forma endémica, a extensão da tripanossomíase era enorme, havia casos de lepra em Bolama, como de elefantíases, ora o que o leitor tem pela frente nesta memória é uma imagem tranquilizadora e de uma quase inexistência de doenças, estamos a falar do mesmo médico no referido relatório apresentado em 1927, propõe a criação de uma brigada médica com caráter permanente, de forma indispensável a erradicar a tripanossomíase. Fica-se com a ideia que o Dr. João Barreto, por iniciativa própria ou a pedido, resolveu uma imagem altamente positiva da profilaxia, do sistema de vacinação e do bom funcionamento dos serviços. Felizmente que está escrito o contraditório...

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, e o estado da Saúde na Guiné, vai para um século

Mário Beja Santos

No mesmo ano em que Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro publica o anuário da Guiné de 1925, é dado à estampa uma memória da sua responsabilidade destinada à Exposição Colonial Interaliada de Paris. É no âmbito dessa publicação que aparece um texto da responsabilidade de João Vicente Santana Barreto, oficial médico, diretor do Laboratório de Análises do hospital civil e militar de Bolama. A sua intervenção intitula-se Climatologia e Nosografia. Começa por referir que a província apresenta os característicos dos climas tropicais, a média da temperatura atmosférica, à sombra, em mês algum é inferior a 20º C; não há altitudes ou ocidentes geográficos notáveis; do ponto de vista térmico podem distinguir-se na Guiné uma zona marítima, compreendendo o arquipélago dos Bijagós, a qual se faz sentir a ação moderada do oceano, e uma zona continental em que a média de temperaturas máximas é mais elevada, assim como a diferença entre estas e as mínimas. Dá conta do funcionamento do observatório meteorológico de Bolama, dirigido por um oficial da Marinha, o resumo das observações é publicado no mapa mensal no Boletim Oficial da Colónia; alude seguidamente às duas épocas bem distintas (seca e chuvas), tece observações sobre a temperatura atmosférica e as chuvas, é com base nestes elementos que elencas as seguintes considerações:
“Podemos concluir que esta Província não tem condições muito favoráveis para aclimatação e fixação definitiva do elemento europeu, mas nada há que obste a sua permanência mais ou menos prolongada nesta colónia, quer como funcionário quer como colono, sobretudo depois dos melhoramentos sanitários introduzidos nos últimos anos e com uma compreensão mais nítida dos deveres da profilaxia individual.
Verifica-se que não existe na Guiné muitas das endemias que em geral se encontram nas regiões tropicais. Os principais factores que se opõem à fácil aclimatação do europeu nesta colónia são o elevado grau de temperatura e humidade atmosférica e o paludismo endémico.
É evidente que um individuo da raça branca adaptado ao clima temperado ou frio e transportado para um meio em que raras vezes o termómetro chega a 22º C, não pode deixar de manifestar sinais de anemia e debilidade nervosa, que se traduzem por uma rápida diminuição da atividade funcional e das faculdades de trabalho.

É o paludismo a doença que mais de perto interessa o imigrante europeu. Felizmente a luta contra esta endemia é relativamente fácil na Guiné, porque a grande parte da sua população, que é indígena, conserva-se totalmente indemne às febres palustres. A malária domina entre os imigrantes estranhos à colónia, os europeus, os cabo-verdianos e em especial entre as crianças mestiças. São essas crianças o principal reservatório do hematozoário que nelas se desenvolve admiravelmente, favorecido pela ausência da higiene e profilaxia antipalustre e ainda pela falta de tratamento convenientemente dirigido. Sob o ponto de vista restrito da malária, as crianças mulatas são o reservatório permanente do parasita que o Anófeles vai buscar para o inocular nos imigrantes.”
E refere as medidas especiais para combater a endemia palustre, enunciado os diplomas.

E repertoria as principais doenças existentes na Guiné: varíola - não é endémica, só aparece sob a forma de pequenas epidemias localizadas a uma ou mais tabancas (o indígena aceita a vacinação preventiva sem relutância); peste - não é nem nunca foi endémica, em 1921 esta doença foi importada do Senegal e localizou-se na vila de Cacheu, a partir dessa data até hoje não se encontraram quaisquer indícios da doença, quer no homem quer nos animais; cólera - não consta ter havidos casos dessa doença; febre amarela - o vómito negro não é nem foi endémico nesta província; lepra – existem algumas dezenas de indígenas portadores da doença; elefantíase - encontram-se exemplos notáveis de portadores dessa enfermidade entre os Manjacos da Costa de Baixo e regiões vizinhas, fora das quais é mais raro encontrarem-se casos em número apreciável; tripanossomíase - não consta ter-se verificado a existência da doença do sono, quer pela observação clínica, quer pelos exames laboratoriais; parasitas intestinais - além das vulgares lombrigas, encontram-se amibas disentéricas; febres tifoides e paratifoides - nas estatísticas nosológicas da Guiné encontram-se um ou dois casos de febres tifoides, mas é fácil verificar que se trata de doentes importados, casos autóctones de febres paratifoides só se registaram três, em 1921, na vila de Cacheu.

“De tudo isto é lícito concluir que a malignidade do clima da Guiné é uma lenda que tende a desfazer-se com o conhecimento mais exato da verdadeira situação da colónia.”


Bissau - Residência do Governador na Fortaleza
Bafatá, utensílios fabricados por indígenas
Bafatá - Rua principal
Bissau - Fábrica de cerâmica
Cacheu - O antigo Forte
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Nota do editor

Último post da série de 3 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25711: Historiografia da presença portuguesa em África (430): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25731: Timor-Leste, passado e presente (11): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte III: A vida de um médico de saúde pública, Dili, 1941 d

 

Uma rua de Dili


Baía de Dili


Ponte-cais de Dili


MIssão católia de Lahane


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Farmácia e posto médico


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Enfermaria de mulheres

Timor (c. 1936-1940)

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné (2024)


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


 O livro em apreço é um documento importante para se conhecer melhor este período dramático  da história de Timor durante a II Guerra Mundial, em que o território foi invadido e ocupado pelos Aliados (forças anglo-australianas e holandesas, em 17 de dezembro de 1941) e, depois, em resposta às forças aliadas, pelos japoneses, passados dois meses, em 19 de fevereiro de 1942. (Mas os japoneses vieram para ficar até ao final da guerra, perante a impotência de Portugal para fazer valer não só a sua soberania territorial como o seu estatuto de país neutral naquele conflito.)

Tanto quanto sabemos, o dr. José dos Santos Carvalho seria  natural de Armamar e teria nascido na primeira década de 1910, ou princípios da década seguinte.  Foi colocado em Timor, como médico de 2ª classe, em 1940, ezercendo funções de autoridade de saúde.

 Atualizámos a ortografia e a grafia dos topónimos. O livro foi redigido no principio da década de 1970, sendo uma edição da Livraria Portugal Editora, na Rua do Carmo 70  (que já não existe como editora, segundo julgamos),composto e impresso na Gráfica de Lamego, concelho vizinho de Armamar.


A vida de um médico de saúde pública 1941 (**)

por José dos Santos Carvalho


Em meia dúzia de páginas (15-24), o autor conta-nos como era o quotidiano, rotineiro, de um médico no mais longínquo território ultramarino, administrado por Portugal.  (Em princípio, o dr. José dos Santos Carvalho deveria ter o curso de medicina tropical e o curso de medicina preventiva / saúde pública, tirados respetivamente no Instituto Superior de Higiene e Medicima Tropical e no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.)

O tom não é crítico, em relação nomeadamente à penúria de recursos e ao isolamento em que se encontravam os poucos funcionários portugueses que ali trabalhavam, e uma centena de desterrados, oriundos quer da metrópole quer de Macau, uns por motivos políticos outros por crimes de delito comum: o mais "ilustre" dos deportados políticos era o dr. Carlos Cal Brandão (1906-1973),  um jovem advogado do Porto, que chegaria a Timor em 1931, acusado de "bombista".

Já foi aqui descrita a atribulada viagem (de vários meses, pela rota do Cabo) do nosso médico para chegar, no final do ano de 1940, e começar no ano seguinte a exercer as suas funções (deve ter sido em meados de 1940 que ele foi colocado   em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial"). 

(i) Ficamos logo a conhecer o corpo clínico do  território (4 médicos!), que o esperava à sua chegada, em 29 de dezembro de 1940:

  • o chefe da repartição de saúde, dr. Alves de Moura;
  • o dr. Correia Teles e sua esposa, a dra. Elvira; 
  • o dr. Arriarte Pedroso; 
  • o dr. Francisco Rodrigues.

(...) Desembarcando na ponte-cais de Díli, todos os médicos de Timor aí se encontravam para me receberem (...)-

(...) [O dr. Francisco Rodrigues],  delegado de saúde da zona leste, havia-se deslocado de Baucau a Díli, por essa ocasião. O dr. Arriarte Pedroso era delegado de saúde da zona oeste, mas residia em Díli, o que lhe era permitido por dispor de um automóvel que o levava rapidamente à sua área de acção.

(ii) O atraso, o isolamento e o subdesenvolvimento de Timor eram de tal ordem que só havia, em Dili, a capital, um único "hotelzinho":

(...) Fiquei hospedado no hotel do deportado sr. Costa Alves,
único que então havia em Díli, muito modesto mas asseado e
relativamente confortável.


(iii) Seguem-se no dia seguinte os cumprimentos da praxe às autoridades, e logo ali passa a admirar, incondicionalmente, a figura do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (Porto, 1893 - Lisboa, 1968), oficial de infantaria e administrador colonial, que teve de lidar com a terrível situação da invasão e ocupação de Timor por forças estrangeiras(e que no regresso à Metrópole, em finais de 1945, foi "metido na prateleira").

(...) Na manhã do dia seguinte fui fazer a minha apresentação à direção de administração civil onde o intendente Sousa Franklin me conduziu ao chefe do gabinete do governador, o capitão Manuel do Nascimento Vieira que, imediatamente, me levou à presença do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho.

Figura desempenada de militar de carreira impecavelmente
fardado de branco, profundamente me impressionou o seu porte de natural distinção,  aliado à evidente amabilidade e compreensão com que acolheu o médico novato no meio colonial, convidando-o a ir jantar à sua residência, num dos dias seguintes.

(v) Ficamos a saber qual era a agenda do autor para os próximos seis meses:  seria o delegado de saúde da zona central da ilha (com sede em Díli e abrangendo o concelho deste nome, a circunscrição de Aileu, o posto administrativo da ilha de  Ataúro e o território do enclave de Oecussi).

(...) Como o dr. Alves de Moura estava de partida para a metrópole, em gozo de licença graciosa, o dr. Correia Teles deixaria a delegacia de saúde da zona central e passaria a chefe da repartição de saúde. 
 
(vi) Para a passagem de ano o nosso médico  foi convidado para os
 dois únicos clubes que existiam, e que tinham de chamar-se, tal como na Guiné desse tempo, Sporting, um, e Benfica, o outro. A escassa elite colonial esteve lá, nestas festas de passagem de ano.
  
(...) Assim, como todos os meus colegas e quase toda a sociedade (sic) de Díli, passei essa noite alternadamente numa ou noutra dessas associações, em ambiente de grande animação e alegria, marcadamente familiar mas cheio de dignidade e simpatia.

Estiveram presentes às festas as pessoas mais gradas da terra, todas acompanhadas da sua família:

  • o Governador, 
  • dr. juiz de direito [José  Nepomuceno Afonso dos Santos, pai do Zeca Afonso], 
  • o dr. delegado do procurador da república, 
  • o engenheiro José de Azevedo Noura (sic), diretor das obras públicas, o diretor das alfândegas Monteiro do Amaral, 
  • o diretor dos correios Fortunato Mourão,
  •  o dr. Tarroso Gomes,
  •  o dr. Cal Brandão,
  •  o senhor Jaime de Carvalho, etc, etc.


Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp.  Cortesia de Internet Archive.


(vii) Ficamos a saber que havia alguns automóveis na ilha mas que,  no interior montanhoso, eram de pouco valia,  daí o recurso ao transporte a cavalo. Fala-se tétum no mercado ("bazar"). E é em Lahane, numa encosta sobranceira a Dili, que residem as principais figuras públicas: 

(...) No dia 2 de Janeiro de 1941 iniciei as minhas funções oficiais. Manhã cedo, o dr. Correia Teles foi-me buscar ao hotel com o seu automóvel e saímos da cidade atravessando uma pequena planície onde, perto da estrada, se encontrava em plena atividade o «bazar», isto é, o mercado. 

Senhoras europeias passavam por entre os vendedores de fruta, hortaliça, galinhas, etc, combinando com eles, em tétum, o preço das suas compras.

Passados cerca de dois quilómetros após Díli, começámos
a subir, já na encosta da montanha e logo encontrámos o lugar
de Lahane onde estavam instaladas a missão (um pouco fora
da povoação) e a missão geográfica e tinham a sua residência
o chefe do gabinete do governador, o dr. Juiz, o dr. Francisco
Rodrigues, o director dos correios e outros funcionários.


(viii) Descreve-nos depois o modesto hospital colonial Dr. Carvalho, situado a escassas centenas de metros do "palácio do governador", e que será severamente danificado pelos bombardeamentos japoneses, um ano depois: 
 
(...) Um vasto e bem delineado pavilhão, solidamente construído
de pedra e cal, era o núcleo das várias edificações que o com-
punham. Nele estavam instaladas enfermarias para homens,
quartos de 1ª e 2ª classe, as salas de operações e de tratamentos, a secretaria, etc.

Paralelamente ao pavilhão principal estendiam-se as instalações anexas: cozinha, despensa, arrecadação de géneros, casas de banho e instalações sanitárias.

Próximo do pavilhão principal encontrava-se a casa mortuária, sólida construção em cimento armado.

Para o outro lado do pavilhão principal, em relação à casa
mortuária, existiam um grande pavilhão de madeira e zinco,
utilizado como enfermaria de mulheres e maternidade e outro pavilhão semelhante destinado a doentes indigentes.

Cerca de cem metros mais além, estava a residência do chefe de repartição de saúde e director do hospital.

Colocado em plano mais baixo que o do pavilhão principal
havia um grande edifício de pedra e cal em construção próxima da conclusão (pois já tinha a cobertura e várias portas e janelas), que se destinava a pavilhão de doenças infecciosas. (...)

(ix) Fica-se a saber também que o hospital tinha a sua própria "farmácia do estado" (ou botica, artesanal), a cargo do farmacêutico de 1ª classe, capitão miliciano Mário Artur Borges de Oliveira (refugiar-se-á depois, na Austrália, abandonando o serviço)...  

"Semestralmente" (sic), eram fornecidos por Lisboa "os medicamentos, material de penso e cirúrgico, etc. requisitados pela farmácia, os quais se depositavam na grande cave que existe sob o pavilhão central do hospital".

(...) Nesta minha primeira visita aos serviços de saúde fiquei
a saber que a preparação e distribuição de medicamentos para
o hospital e para as enfermarias e ambulâncias das delegacias
competiam à farmácia do estado situada em Díli no mesmo edifício em que funcionava o posto médico, sendo assim designado um posto de consultas e tratamentos para servir a população da cidade em regime ambulatório, dirigido por um dos médicos do Estado que, por isso, recebia a gratificação mensal de cinquenta patacas. (...)

 

(x) Uma nota sobre o seu jantar "à mesa do Estado", ou seja, na casa do governador:

(...) No dia seguinte a este meu primeiro contacto com o serviço público fui jantar à residência do governador, conforme o seu referido convite, sendo recebido com extremos de gentileza e distinção pelo Governador, sua esposa, senhora D. Cora e suas três filhas, alunas do liceu de Díli.

Participou também da refeição, com a sua família, o tenente Francisco José Alves que era cunhado e secretário do governador, e em cuja residência também vivia. Outro convidado foi o chefe de posto Torresão, primo da esposa do governador e meu companheiro de viagem.

(xi) Havia tempo, na colónia, para a prática, então muito "British", do ténis; ao domingo, depois da missa, as famílias iam à praia da baía de Díli (ainda vinha longe a borrasca...)

(...) Durante este jantar surgiu a organização do grupo de jovens que nas tardes das quarta-feiras e sábados, se divertia, jogando ténis, dando passeios a cavalo, jogando o bridge ou, frequentemente, jogando o deck-tennis no pátio da Missão Geográfica onde o coronel Castilho e o engenheiro Canto nos recebiam com toda a benevolência e aprazimento, participando, este último, de muitas das nossas diversões.

Aos domingos, de manhã, após a missa, o ponto de encontro era na praia de Díli onde se passavm agradabilíssimas horas de salutar exercício e distração.

à noite, depois do jantar, havia sempre reunião no Sporting
ou no Benfica, conversando-se ou jogando-se o bridge, pingue-pongue, xadrez, etc, mas sem prolongar o serão pois todos começavam o trabalho de manhã, muito cedo. 


 (xii) Um dia típico de trabalho do dr. José dos Santos Carvalho, autoridade de saúde com funções também de médico-veterinário:


(...) Pelas oito horas da manhã vinha o árabe Abdula buscar-me ao hotel com o táxi de que era chauffeur. Seguíamos para o matadouro municipal, situado em Motael, próximo do farol de Díli, onde eu fazia a inspecção sanitária da carne dos animais abatidos para consumo público, pois Timor não dispunha de médico-veterinário.

Inspeccionada a carne, seguíamos pela estrada que contornava a planura de Díli, para o hospital onde, agora, eu tinha doentes de duas enfermarias a tratar. O meu trabalho ficava concluído cerca de meio-dia e o mesmo táxi me trazia de volta ao hotel. 


(xiii) Como era normal nas colónias, os hospitais eram, para os jovens médicos, uma verdadeira escola pelos casos de doenças, tropicais, infecto-contagiosas com que tinham de lidar, em geral pela primeira vez (boubas, paludismo, beribéri, sarna, disenteria...):

(...) No hospital Dr. Carvalho tive oportunidade de observar casos de doenças exóticas que nunca pudera estudar senão nos livros.

Eram muito frequentes os casos de boubas, uma doença aparentada com a sífilis e que se manifesta pelo aparecimento de tumefacções com o aspecto de toucinho, húmidas e repugnantes.

Felizmente que em Timor esta doença já era, então, facilmente tratada, pois o farmacêutico Oliveira tinha estudado e posto em prática técnicas simplicíssimas de preparar uma suspensão de salicilato de bismuto em óleo de amendoim, a 10%, que se esterilizava pela fervura e que se guardava em garrafas vulgares, também esterilizadas pela fervura. 

Todos os enfermeiros sabiam preparar esta suspensão oleosa que se aplicava em injecções intramusculares, indolores, e que a prática demonstrava não serem mais atreitas a infecções que as das ampolas injectáveis!

Grande surpresa para mim foi o aspecto que nesta terra apresenta a sarna que, quando não tratada, alastra de uma aneira incrível, complicada com lesões impetiginosas que devoram a pele dos doentes e muitas vezes os matam devido a septicémias !

Vulgaríssimos em Timor eram o paludismo, frequentemente de forma perniciosa, e a disenteria bacilar, quase sempre ocasionada pela utilização de fruta não madura, sobretudo mangas verdes, de que os timorenses são muito gulosos.

(xiv) Era uma "pasmaceira", a vida de um médico em Timor em 1941, trabalhando-se em geral apenas de manhã, que o clima (tropical) era violento para um europeu.
 

(...) Os meus serviços clínicos, à tarde, limitavam-se a idas ao
hospital quando, por urgência, era avisado telefonicamente
para aí me apresentar para colaborar em operações cirúrgicas
ou tratar casos urgentes ou quando havia nas enfermarias doentes graves que necessitavam assistência muito frequente.

(xv) Sobrava-lhe tempo e vagar para "conhecer Díli, que então era uma simpática e característica cidadezinha, do tamanho duma vila da metrópole, ensombrada por frondosas árvores, algumas das quais seculares, e dominada pelas alterosas torres da sé-catedral"... 

Uma cidadezinha, acrescente,-se, que não seria diferente de algumas da povoações da Guiné desse tempo (ou que conhecemos, vinte e tal anos depois com a "guerra colonial"): Bolama, Bissau, Bafatá, Nova Lamego... Timor e Guiné tinham em comum o facto de terem energia elétrica pública...

(...) As suas ruas rectilíneas cruzavam-se em xadrez e eram mantidas em conveniente limpeza pelo município. A maioria das edificações era construída de madeira e barro, sendo cobertas com telhados de folha de ferro zincado. Dispunham dum só piso, para poderem suportar sem graves danos os tremores de terra que por estas regiões são muito frequentes, atingindo, por vezes, grande violência.

Destinadas, quase todas a estabelecimento comercial e à habitação dos proprietários eram, em regra, pertença de chineses, havendo, somente, um negociante indiano, o muito conhecido Wadoomahl. Duas casas comerciais se destacavam, de longe, em Díli. A da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho e a da família chinesa Mie-Hap.

No melhor edifício particular da cidade, construído de cimento armado e colocado em situação esplêndida na avenida marginal da baía de Díli, vivia o alemão sr. Max Sander, representante duma companhia, a Ásia Investment Company que se havia estabelecido na ilha com o fim de explorar minérios, mas que nunca chegara a desenvolver essa actividade, apesar de ter praticado extenso trabalho de prospecção e instalado um completo laboratório químico.

Na avenida marginal eneontravam-se os principais edifícios
da cidade (o palácio do governo, o liceu Vieira Machado, a casa da alfândega, o colégio das irmãs canossianas, a escola chinesa, a sede da Ásia Investment Company, etc.) e um lindo jardim dentro do qual estavam, situados dois cortes de ténis de piso em betão para poderem ser utilizados na época das chuvas.


(xvi) O autor dá-nos conta também da sua visita à missão geográfica de Timor, instalada em Lahane, e onde viviam "os então já meus amigos, coronel Castilho e engenheiro Canto".

(...) Mostraram-me as suas instalações e descreveram-me as atividades da Missão. Já tinham feito uma campanha, um ano antes e, agora, prosseguiam-na. Estava concluída a triangulação da ilha e, em breve, seguiriam para o seu interior com  fim da elaboração da sua carta, em escala conveniente. Eram auxiliados nos seus trabalhos geodésicos pelo sargento-radiotelegrafista da marinha, Luís de Sousa, pelo deportado sr. Granadeiro e por vários empregados permanentes, timorenses, muito activos e eficientes.

(xvii)  E, claro, não podia faltar uma visita à missão católica (os missionários eram, afinal, os principais agentes da "ação civilizadora e colonizadora":

(...) Outra minha visita foi à missão de Lahane onde o reverendo vigário-geral, padre Jaime Goulart me recebeu com extremos de cortesia e fidalga amabilidade.

A missão central de Timor estava instalada num edifício de madeira e zinco, com primeiro andar, bastante amplo e confortável, dispondo de capela privativa. Em conversa com o padre Jaime fiquei a saber que os sacerdotes de Timor eram formados no seminário de Macau, sendo oriundos do norte da metrópole, dos Açores, da Índia Portuguesa e de Timor.


 (xviii) Vamos agora conhecer o interior da ilha, pela mão do dr. José dos Santos Carvalho:

(...) Assim, logo de início me resolvi a deslocar-me às ambulâncias da área a meu cargo para tomar contacto e conhecimento objectivo dos respectivos serviços.

A primeira visita que fiz foi de automóvel, ladeando a maravilhosa baía de Tíbar e alcançando Liquiçá, Maubara e Bazar-Tete onde fui acolhido pelos respectivos chefes de posto e enfermeiros.

Poucos dias passados desloquei-me à circunscrição de Aileu, sendo a viagem feita quase toda a cavalo pois o automóvel só podia levar-me até à ribeira de Cômoro, ainda bastante longe da sede da circunscrição.

 (...) Chegados à Cômoro, aí encontrámos os cavalos que, emprestados pelo liurai da região, foram aparelhados com os arreios, isto é, selim com estribos, freio e rédeas, que levávamos no carro, pois os timorenses montam em pelo, guiando o cavalo com uma corda que lhe passa na boca.

Recebidos fidalgamente em Aileu pelo administrador Virgílio Castilho Duarte, natural de Cabo Verde, passámos um dia e uma noite na sua residência que, tal como a de outras autoridades de Timor, era cercada por muros ameados, sendo designada, nesta terra, como a «tranqueira».

(xix) Timor continuava, nessa época (1941), a ser terra de encarceramento e de desterro (situação que se aceita com "naturalidade"):

(...) Em Aileu, visitei a enfermaria regional e o presídio que, como a "tranqueira", dispunha de um pátio rodeado de muros. Os condenados reunidos neste estabelecimento prisional, eram oriundos, não só de Timor como de outras terras portuguesas, donde tinham vindo cumprir as suas penas de degredo. A maior parte dos condenados era de macaenses ou chineses de Macau.

A etapa seguinte foi até Maubisse onde pernoitámos em casa do chefe de posto sr. Ademar Rodrigues dos Santos, prote-gidos do frio que nestas regiões de altitude se faz nitidamente sentir, por espessos cobertores de lã.

No dia imediato cavalgámos em longa jornada até Same onde ficámos instalados na residência do chefe de posto sr. Francisco Mouzinho.

 
(...) Noutro dia, visitei a ambulância de Laulara, situada num
píncaro não longe de Díli, que só era acessível a pé ou a cavalo,
tendo passado e visitado o colégio de Dare onde as irmãs canosianas instruíam e educavam muitas dezenas de meninas.

Utilizando a ambulância do hospital Dr. Carvalho, fui, um outro dia, visitar a enfermaria do Remexio tendo ocasião de aí conhecer o respeitável liurai coronel D. Moisés, majestosa e nobre figura de timorense, com veneráveis cabelo e barba encanecidos.

(...) Aproveitei, então, o amável convite do dr. Arriarte Pedroso
para, no seu automóvel e em sua companhia visitar as povoações da Ermera e Hátu-Lia, terras de altitude razoável, de temperatura agradabilíssima, onde reina a «Primavera eterna» de Teófilo Duarte e a paisagem é paradisíaca.

(xx) De regresso a Díli, vem agradavelmemte reconhecido por este primeiro contacto com "um povo simples, amável e trabalhador". Faltava-lhe conhecer a ilha de Ataúro e o enclave de Oecússi, só acessíveis de barco.

(...) Em certo dia, o administrador do concelho de Díli, sr. ourenço de Oliveira Aguilar, comunicou-me que iria visitar a ilha de Ataúro e convidou-me a acompanhá-lo, visto eu ser o delegado de saúde.

Assim, seguimos no vapor Oé-Kússi, comandado pelo primeiro-sargento da Marinha, sr. Correia.

Pomos recebidos pelo chefe do posto de Macadade, sr. Napoleão, sargento de infantaria, e tivemos ocasião de observar s curiosíssimos costumes primitivos desse povo de simpáticos e acolhedores pescadores submarinos.


(xxi)  Faltava-lhe também ainda conhecer (e exercer) uma das suas funções, a de autoridade sanitária internacional (fiscalização das embarcações e aviões que passavam por Díli):

(...) Num dado dia, o capitão dos portos de Timor, comandante César Gomes Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a participar-me que estava a chegar ao cais um naviozinho que já tinha arvorado a bandeira amarela a pedir a necessária visita sanitária.

Dirigi-me, imediatamente, para o local designado onde aportara um elegantíssimo veleiro em cujo convés se via um único tripulante, em calções e de tronco nu.

Por esses tempos eram muito conhecidas, pelos jornas, as viagens do navegador solitário Alain Gerbault 
 [1893-1941],  francês que num iate, o Firecrest,  se havia celebrizado por ter atravessado, sem escala e sozinho, o Atlântico, desde a França a Nova Iorque e, depois, vagueava solitário pelos mares do mundo.

Por isso, quando subi ao convés do barco, dirigi-me ao comandante e único tripulante, dizendo-lhe, em francês: "O senhor é um novo Alain Gerbault!" 

O meu interlocutor, sorrindo, apresentou-me então a carta de saúde para eu assinar. O navio era... o Firecrest !.

Alain Gerbault, certamente para evitar os azares da guerra ficou ancorado no porto de Díli, vivendo no seu barco. Assim, tive oportunidade de com ele várias vezes contactar e de apreciar as suas extraordinárias qualidades de homem finamente educado e invulgarmente culto e, sobretudo, de me maravilhar com a sua extrema perícia em jogar o ténis, ele que fora, mais de uma vez, concorrente aos campeonatos de Wimbledon !

(xxiii) Mas já havia petróleo, japoneses e até alemães na ilha:


(...) Por esse tempo, o sr. Kuróki, cônsul do Japão em Díli,
deu uma festa no Sporting, para a qual convidou as personalidades de maior projecção no meio social da cidade. 

Deste modo tomei contacto, pela primeira vez, com essa gente. Desfaziam-se em mesuras e mostravam-se amabilíssimos procurando, certamente, agradar. Porém, evidentemente, não enganavam nenhum dos portugueses presentes. Com excepção do cônsul e do chanceler do consulado, os súbditos nipónicos que se encontravam em Timor trabalhando na Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho eram, provavelmente, espiões e, alguns deles, pelo menos, militares, pois os seus gestos os traiam. 

Em breve soube que o governador os mandava vigiar atentamente e somente lhes permitia as viagens indispensáveis, pois as suas actividades os haviam tornado suspeitos além de que, sem razão plausível, do Japão mandavam frequentemente novos homens a substituir os que se encontravam em Timor, pois não lhes era n permitido aumentarem o seu número.

(...) Na festa do consulado japonês encontrei, também, o australiano, velho colono de Timor Arthur Brian e os dois técnicos da QANTAS, srs. David Ross e Robert Smith que já conhecia das partidas de ténis e que, também, eram com toda a evidência, militares disfarçados.  

(...) Há muito tempo que em Timor tinha sido encontrado petróleo. Uma companhia estrangeira, a Allied Mining Timor Corporation havia feito furos de prospecção que mandara obturar assim que encontravam petróleo, explicando essa determinação pela não existência de depósitos economicamente exploráveis !

Num dado dia chegou a Díli o engenheiro Veiga Lima, nrepresentante duma companhia portuguesa recém-formada, a Companhia Ultramarina de Petróleos, afirmando que os trabalhos necessários iriam imediatamente começar. A verdade é que, logo a seguir, ela apareceu associada a uma nova companhia, holandesa, regressando o referido engenheiro a Portugal e sendo substituído pelo engenheiro-geólogo Brower, de nacionalidade holandesa, que com ele tinha vindo para Timor.

Teve este último engenheiro todas as facilidades para fazer os estudos topográficos necessários para a investigação da existência de petróleo em Timor, pois a carta da colónia feita por fotogrametria interessava, também, para complemento daquela que a Missão Geográfica estava a ultimar.

Assim, foi o piloto holandês do avião da carreira para Koepang que tirou as fotografias sucessivas que, vistas através duma lente binocular davam a sensação do relevo duma maneira flagrante e pude apreciar na Missão Geográfica onde eram revelados os filmes e depositadas todas as provas, conforme o exigido pelo governo de Timor.

Por esse tempo, os japoneses conseguiram autorização
[de Lisboa, não do governador local], para estabelecerem uma carreira de hidroaviões entre Tóquio e Díli, com escala pela ilha de Palau, que não tinha qualquer justificação económica razoável, pois não havia comércio com o Japão e de Palau a Díli os grandes hidroaviões da carreira demoraram, em voos experimentais, nove horas! 

 Assim, obtiveram oportunidade de alargar substancialmente o número dos seus técnicos residentes em Timor, pois as infraestruturas de apoio necessárias ao hidroaviões requeriam a presença inadiável de pessoal competente em mecânica e radiotransmissão.


(xxiv) E eis que chegam, em meados do ano de 1941, novos portugueses, incluindo o capitão Freire Costa, novo comandante da Companhia de Caçadores de Timor:

(...) Já perto do meado do ano, chegou a Díli o novo director da administração civil, intendente dr. João Ferreira Taborda (...). No mesmo barco vieram para Timor o comandante da companhia de caçadores, capitão Freire da Costa e o administrador António Policarpo de Sousa Santos, funcionário do quadro privativo da colónia, que foi colocado em Bobonaro (...).

Entretanto, passaram-se os seis meses do meu estágio de médico que iniciava a carreira em meio colonial, pelo que fui nomeado delegado de saúde da zona leste, em fins de julho de 1941,seguindo para Baucau, a florescente Vila Salazar, no vapor Oé-Kússi. (...)


Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 15/24

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, parênteses retos, itálicos  e negritos: LG) 
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Notaa do editor:



(**)  "O Hospital Civil e Militar Dr Carvalho foi projectado em 1892 pela Direcção de Obras Públicas do Distrito de Timor, sendo então governador Cipriano Forjaz (1890-1894). 

A proposta da sua construção foi feita ao Ministério da Marinha e dos Territórios Ultramarinos por Custódio de Borja, governador de Macau (1890-1894), a quem estava sujeito o governador de Timor, para substituir o Hospital Militar de Díli, erguido no década de 1870, cuja condição precária não lhe permitia prestar cuidados de saúde adequados à população local. 

Situado em Lahane, nos subúrbios da capital, conhecido pelo seu clima saudável, a construção do complexo hospitalar, que incluía também alojamento para funcionários, foi iniciada durante o governo de Celestino da Silva. Financiadas com recursos locais, as obras demoraram vários anos e o hospital foi finalmente inaugurado em 1906. 

Inicialmente nomeado em homenagem a D. Carlos I, passou a chamar-se Hospital Dr Carvalho após a implantação da República, em homenagem ao Dr. Tomás de Carvalho, que foi o primeiro representante da Província de Macau e Timor na Câmara dos Deputados (Parlamento) em Lisboa. 

A sua planta foi inspirada no modelo tipológico dos sanatórios de montanha então em voga na Europa no século XIX. Tem a estrutura de um pavilhão e assenta num pequeno planalto. Está alinhado com as curvas da encosta, correspondendo seu traçado aos principais serviços hospitalares. Está dividido em módulos autónomos de diferentes níveis para funções auxiliares e serviços de apoio hospitalar. O próprio hospital apresenta uma organização alinhada, com uma galeria de cada lado do corpo central na fachada principal conferindo ao conjunto um desenho simétrico, sendo o eixo realçado por um pequeno frontão curvo. 

O hospital de Lahane, o único em Timor até meados da década de 1930, altura em que se iniciou a construção de um novo em Liquiçá, foi  constantemente melhorado com novas valências. Ali foi inaugurada uma escola de enfermagem em 1920 e uma unidade para isolamento de doentes  com tuberculose foi construída na década seguinte. 

Após a invasão japonesa de Timor em 1942, as forças de ocupação assumiram o controlo do hospital até serem expulsas pelas tropas aliadas três anos mais tarde, mas o bombardeamento resultante deixou o edifício gravemente danificado.

Restaurado após a guerra, forma feitas  vários melhoramentos. Contígua ao edifício principal foi construída uma maternidade e criados um bloco operatório, uma enfermaria pediátrica e um laboratório clínico.

 Esta intervenção privou o hospital da sua traça original, pois foi retirado o frontão curvo, eliminando assim a simetria do edifício e abrindo a galeria a todo o comprimento do edifício. Isto privou o edifício do seu aspecto latino e o hospital assumiu o aspecto de um edifício colonial de origem britânica, segundo modelos utilizados principalmente na Índia e na Austrália por aquela potência".

Edmundo Alves | Fernando Bagulho

Fonte: trad. e adapt. de HIPP - Património de Influência Portuguesa > Dr. Carvalho Hospital  > Dili, Timor > Equipamentos e Infraestrturas (em inglês)

(**) Segundo a Wikipedia, em francês, Gerbault morreu em 16 de dezembro de 1941, em Díli, Timor Leste, de malária, abandonado, e na mais completa miséria. Valeu-lhe a solidariedade dos portugueses, incluindo o governador Manuel Abreu Ferreira de Carvalho.