Guiné > Bissau > Praça do Império > Monumento ao “Ao Esforço da Raça” > O Mário Dias sentado do "local do crime", o local da improvisada serenata a Sua Excelência...
© Mário Dias (2006)
Continuação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66) (1)
A Serenata
Nos idos dos anos 50, Bissau, cidade pacata e ordeira, onde muito se trabalhava e muito nos divertíamos, era palco de cenas impensáveis de acontecerem noutro qualquer lugar. O progresso demorava a chegar. Não havia uma só rua alcatroada, uma só gota de alcatrão que fosse. A ponte-cais, que serviria para atracação dos barcos, estava ainda em construção. Os navios que quinzenalmente chegavam (nesse dia era dia de S. Vapor, como dizíamos) fundeavam ao largo, frente ao ilhéu do Rei e os passageiros e carga eram transportados para o Pijiguiti em pequenas embarcações a motor e até a remos. E o cais do Pijiguiti dessa época ainda não tinha ainda a actual cabeça que forma o “T”. Era um simples paredão. Electricidade? Luxo só possível das seis da tarde à meia-noite.
Apesar disso, sentíamo-nos lá como no paraíso. Diariamente nos juntávamos para os nossos passeios pela cidade e arredores, de bicicleta ou a pé, bebíamos umas cervejas nas esplanadas, especialmente na pastelaria Império, na praça do mesmo nome (o proprietário era o senhor Estácio, tio do nosso amigo António Estácio que já interveio no blogue) no Hotel Portugal, mais conhecido por hotel do Espada (nome do proprietário) ou ainda na esplanada existente ao fundo da avenida principal na placa central que então existia. A configuração desta avenida era bem diferente daquela que os nossos amigos desta tertúlia conheceram mais tarde. A seu tempo falarei sobre isso.
Um dos nossos pontos de encontro favoritos era na marginal, junto às ruínas de uma ponte de atracação de barcos da qual só existiam alguns pilares no meio do rio, já meio enterrados no lodo, e o encontro de onde a ponte partia. Disseram-me ter sido um navio alemão que se pôs em movimento desatracando sem que os cabos estivessem completamente soltos, que levou pedaços dessa ponte atrás de si arruinando-a. Foi antes de eu ter chegado à Guiné que assim se viu privada de uma infraestrutura indispensável. O local a que me estou a referir é onde hoje fica um pequeno largo em formato de meia-laranja existente na marginal de Bissau. Se consultarem o mapa disponível no blogue facilmente o encontrarão.
Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)
© A. Marques Lopes (2005)
Uma noite de sábado, depois do jantar, reunimo-nos nesse local como era nosso hábito, e, por não se trabalhar no dia seguinte, prolongámos um pouco mais a paródia. Anedotas, aventuras que cada um ia narrando, até que às tantas, alguns (entre os quais eu) puxaram das gaitas-de-beiços e vá de tocar com todas as nossas ganas. A noite estava convidativa, o calor não era muito e o luar ajudava. As pessoas que passavam iam parando para nos ouvir e aplaudir. Alguém sugeriu que podíamos ir pela avenida acima até à praça do Império. De acordo. Lá fomos nós sempre a tocar, a cantar e a rir. O mundo era nosso.
Chegados à praça do Império, já a meia-noite estava próxima, instalámo-nos naquele arremedo de degraus existentes no monumento “Ao Esforço da Raça” que ainda lá se encontra embora com outra designação e dedicatória.
Faço um pequeno parêntese para contar um dito jocoso que então corria sobre esse monumento, dito esse da autoria de um tio meu que uns anos antes da minha ida tinha sido escrivão no tribunal de Bissau. No monumento em causa encontra-se um busto de mulher, e que farto busto, empunhando nos braços erguidos uma coroa de louros. Qual o significado? Aquilo queria dizer que a Guiné deu e continuava a dar de mamar a muita gente. Voltemos à nossa história.
Encarrapitados no monumento, virados para o palácio do governador que ainda estava em construção, embora quase pronto, (Já agora: o palácio inicialmente não era assim pois tinha terraço em vez de telhado mas, não sei qual o motivo, um engenheiro acabou por alterar a planta) prosseguimos a serenata.
O governador (Raimundo Serrão)(2) residia numa grande vivenda existente ao lado direito não muito longe, portanto, do nosso improvisado palco. Toca, canta, canta e toca, viva a alegria, vimos que de nós se aproximava um polícia, um segurança, como eram mais conhecidos. Chegado disse mais ou menos isto:
- O senhor governador manda dizer para não fazerem tanto barulho porque já é tarde e quer dormir.- Perdemos o pio e pedimos desculpas. Mas, como ainda era cedo, meia-noite de sábado para malta nova é dia, por lá ficámos embora sossegados. Foi então que alguém se lembrou, era quase uma hora:
-Eh pá, o governador já deve estar a dormir; vamos lá tocar e cantar mais um pouco. -Dito e feito, embora com menos decibéis que anteriormente. Estávamos nisto quando vimos um vulto, de roupão, saindo do quintal da vivenda com toda a calma vir em nossa direcção. A serenata continuou até que reparamos no vulto que já estava próximo. Era o governador. Ficámos gelados, paralisados. Vai-nos mandar prender, pensava eu. Qual quê?
- Boa noite, rapazes! - cumprimentou. Levantámo-nos, aterrorizados e respeitosos e retorquimos:
- Boa noite, senhor governador.
- Como não me deixam dormir, venho para aqui, sempre ouço melhor. Vá lá continuem a tocar.
E tocámos com todo o esmero de que éramos capazes. Uma música, outra e mais outra todos ufanos pois de cada vez o governador aplaudia. Até que após a execução do quarto número, que, ainda me lembro, foi a valsa do imperador, ele nos disse:
- Bom, rapazes, gostei muito de vos ouvir, mas já é tarde. Vão-se deitar porque a cacimba faz mal.
E foi assim que fizemos uma serenata ao Governador da Guiné.
_________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite
(2) Raimundo António Rodrigues Serrão foi Governador da Guiné entre 1951 e 1953
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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