sexta-feira, 3 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio

1. Mensagem de Torcato Mendonça (*), ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 1 de Julho de 2009:
Camaradas,
Estava no Café e comecei a rascunhar.
Não é uma homenagem. Prefiro uma saudade, um voto que, quarenta anos passados, ainda por cá andem bem ou, se já partiram, estejam num Olimpo qualquer, em "terra de leite e mel" as "Virgens" de outrora, quais esculturas em ébano talhadas pelos Deuses. A Helena, Solemato, Ana Maria e não sei quem mais...
Reli e acabei por rir. De facto há aqui um problema... agora... já voltei a rir e a sanidade mental???
BAFATÁ; Amor e ódio
Era uma vez um homem jovem, tão jovem que, quando lhe perguntavam a profissão dizia: estudante.
Calmo, sorridente, bon vivant, o homem jovem percorria a vida de bem com ele e com os outros.
Um dia os velhos, gentes que não gostavam de jovens, disseram-lhe: - precisamos de ti. A partir de agora vamos tomar conta de ti e serás um tu, um ser com um número. Juntamos-te a outros seres a outros tu’s.
Fizeram-no. A princípio estranhou, protestou em surdina cada vez mais fraca, mais fraca e, de repente ou lentamente, começou a ser o tu, o número metamorfoseado e já diferente. Corria, saltava, fazia correr e saltar, brincava ás guerras com armas verdadeiras, dizia disparates como sendo verdades mais fortes do que leis, vestia como os outros, igual aos outros, vestuário esverdeado. Bonito o tom. Esverdeado.
Um dia pagaram-lhe uma viagem, só de ida e lá foi mar fora. Seguia o rumo outrora traçado pelas caravelas do seu País.
Parou e desembarcou numa terra diferente, terra quente, húmida, avermelhada, com densas matas e rios que eram tejos.
O tempo passou lentamente.
Ah esqueci-me. Era militar. Todos os que o acompanhavam o eram. Eram muitos mais de cento e cinquenta. O grupo dele tinha cerca de trinta, por vezes mais e outras menos.
E que faziam?
Defendiam a pátria. Defendiam um país do Minho a Timor. Só que eles ficaram logo na Guiné. Poupança no cruzeiro. Os velhos, mais um que os outros, eram poupadinhos.
Habituaram-se àquela vida. Eram unidos e defendiam-se em bloco como se fossem um. Porquê? Porque só assim podiam sobreviver.
Viviam, preferencialmente, nas matas em tabancas aqui e acolá. Tinham um aquartelamento meio enterrado, meio tudo e quase nada. O inimigo visitava-os a tiro de armas ligeiras e pesadas. Eles iam á procura deles e zás, catrapás, partiam-lhes as casotas de mato.
De quando em vez iam á cidade.
Primeiro passavam por uma aldeola onde estava o Batalhão. Assim habituavam-se ás casas e aos objectos que outrora usavam.
Quais? Tantos. Dos mais simples até aos mais complicados. Até ás portas. Sim na sede do Batalhão haviam portas. Quando, ao serem fechadas, batiam mais forte, pareciam saídas de armas pesadas… e lá vem ataque… salta macaquinho. Os residentes riam-se e diziam: é a porta… a partir de um mês de Maio começaram a saltar ou a estremecer… é a porta!
Nesse dia ou no outro, já mais adaptados iam até á cidade. A cidade era Bafatá. Tinha luz dia e noite, casas, ruas e gentes ou vestidas como eles ou com melhor roupagem sempre esverdeada. Outros vestiam roupagens garridas e bonitas de vida civil. Mas todos, toda essa gente, ria. Tinham piscina, sim piscina, casa bonitas, restaurantes, lojas de libaneses onde de tudo se vendia, cinema. Sim sala de cinema. Encostada á cidade haviam casas de putas, esculturas de ébano á disposição. Havia tanto.
Eles queriam num dia e numa noite viver tudo, ter tudo. Bebiam, comiam, iam ás putas (gente boa), á piscina para terror de quem lá estava, ao mercado e ás lojas, ao cinema. Tudo num dia e numa noite.
Olhavam os outros iguais a eles, vestidos como eles ou á civil e gostavam de os ver rir. É bom rir. Tentavam rir mas ficavam com a cara dorida.
Tinham pena dos bafatenses se um dia fossem para o mato. Como seria?
Que interessa isso? Será que eles sentiriam por aquela gente um misto de amor e ódio? Ou inveja? Nada disso. Cada um na sua e eles já não sabiam viver de outra maneira. Nem uns nem outros.
No dia seguinte, por vezes logo no final do primeiro, voltavam.
Vestiam e apertavam roupas, cinturões e cartucheiras, granadas e armas, afivelavam a máscara do ódio, do sempre pronto para tudo e partiam. Nunca olhavam para trás. A estrada asfaltada já era igual á picada de mil perigos.
Voltavam a ser números. Será que os homens da cidade, vestidos como eles eram também números? Certamente que sim, números felizes e que sabiam rir. Vidas. Tantas vidas, numa só vida.
Adeus Bafatá até á próxima…
Torcato Mendonça
Alf Mil da CART 2339
_____________
Notas de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
1 de Julho de 2009 > 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969

7 comentários:

Anónimo disse...

Sr. Torcato, são textos como este, que diariamente me fazem abrir o blogue. Muito obrigado e frequente o seu café com mais assiduidade. Demore-se por lá.

João Miguel Almeida
41 anos

Anónimo disse...

Camarada Torcato Mendonça
Desde que aderi ao Blogue, só por impedimento tecnológico ou seja encontrar-me longe desta ferramenta, não o visito. Leio tudo e já andei para trás mas não conseguia chegar ao fim.
As tuas "estórias" não me escapam e admiro a forma especial como as transmites. Mas esta então surpreendeu-me muito mais. Acho-a mais fabulosa ainda.
Abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Torcato Mendonça

O pincel com que escreveste a estória,coloriu bastante bem os encontros e desencontros dos Zés Tropa com uma vida quase normal ,a que so´tinham acesso de quando em vez e em terras de um outro mundo.

Um abraço
Luis Faria

história e arte disse...

Viva!!

gosto tanto de ler os seus textos, que é para mim um prazer quando abro o vosso blog e vejo escritos seus

tantas vidas que eu aprendo a entender aqui

continuação de excelente trabalho

cumprimentos

emilia nogueiro

Anónimo disse...

CARO TORCATO MENDONÇA,


A DESCRIÇÃO DO HOMEM NÚMERO,NO AMANSAR DOS PROTESTOS COM O AVANÇAR DO TEMPO,E A SUA ENTRADA COMO PEÇA DO SISTEMA ESTÁ ESTRAORDINARIAMENTE PERFEITA,
AQUILO A QUE CHAMARIA UM RETRATO FIDEDIGNO.

A ENTRADA NA ENGRENAGEM, A RELAÇÃO COM O MEIO, A VIVÊNCIA NA "CIDADE"
E SEU QUOTIDIANO,REFLECTEM A CAPACIDADE DE OBSERVAÇÃO QUE SÓ UM DETENTOR DE QUALIDADES INTRÍNSECAS
A QUEM SABE ESCREVER BEM PODE MANIPULAR.

OS MEUS SINCEROS PARABÉNS.

MANUEL MAIA

MANUEL MAIA disse...

A DIFICULDADE DE VISÃO ALIADA À VONTADE DE ESCREVER RÁPIDO TEM DESTAS COISAS...

CLARO QUE DEVERIA APARECER EXTRAORDINARIAMENTE E NÃO ESTRAORDINARIAMENTE

Anónimo disse...

Caro Torcato,

Agora já não digo que és da área da Filosofia.

Magnífica descrição da forma de vida possível ou passada num determinado período das nossas vidas e com a linguagem própria da situação vivida.

Continua a escrever como bem sabes fazer.

Um abraço
BSardinha