sábado, 25 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P568: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

Guiné > Guileje > 1967 > Foto aérea do aquartelamento e tabanca. © José Neto (2005)
Publica-se a 10ª (e última) parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (1).

Recorde-se a justificação que ele deu para partilhar connosco as suas memórias de Guileje:
"Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte muito significativa das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família"...

Esta confiança, em mim e na nossa tertúlia, eu tenho que a agradecer ao camarada Zé Neto. Faço votos para que este fim seja apenas um até breve, até ao meu regresso... LG

O descanso em Buba
Ao fim de cerca de onze meses chegou a ordem para rodarmos para uma outra posição onde a nossas tropa pudesse recuperar do tremendo desgaste, reconhecido por vários relatórios médicos apresentados ao comando.

Fomos destinados a companhia de apoio ao comando do nosso Batalhão, em Buba.

A CAÇ 2316, do Capitão Vasconcelos, veio do Mejo ocupar o nosso aquartelamento por fases e do mesmo modo as minhas tropas iam a Gadamael embarcar para Buba.

Eu fui o último a abandonar Guileje, porque, mais uma vez, a entrega do património parecia um negócio de ciganos.

O 1º sargento da CCAÇ 2316, um tal José Jorge de seu nome completo, e um furriel do QP cujo nome esqueci, estavam apostados em fazer-me a vida negra.

Eram de Infantaria, mas parecia que tinham estudado pela cartilha do RAP 2 (1).

Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guileje com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guilege com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
O tal José Jorge tratava comigo de cima para baixo do alto das suas quatro divisas (eu só tinha três) e dum modo despeitado porque eu não lhe cedi o meu quarto fortificado, a que ele se achava com direito. Tinha alguma razão, mas eu argumentava que foram os meus homens que o reconstruíram e que não faltava espaço nem material para que os dele fizessem outro ao lado.
Nas suas gabarolices não se cansava de proclamar que em breve ia para o curso de oficiais, pois, tal como eu, tinha feito as provas de admissão “escalonamento” e já sabia, por contactos confidenciais com altas fontes, que era o número seis da lista.
O que eu me ri quando, mais tarde, foi publicada a classificação e vi que os seus altos informadores se esqueceram de lhe dizer que a seguir ao primeiro seis ainda havia mais dois algarismos iguais, ou seja, era o número 666 da lista.
Pelo meu lado, a classificação, não sendo brilhante, era animadora. Fiquei no 285º lugar… entre 1048 aprovados, o que dava para prever que daí a três ou quatro anos iria ao Curso de Oficiais.

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968 > Um DO (Dornier) na pista de aviação. © José Neto (2005)

Em fins de Maio, num breve salto de avião, fui juntar-me à minha companhia em Buba.
Para sossego das minhas preocupações, ao chegar, tive a grata notícia de que o Celestino estava em Aldeia Formosa a comandar uma operação. Comandar…

Foi então que o grande comandante que saltava a pé juntos para cima duma mesa (2) se revelou.

Guiné > Guileje > 1968 >Espigueiros do milho na tabanca. © José Neto (2005)

Numa altura em que o quartel de Aldeia Formosa se encontrava com o mínimo de pessoal, apenas para manter a segurança, entrou por ali dentro um nativo a gritar que os turras estavam a atacar o povo de Xitole.

O alferes da CART 1612. ali aquartelada, desconfiou da tramóia, já que não se tinha ouvido fogo para aqueles lados, mas o Celestino tomou conta do caso e ordenou-lhe que arrebanhasse de entre os mecânicos, rádio-telefonistas, cozinheiros, milícias e tudo que encontrasse para ir em socorro do aldeamento.

Montados em dois Unimog lá seguiram e… poucos quilómetros andaram.

Os turras tinham preparado uma forte emboscada e quase dizimaram os desgraçados. Mataram quatro soldados, capturaram (apanhados à mão) um 1º cabo mecânico e sete soldados, destruíram o Unimog da frente e apanharam quase todo o armamento. Por sorte a segunda viatura tinha ficado a meio caminho avariada.

Dos prisioneiros, o mecânico e o condutor auto nem eram daquela guerra pois pertenciam à CCS e estavam em Aldeia Formosa em apoio de serviços e não propriamente de combate. Quando a notícia chegou a Bissau, o General Spínola meteu-se no helicóptero e foi ouvir, com os seus ouvidos, o relato dos poucos sobreviventes.

Foi o bastante para punir o tenente-coronel com dez dias de prisão disciplinar e ordenar-lhe que seguisse com ele para Bissau e dali para a Metrópole.

Todo o Batalhão rejubilou com a notícia, mas… poucos, muito poucos, tiveram a coragem de enfrentar a besta enquanto reinou.

Eu mentia se dissesse que não senti uma satisfação cá muito íntima, porém, ao mesmo tempo, tive pena do senhor porque afinal ele e mais três da mesma patente que o General do monóculo despachou para a Metrópole duma assentada, não passavam de peças anquilosadas duma engrenagem que mandava para o combate desigual que é a guerrilha estes marqueses de parada e gabinete.

O Major Carvalho Pereira, 2º Comandante, assumiu o comando do Batalhão até ao fim da comissão.

A minha companhia estava agora no descanso em Buba, com dois Gr Combate destacados, um Nhala e outro em Cumbijã (onde já estivera no ano anterior).

E aqui termino o extracto de dezoito páginas em letra mais miudinha, das memórias que escrevi em jeito de contar aos meus netos as vicissitudes por que passou o avô.

FIM (*)
_________

Notas do autor

(1) A referência à Cartilha do RAP 2, nossa unidade mobilizadora, vem do facto de que nos entregaram uma arrecadação de material completa, muito bem arrumada, mas com muitos artigos em mau estado disfarçados. Ao receberem o mesmo material de volta, no fim da recruta, os artigos foram passados a pente fino e anotadas deficiências que tinham de ser pagas pelo pessoal. E o negócio continuava com a companhia seguinte, tal como já sucedera com a anterior.

(2) Incrivelmente aquela bola de carne tinha a habilidade de, a pés juntos e sem balanço, saltar do chão para o tampo duma mesa normal. Os alferes, quando queriam divertimento, apostavam uma rodada de whisky em como ele, comandante, nesse dia ia falhar. Nunca falhou nem se deu conta da figura de palhaço que fizera…

(*) Vd posts anteriores:

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo
" (...) Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. A certa altura veio um grito da frente da coluna:-Mina!" (...)

14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

"O ano de 1968 entrou com uma novidade. O esforço sobre o corredor de Guilege diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guilege. Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guilege com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau" (...).

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro

"Com pouco mais de metro e meio de altura, franzino, quase imberbe, era um poço de força, energia e boa disposição que a todos espantava.Geralmente, quando o pessoal regressava das duras caminhadas pelas matas e bolanhas vinha estafado e atirava-se para cima do catre para descansar. Essa não era a prática do Francesinho. Tomava um duche, ficava como novo e, com a sua concertina algo desafinada, espalhava alegria por toda a tabanca e arredores" (...).

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (6): dos Lordes e das bestas

" (...) Ganhou alguma notoriedade o diálogo entre o Celestino (1) e o Capitão Cadete. Numa operação em que as nossas tropas pretendiam desmantelar a fortificação que os turras tinham implantado em Salancaúr, o Celestino comandava comodamente instalado num avião Dornier. A companhia do Capitão Cadete estava, a pouco mais de duzentos metros do objectivo, a ser fustigada por fogo de canhão sem recuo do IN e o Celestino berrava pela rádio: -Avance! Organize o assalto pelo flanco esquerdo!!!

"O Capitão, homem experiente, sabia que era de todo impossível dar mais um passo em direcção ao objectivo, estrategicamente defendido pelos lodaçais e, perante a insistência, gritou pelo microfone: -Venha cá abaixo e enterre o seu focinho na bolanha, seu..." (...)

3 de Fevereiro de 2006> Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (5): ecumenismo e festa do fanado
"Uma das boas características do meu pessoal era a de que não gostavam de estar parados nos intervalos das operações. Cada um, nas suas profissões ou aptidões, ia bulindo e foi assim que se reconstruíram e melhoraram abrigos, se implantou uma horta que aproveitava a água, depois de decantada, dos chuveiros das praças e se construiu a obra mais emblemática que deixámos em Guileje: a Capela" (...)

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (4): os azares dos sargentos

"O abrigo subterrâneo que nós, os sargentos, mais utilizávamos situava-se a meia dúzia de passos do coberto da messe, dado que parecia que os turras esperavam que acabássemos de jantar para abrir fogo. O acesso ao amplo salão enterrado era feito através dum pequeno poço para onde saltavam os que não tinham posto de combate definido e dali para o dito salão. A abertura era estreita e, se havia muita afluência, tornava-se necessário esperar vez para entrar, o que não deixava de provocar alguma confusão. Foi numa dessas confusões que levei com um furriel em cima do meu pé esquerdo. Andei mais de um mês com a perna engessada" (...).

21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas

" (...) Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa. Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas" (...).

13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha

"Nos primeiros dias de Julho de 1967 recebemos ordem para marchar para Guileje, a fim de rendermos a CCAÇ 1477. Nas conversas do Café Bento, em Bissau, apelidado de 5ª repartição por ser ali que se sabiam todos os acontecimentos ocorridos na Província, o nome de Guileje era citado frequentemente como uma região onde havia porrada da grossa. As contingências da sorte ditaram que a CART 1613 fosse verificar in loco a veracidade das informações veiculadas na dita repartição" (...).

10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

"Nas páginas que deixo para trás, respeitantes à Guiné, descrevo a maneira atribulada, para não dizer trapalhona, como o meu Batalhão, e por arrasto a minha Companhia, CART 1613, foi parar àquela Província Ultramarina e os remendos que se seguiram" (...)

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