domingo, 17 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1853: Estórias do Zé Teixeira (18): Quando não se acautela a vida, a morte pode espreitar (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Mais uma estória do Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (1968/70) - Os Maiorais

Caros amigos
Do sótão da minha memória vão continuando a sair umas estórias que serão o complemento do meu diário. A fidelidade textual não será a mesma, mas continuam a ser estórias verdadeiras que eu vivi e não saiem do sotão, por mais que queira (1).

Abraço fraternal com votos de bom fim de semana.
J. Teixeira
Esquilo Sorridente



QUANDO NÃO SE ACAUTELA A VIDA, A MORTE PODE ESPREITAR

por José Teixeira

Nos princípios de Março de 1969, os trabalhos da construção da estrada de Buba para Aldeia Formosa, iam decorrendo sem grandes problemas, aparte uma emboscada de vez em quando ou umas minas A/C e A/P detectadas em tempo útil.

Todos os dias, homens e máquinas, deslocavam-se de Buba, até ao local onde tinham ficado no dia anterior e o trabalho continuava. Partia-se de manhã cedo, faziam-se 8 a 10 Km para lá e ao fim do dia, novamente a marcha de regresso, sempre no fio das navalha. O IN ousou estudar bem o terreno por onde ia passar a estrada e colocar uma potente A/C no interior da mata, de modo a fazer ir ao ar o caterpillar de 14 toneladas, quando este se preparava para investir sobre uma árvore gigante para a derrubar, o que aparte o ferimentos ligeiros que provocou no operador e um susto ao alferes que, sentado no lugar do morto em amena cavaqueira procurava queimar o tempo, deu-nos uns dias férias, o que não foi nada mau.

Este vai-vem diário tornou-se extremamente cansativo e esgotante, tendo deixado a minha companhia reduzida a 36 operacionais activos. A CCaç 2317, oriunda de Gandembel (do Idálio Reis) , bem como a CCAÇ 2382 iam pelo mesmo caminho.


Ementas imaginárias

Julgo de interesse lembrar que também estavam estacionadas em Buba a 15º de Comandos e uma de Fuzileiros. Era um fartote de combatentes, o que provocava a apetência do IN para nos ir visitar. Era de dia no mato, era à noite, de madrugada ou manhã cedo no aquartelamento.

A juntar a este cenário, o barco que nos ia levar mantimentos foi metido ao fundo, ficando esta gente, uma temporada, a comer arroz com amostras de chispe ao almoço e amostras de chispe com arroz ao jantar.

Fomos visitados pelo Olho de Vidro e Pingalim que nos fez um discurso à sua maneira, tendo em determinada altura afirmado, mais ou menos isto:

Sei quanto está a ser difícil aguentar esta vida, mas é a Pátria que o está a exigir. Quando vos derem grão cozido, fechai os olhos e imaginai-vos em Lisboa a deliciar-vos com o belo peru recheado , ou uma lagosta suada (fiquei a saber que as lagostas também suam). Assim será mais fácil para vós, comer o grão. Precisais de comer para aguentar e sobreviver. Bla bla, bla….

O resultado da sua visita, foi transferir o centro de operações da estrada para um acampamento de lona em Samba Sabali, antiga tabanca abandonada, perto de Nhala, (onde hoje existe uma simpática povoação) onde havia um poço de água choca e lamacenta que nos permitiria refrescar o corpo.

Arroteada a terra, construída a paliçada com muros de terra e sacos cheios de terra, eis um moderno quartel, arejado, com cozinha, bar, e enfermaria ao ar livre, camas excelentes para combater os bicos de papagaio, pois a terra do chão estava macia, e, uma redondeza bem preparada para um cerco fácil a um pequeno espaço, sem luz eléctrica e com um grau de densidade populacional elevadíssimo.


Ataque a Samba Sabali

Três Gr Comb em quatro tendas tipo hospital de campanha, em redor, com um pequeno pátio no meio. Dois grupos de combate saíam para estrada e um ficava no acampamento, no dia seguinte, um ficava no acampamento e . . . dois seguiam para a estrada e ainda tínhamos a noite sem luz para o que desse e viesse.



Guiné > região de Quínara (Buba) > 1969 > Estrada (em construção) de Buba para Aldeia Formosa > Acampamento temporário de Samba Sabali (a noroeste de Uané)

Felizmente, quinze dias depois, apareceu uma Companhia de Piras e, como não cabíamos todos, abalámos para Buba, cansados, sujinhos até à medula, a roupa já não tinha cor, tanta era a terra encardida.

Apenas conheci de nome uma pessoa, o Banha, Cabo enfermeiro a quem passei o equipamento de enfermagem que havia. Foi para mim o adeus à estrada, pois uns dias depois regressei a Empada e só lá voltei em 2005 para matar saudades. ´

Uns dias depois, segunda feira de madrugada, lá parti para uma das últimas patrulhas, com montagem de emboscada e regresso ao fim da tarde.

Ao anoitecer e quando nos preparávamos para o regresso, rebenta um tremendo fogachal em Samba Sabali, eram as boas vindas aos periquitos, logo num quartel de lona sem condições mínimas de defesa e segurança. Pelo rádio ouvíamos as notícias e ainda houve tempo de recorrer à F.A. para calar o IN, caso contrário...

Um morto, três feridos graves e cinco menos graves, creio eu, foi o resultado da refrega.

A distância a que estávamos era relativamente longa do local do ataque, no entanto face à impossibilidade de o Helicóptero poder aterrar, por ser noite e por não haver local próprio, foi necessário fazer seguir uma coluna de socorro a partir de Buba. Como estávamos no terreno, recebemos ordem para seguir para a bolanha dos Passarinhos, ou seja a Lagoa de Cufada, sítio, historicamente de passagem não recomendada, sem as mais elementares cautelas, por ser um espaço muito conhecido pelas minas e emboscadas que o IN aí montava, proveniente de Sare Tuto, ali mesmo ao lado, aquando das colunas de e para Nhala e Aldeia Formosa ( Quebo).
Como era preciso proteger a coluna que partira de Buba, abalámos. 


Guiné-Bissau > Ilustração do livro Conhecer para amar, amar para proteger: Rio Grande de Buba e Lagoa de Cufada. Bissau: Tiniguena. 1995. Imagem gentilmente cedida por José Teixeira (2006).

Noite escura, de peito aberto, em passo de corrida acelarado, estômago vazio e garganta seca (tínhamos saído de madrugada com ração de combate para o almoço e prevíamos chegar a tempo de jantar), lá fomos nós estrada fora, até ao local que nos fora destinado. Já próximo embrenhmo-nos na mata e estacionámos precisamente no local, onde era hábito termos uma espera desagradável.

A coluna passou e regressou. Ainda ouvimos ruídos à nossa retaguarda e um tiro isolado, sem consequências. Apanhámos as últimas viaturas e regressámos a Buba. Eu segui para a enfermaria para continuar a minha missão em apoio dos meus colegas enfermeiros, e encontrei... o Banha. Estava morto, com um tiro de costureirinha na testa...

Zé Teixeira
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Notas de C.V.:

(1) Vd. último post desta série > 9 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1826: Estórias do Zé Teixeira (16): Eh fermero di caradjo, pára lá, a mim amigo di bó, amigo memo!

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

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