segunda-feira, 27 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4254: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (1): Três oficiais: um General, um Coronel, um Alferes - suas personalidades

1. Mensagem de Fernando Gouveia (*), ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 5 de Abril de 2009, aquando da sua apresentação ao Blogue:

Camarada Luís Graça:

Só agora me é possível mandar os elementos para a inscrição na TG bem com a 1.ª estória.

A somar a todas as peripécias tive o PC avariado com a consequente reinstalação dos programas, etc.

Não vou prometer regularidade no envio das estórias mas vou fazer um esforço para, se não for semanal, será pelo menos quinzenal.

Esta 1ª estória considero-a grande e a 2ª é um pouco maior mas depois serão sempre bastante mais pequenas. Gostava de um feed-back sobre o tamanho (e não só) desta 1.ª.

O CVM vai incluído na 1.ª estória. Não sei se seria mais correcto enviá-lo à parte ou não.

Lamento, mas sobre Contuboel não tenho nada.

Mando em anexo todos os elementos

Um abraço
Fernando Gouveia

2. Nota de CV:

Por sugestão do nosso camarada Gouveia, esta primeira parte da sua "Guerra vista de Bafará", foi retirada do poste da sua apresentação, onde se encontrava indevidamente, e publicada hoje em poste autónomo, dando assim começo a esta nova série.



Três oficiais: um general, um coronel, um alferes - suas personalidades

Este é o meu primeiro escrito no blog, inserido no título geral "A guerra vista de Bafatá".

Torna-se assim importante prestar alguns esclarecimentos:

Passaram 40 anos sobre a minha comissão no leste da Guiné, no Agrupamento do sector leste, em Bafatá e a minha memória já pode falhar, nomeadamente quando refiro datas ou nomes.
Com a ressalva anterior tudo o que venha a relatar, reporta-se a factos reais por mim vivenciados.

Fiz a recruta como cadete em Mafra e também aí tirei a especialidade de Reconhecimento e Informações. Quando no quartel de Infantaria 12, no Porto, dava a 4.ª recruta, tendo portanto havido já três mobilizações de PelRecs mais novos, admitia já que podia passar à peluda sem ser mobilizado, até porque estava entre os melhores classificados na especialidade. Puro engano... Num belo dia de Maio de 1968, estava a dar instrução quando chegou a comunicação que tinha sido mobilizado, em rendição individual, juntamente com mais quatro camaradas, para a Guiné. Destino: QG de Bissau e Agrupamentos.

Em poucos dias fomos enviados para Lisboa onde, num sector ligado aos “Altos Estudos Militares” frequentámos um curso intensivo em que nos foi debitada, por oficiais superiores, imensa informação sobre a Guiné civil e militar, a guerrilha, a informação, a contra-informação, etc.
Quer durante a estadia em Lisboa, alojado na messe dos “Altos Estudos” em Oeiras, um autêntico hotel de 5 estrelas, quer na Guiné, tudo me correu pelo melhor. Sorte, sorte e mais sorte, contrariamente a muitos cuja falta de sorte lamento sinceramente.

Muitos camaradas morreram na operação “Mabecos Bravios” (**) e houve muito sofrimento na operação “Lança Afiada” (***). É certo que, de uma forma indirecta, também eu participei nas referidas operações e partilhei da dor que todos esses factos causaram. Felizmente não vim estropiado, mas vim com mazelas fisiológicas que perduraram por muitos anos, se é que ainda não perduram.

Passo agora a relatar alguns factos que, na minha perspectiva, definem três oficiais: Gen Spínola, Cor Felgas (quando o conheci era ainda Ten Cor) e Alf Mil Beja Santos.

O 1.º dispensa apresentações, o 2.º era o meu comandante e o 3.º era o alferes de quem mais ouvi falar e que mais vezes vi entrar e sair do Comando de Agrupamento de Bafatá.

Começo por dizer que tendo em conta tudo quanto vi, ouvi e me foi relatado por outros e, independentemente dos seus defeitos (quem os não tem?), se tivesse que escolher com quem trabalhar não teria dúvidas nas escolhas. Para meu comandante chefe não hesitava, escolheria o Gen Spínola e para meu comandante directo escolheria o Cor Felgas. Acrescento ainda que, como alferes miliciano que fui, gostaria de ter trabalhado ao lado do Beja Santos, pelos motivos que mais tarde explanarei.

Passemos aos factos.

Cheguei a Bafatá em 18 de Julho de 1968 (depois de duas semanas em Bissau a trabalhar na 2.ª Rep. do Q.G). Fui muito bem recebido pelos outros dois alferes do Agrupamento, o Ribeiro da Secretaria e o Vaz das Transmissões. Este último, logo no primeiro dia, em viagem guiada levou-me a conhecer as três tabancas que integravam Bafatá: Ponte Nova, Rocha e Nema.

Nessa altura o trabalho era pouco, pairava-se lá pelo aquartelamento das 9 às 12 e das 16 às 17.

Um dos alferes pôs-me a par da situação existente. Soube que iria substituir o anterior alferes de Informações (que não cheguei a conhecer) e que o Comandante anterior, Cor José Affa Castel Branco tinha ido de patins para a metrópole com 30 dias de prisão, na sequência de uma visita do General Spínola. O Gen ter-lhe–ia pedido informações sobre a situação no sector e o Cor titubeando, não soube adiantar nada. Ainda sobre este Coronel foi-me contado que costumava divertir-se à noite, a matar com uma carabina ponto 22, os gatos que iam ao cheiro dos restos do rancho, pelo que no dia seguinte havia sangue por todo o lado. Felizmente já não assisti a tão degradante espectáculo.

Decorreram mais quatro ou cinco dias de boa vida até que, vindo de Tite, chegou o novo Comandante, o Ten Cor Hélio Felgas. No primeiro dia, embora com um silêncio nas instalações, que não era habitual, tudo decorreu normalmente até começar a escurecer. Lembro-me desse dia como se fosse hoje, apesar de terem passado 41 anos. O Ten Cor passou a tarde na sala onde eu trabalhava (sala de Informações e Operações), sentado numa cadeira, a olhar para o mapa da Zona Leste (escala 1: 50.000), mapa esse que ocupava toda uma parede com uns 5x2,5m. Quando sentado, à frente dos seus olhos ficava o regulado do Cuor, mas o Cor olhava não só em frente, olhava junto ao chão e erguia-se quando precisava de ver zonas mais a norte, junto ao Senegal.

Em determinada altura começou a escurecer e o Ten Cor Felgas disse: - Gouveia, acenda-me as luzes por favor. Clic no interruptor. Acenderam-se duas lâmpadas de uns 25 ou 40W. A luminosidade adquirida não ultrapassou a que entrava pelas pequenas janelas, naquele fim de dia. O Cor Felgas teve um estremecimento, olhou na direcção das lâmpadas e, tão rápido como se respondia a uma emboscada IN, gritou:
- FERRRREEEEEIIIIRA COEEEELHO.

O Ten Cor Chefe do Estado Maior do Agrupamento lá veio a correr como todos os oficiais superiores fariam sempre que o Cor Felgas chamava. E, com voz de comando este continuou:
- Arranja um bloco, escreve, quatro lâmpadas fluorescentes, cinco ventoinhas, etc., etc. Quero aqui isso tudo no próximo avião de Bissau.

Moral da história… A partir desse dia e pelo menos até ao fim da minha comissão passou-se a trabalhar das 8 da manhã ás 8 da noite, com o intervalo para almoço. O Cor Felgas era um verdadeiro militarista e muito duro, só que com ele sabia-se com o que se contava, o que eu achava uma qualidade.

Passo a relatar um outro facto que envolveu os três oficiais: o caso dos cartuchos semi-enterrados na parada do quartel de Missirá. Pensava contar essa estória sem saber que estava relacionada com Missirá e o Beja Santos (embora tivesse essa desconfiança) quando a leitura recente dos seus livros mo veio confirmar. Foi também pela leitura dos mesmos que tomei conhecimento da punição do Alf Mil Beja Santos. Não devo ter sabido na altura porque em Março de 1969 me encontrava de férias, na metrópole. Caso contrário teria sabido, por certo, pois enquanto que para a maioria dos militares do agrupamento o Beja Santos era mais um alferes, eu, por inerência das minhas funções, estava a par da sua actuação que rondava o heróico, o que levava a que o Cor Felgas o idolatrasse como militar. Por isso não consigo entender a punição desferida cujo conhecimento, tantos anos depois, me indignou profundamente. (Eu também tive as férias cortadas por duas vezes mas isso dará outra estória).

Mas voltemos aos cartuchos semi-enterrados…

No dia da ocorrência dos factos, ou no dia seguinte transpirou que o Gen Spínola, ao visitar na companhia do Cor Felgas, uma tabanca em auto-defesa, teria demonstrado o seu desagrado com a falta de limpeza do aquartelamento criticando e atribuindo responsabilidades ao Cor Felgas, na presença de inferiores (o que era contrário ao RDM). Já de posse do conhecimento desse incidente, assisto ao seguinte: o Cor Felgas faz um telefonema para o Gen Spínola, não do seu gabinete como era costume, mas da minha sala (Informações e Operações). Esta sala tinha duas portas sempre abertas, uma dava para a Secretaria da Secção e a outra para um vestíbulo de acesso aos gabinetes do Comandante e do Chefe do Estado Maior, e à Secretaria Geral. A ligação foi estabelecida, não se sabia o que o Gen Spínola dizia do outro lado do fio mas ouviu-se várias vezes o Cor Felgas dizer em voz alta para que todos ouvissem:
- O meu comandante não precisa de pedir desculpas. Não peça desculpas, etc. etc.

A conclusão que eu tiro passados 40 anos é que o Alf Beja Santos foi o bode expiatório de tudo isso. Como lamento e me indigno.

Um outro facto que define a maneira de ser do Cor Felgas:

Na sequência do abandono de Madina do Boé em Fevereiro de 1969 e da ineficácia da Operação “Lança Afiada” o Cossé começou a ser ameaçado pelo Sul. O Comando Chefe, em princípios de Junho, envia uma ordem para o Agrupamento mandar grupos de militares enquadrados por oficiais disponíveis para as tabancas da periferia da zona habitada. Coube-me a mim ir para Madina Xaquili onde estive de 12 a 24 de Junho de 1969, mas isso vai ser argumento para outra estória. O insólito é que no dia 18 de Junho de 1969 o Cor Felgas munido dum burro de campanha e não sei de que séquito lá foi dormir uma noite a uma tabanca, não fosse o Gen Spínola puni-lo por não ter cumprido integralmente a ordem acima referida.

Enquanto todos os oficiais (Ten Cor, Chefe do Estado Maior e Majores) do Agrupamento andavam sempre a correr às ordens do Cor Felgas, a mim tratou-me sempre como se de um civil se tratasse. Nunca eu pensei em correr quando me chamava.

Num determinado, dia logo às 8 da manhã precisou de mim e, não me vendo, mandou-me chamar. Quando soube que eu tinha estado de serviço, pelo que tinha direito a dormir toda a manhã, imediatamente redigiu uma ordem no sentido de me não serem mais atribuídos serviços de oficial de dia, até ao final da comissão.

Sempre tive a impressão que o Cor Felgas, apesar de militarista a cem por cento, era um homem de ideias um tanto ou quanto abertas. Recebia regularmente publicações como a “Jeune Afrique” e na altura estava a escrever um(ns) livro (s) sobre política do continente africano.

Foi por isso, com estranheza, que pouco tempo antes do 25 de Abril o vi surgir como Sub-Secretário do Exército (creio que era este o cargo).

Falando ainda do Cor Felgas, quase todas as noites, antes de se deitar, percorria as imediações do seu quarto, de spray em riste, não a matar gatos como o Cor que o antecedeu, mas a matar todos os grilos que cantavam estridentemente. Como eu agora o compreendo.

E a terminar, como era linda (se assim se pode dizer) e com aparência de totalmente virgem a k… aprisionada, creio que na operação “Lança Afiada”, que o Cor Felgas escolheu de entre o arsenal apreendido. Eu lá fiquei com uns panos, uns amuletos, vários livros da instrução primária IN e uma cartucheira que ainda uso na caça.

Um facto que me levou a apreciar o Gen Spínola foi logo no início ter emitido uma Ordem Geral em que proibia todas as recepções quando ele ou qualquer outro Dignatário se deslocasse a algum lugar.

Quanto à mudança operada no Gen Spínola na forma de encarar a guerra, a meu ver deu-se em meados de 1969. Por essa altura recebeu-se pelo canal das Informações uma publicação, proveniente dos EUA ou de um país da América Latina, já não recordo, em que se escalpelizava a guerra de guerrilha e se apontavam soluções para a vencer. Passados poucos dias começaram a vir do Comando Chefe, directivas em tudo semelhantes às preconizadas na tal publicação. A estratégia foi evoluindo até à ordem formal para parar todas as operações militares – 15/04/70. Sol de pouca dura, pois 4 ou 5 dias depois dá-se a morte dos 3 Majores, 1 Alferes e 2 Soldados.

É pena não dispor, como o Beja Santos, de um Queta Baldé para me recordar muita coisa. Se calhar até tenho, só que não sei onde está.

Voltarei com certeza a falar destes oficiais mas por agora termino deixando uma mensagem com atraso de 41 anos, ao camarada Beja Santos:

Se acaso és supersticioso devias ter tido desde o início cuidado com o Agrupamento, que marcava operações com intervalos de treze letras. “Mabecos Bravios”, “Lança Afiada.

FG



Em primeiro plano parte da Tabanca da Rocha e ao fundo os aquartelamentos do Agrupamento e do Esquadrão de Cavalaria

Vista da parte principal de Bafatá. No quarteirão, em primeiro plano situava-se a sede do Batalhão

O Cor. Felgas a receber os cumprimentos de despedida. Partiria no dia seguinte: 05/10/69

Em 04/10/69, nos cumprimentos de despedida das autoridades nativas ao Cor. Felgas

No Agrupamento depois dos cumprimentos de despedida.

Um grupo de homens grandes (ao centro o mais alto diria que é o Régulo do Cuor)

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados

__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Abril de 2009 >
Guiné 63/74 - P4163: Tabanca Grande (132): Fernando Gouveia, ex-Alf Mil de Rec e Inf (Bafatá, 1968/70)

(**) Vd. postes de:

17 de Julho de 2005 >
Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

2 de Agosto de 2005 >
Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

3 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

12 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

7 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

18 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

15 de Dezembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

21 de Dezembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

25 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

(***) Vd postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 -
CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 -
CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

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