quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4619: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (16): Dias em Binar - 1

1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 28 de Junho de 2009:

Amigo Vinhal
Mais um pouco de Viagem...

Um abraço
Luís Faria


Dias em Binar - 1

Como já havia descrito, Binar era uma pequena povoação situada a uma dúzia de quilómetros de Bula, na estrada para Bissorã. Por lá estive com o meu 2.º GComb cerca de um mês e meio, praticamente sem actividade operacional efectiva, para além de uns patrulhamentos, uns apoios a operações, de umas colunas a Bula para reabastecimentos e dos serviços ao aquartelamento.

Por norma os dias custavam a passar. Para além das moranças, e duma venda/padaria que me recorde, nada mais havia de comércio. Minto, havia uma espécie de bordel temporário dentro das paredes de uma morança em ruínas e a céu aberto, onde as madmoiselles eram uma avó de idade avançada e peitos secos e uma neta bajuda, sendo os preços diferenciados consoante a idade da prestadora de serviços e o utente fosse graduado ou soldado.

Aparentemente mais entretido andava o pessoal do 1.º GComb, lá pelo reordenamento de Pache. Volta e meia apareciam nos seus Mercedes - quais patos bravos - para tratar de assuntos inerentes, altura em que à mistura com umas bazucas era posta em dia toda a conversa da treta. O Alf Mil Freitas Pereira (pira) e o Fur Mil Castro tinham jeito para aquele trabalho e pelos vistos aplicavam bem o programa psico (a psícola, como se dizia !!). Exemplo disso foi o Fur Mil Castro ter apadrinhado um miúdo que nasceu e ficou com o nome FURRIÉL CASTRO. Por brincadeira às vezes digo-lhe – ao Castro - que deixou por aquelas paragens o seu nome !!! Não gostará lá muito, dadas a possibilidade de interpretações enviesadas, mas as verdades são para ser ditas!!


O Parto

Por falar em nascer, um belo dia chamam-me a uma morança por eventualmente estar a haver problemas. Chegado lá deparo-me com um ajuntamento em falatório ininteligível, com gemidos e choro à mistura. Informam-me que está a haver problema num parto. Entro e deparo-me com uma cena difícil de acreditar… só vista!!

Uma bajuda grávida deitada, gemia e chorava. Uma mulher idosa batia-lhe com certa força na barriga, com a lateral de uma catana. Uma outra, mais nova, em pé sobre o abdómen da bajuda, fazia pressão com jeito, sobre a parte superior do abdómen, conjugando esforços na tentativa de provocarem a expulsão, sem no entanto o conseguirem.
De imediato foi pedida uma evacuação urgente para Bissau.


O petisco

A adaptação a Binar foi-se fazendo aos poucos e sendo a população simpática e hospitaleira, de certa maneira ajudou.

Um dia andava pela tabanca e convidaram-me para petiscar. Inicialmente indeciso (não era muito apreciador daquela cuisine), quando me disseram e mostraram o conduto, resolvi aceitar para não ofender e pela nova experiência. Talvez mais pela última razão!

Sento-me com eles no chão a ver preparar o pitéu: cobra (não sei de que marca ?!), com a grossura de um pulso e um bom metro de comprido. A morta é enrolada em folhas grandes e vai à fogueira para assar/cozer. Já não recordo se foi esfolada antes ou depois, mas tenho ideia de no pedaço que provei, ir descascando a dita conforme ia comendo. Não desgostei do petisco mas também não fiquei cliente. Pareceu-me enguia grossa, só que com a carne branca, mais seca e mais agarrada à espinha.


O cão tenor

O dia a dia começava com a formatura do Pessoal para o içar da Bandeira, ao toque do cornetim. À formatura não faltava por sistema, um cachorro viralata que se sentava ao lado do Corneteiro. Quando o som começava a sair do instrumento, o cão uivava em contra-canto, calando-se conforme a corneta parava.

Como era afinado e até se comportava com respeito e tinha porte, era-lhe permitida essa manifestação artística e castrense, assim como o cirandar pelas instalações, sempre pronto a abocanhar qualquer naco que se lhe atirasse, sem que nunca ninguém lhe ouvisse a mais pequena reclamação. Já o mesmo não acontecia com o Pessoal !!


Sandes de pão com bianda e alternativa

Salvo excepções e sem justificação plausível, o abastecimento de viveres era mau, mas a variedade de comida era grande (!!): bianda com estilhaços de fiambre versus bianda com idênticos de atum versus com salsicha, alternando às refeições. A vinhaça era mais propriamente uma aguadilha tingida. Claro que de vez em volta se petiscavam uns nheques (?) ou uns ovos arranjados particularmente na tabanca.

Pela minha parte não tive problema de maior. Sempre e ainda hoje gosto bastante de arroz, desde que não seja muito cozido ou empapado e o cozinheiro fazia-o a meu gosto. Daí que quando o estômago rosnava e nada diferente havia para comer, deliciava-me com uma bela sande de arroz eventualmente sobrado, o que horrorizava os olheiros (!!) mas que me cortava o enjoo do sempre o mesmo!

Por vezes e em alternativa, quando a fome era negra, fazia sandes de pão com pão isto é, pão militar aberto com um papo-seco civil metido no meio. A conjugação dos dois sabores era espectacular!?! À falta de melhor, claro está !!!

Binar foi na realidade a pior estância, em termos de restauração, em que estivemos, mas a realidade é que na Guiné nunca fui obrigado a comer bichezas esquisitas ou a beber água das poças ou da bolanha, para matar a fome ou sede, como aconteceu ao que parece com muitos Camaradas. Nesse aspecto, como noutros, fui um felizardo! Larvas isso comi, em Capó mas… é outra Estória.

Um abraço a todos
Luís Faria
__________

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4522: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (15): Binar - Sanatório do sono

5 comentários:

MANUEL MAIA disse...

CARO LUIS FARIA,

AFINAL EMBORA EM ANOS DIFERENTES ÉS UM GUINÉU MAIS VELHO QUE EU(FIZ 72/74) VIVEMOS EM LOCALIDADES PRÓXIMAS.
QUANDO CHEGOU,O MEU BATALHÃO DESTINOU-SE A BISSORÃ SÓ QUE UMA DAS COMPANHIAS,A MINHA,(2ª) TEVE COMO COLOCAÇÃO BISSUM/NAGA QUE SE SITUAVA ENTRE BULA E BISSORÃ MAS MAIS PERTO DA PRIMEIRA,FICANDO ASSIM ADSTRITA AO BATALHÃO DE BULA.
AS OUTRAS DUAS,ENCHEIA E BIAMBE,MANTIVERAM-SE CREIO,LIGADAS
POR CORDÃO UMBILICAL A BISSORÃ.

POSSO DIZER QUE FOMOS BENEFICIADOS POIS LIBERTÁMO-NOS DO COMANDANTE DE
BATALHÃO,AQUILO QUE EM LINGUAGEM
MILITAR SE PODERIA CHAMAR DE BÁSICO.

BULA TAMBÉM NÃO ERA PRÓPRIAMENTE ALI À MÃO PELO QUE NOS SENTÍAMOS LIVES A NÍVEL DE DEPENDÊNCIAS...

ORA COMO PELO QUE DIZES BINAR SE SITUAVA ENTRE AQUELAS DUAS "GRANDES METRÓPOLES", ESTARIA CONCERTEZA PRÓXIMA DE BISSUM/NAGA...

SE O NOME DAS LOCALIDADES FOI DECIDIDO POR VIA DO ABECEDÁRIO; BULA,BISSORÃ,BINTA,BINAR,BISSUM,BAMBADINCA,BEDANDA,O B FOI LOGO DOS PRIMEIROS PORTANTO ERA TERRA ANTIGA,COM MANGA DE RONCO,LOGO IMPORTANTE...

DEPOIS DESTA ASSERÇÃO UM TANTO OU QUANTO"FILOSÓFICA", VEJAMOS SE EM BISSUM HAVIA ALGUMA SEMELHANÇA COM A TUA BINAR...

BINAR TINHA UMA LOJA/PADARIA...
BISSUM NÃO TINHA LOJAS...

BINAR TINHA UMA CASA DE MENINAS...
EM BISSUM A COISA ACONTECIA DE FORMA FORTUITA SEM SISTEMA MONTADO...

PETISCO DE COBRA
FELIZMENTE NÃO TRAVAMOS CONHECIMENTO COM ESSE TIPO DE "IGUARIA"...

OCÃO A LATIR COMO UM TENOR...

NÓS,EU E O MOURA TIVEMOS UM CÃO A MEIAS, A CADELA SÓ TEVE TRÊS FICANDO UM PARA O DIAS OUTRO PARA O BRITO E O COMANDANTE A MEIAS PARA NÓS OS DOIS...

QUANTO ÀS SANDES DE PÃO COM BIANDA,DEVO DIZER-TE QUE ÉRAMOS MAIS IMAGINATIVOS.
TINHAMOS EPARGUETE COM FIAMBRE FRITO(FATIA GROSSA) E PEIXE DA BOLANHA CONHECIDO PELO PEIXE CARVALHO SEM V QE MAL O FRITÁVAMOS SE DESFAZIA NO GARFO,E ERA SERVIDO COM A VULGARIS BIANDA...

BISSUM NÃO ERA BU...RA...KO ERA UMA ESTÂNCIA COMPARADA COM O CANTANHEZ...

UM ABRAÇO DO
MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Caro Luís Faria
Bonitas Histórias essas de BINAR, onde pelos vistos passaram manga de fome, talvez por estarem em "cura de repouso", já que referes teres tido pouca actividade operacional.
Não compreendo bem essas duas situações. Esse aquartelamento era parto de BULA, mas pelos vistos não vos abasteciam o sufeciente...e quanto a "festa", como foi tão sossegado? A base IN de BIAMBE devia ser por ali perto, ou não?
Aproveito para dizer ao nosso "Camoneano" MMaia que os camaradas dele que ficaram no BIAMBE (mas não do IN), teoricamente estavam mais perto de BINAR do que ele, pois esse quartel ficava no itinerário BINAR-BISSORÃ, mais perto daquele do que deste. Salvo erro, BISSUM/NAGA ficava mais próximo de PONTA S. VICENTE lá para as bolanhas do CACHEU e enquanto BIAMBE e ENCHEIA [que no meu tempo (1970)"enchia" muito mais do que MANSOA e mesmo INFANDRE]tinham ligação terrestre mais fácil com BISSORÃ, julgo que entre BISSUM e BISSORÃ o trajecto devia ser muito mais difícil ou até já nem fosse viável.
Abraços
Jorge Picado

António Matos disse...

Caro Luis Faria,mais uma das tuas viagens às memórias e mais um sucesso de estória !
Retenho 3 pormenores que agora, depois de ler e dar largas a uns vómitos incontidos, passo a mencionar :
1 - O parto - a descrição é fabulosa pois quase me senti grávido com um cabrão a saltar-me em cima da barriga para aliviar a carga mais depressa !!!!
A cena faz-me lembrar quando um tipo descobre em casa uma bisnaga de cola já velha mas que para que o conteúdo saia, dá-lhe um murro bem no centro e das duas uma, ou fica tudo na mesma ( foi o que aconteceu à bajuda da tua estória ) ou se escagaça tudo de encontro à parede mais próxima mas sem qualquer espécie de aproveitamento ( era o que aconteceria à dita bajuda se não interviesses ! ) .
Seja como fôr, sinto as entranhas a revirarem-se e não me admiraria se esta noite tivesse um ataque induzido de hemorroidal ....
2 - A refeição de cobra - porra, Luís, ainda não me refiz dos saltos e das palmadas que a bajuda levou na barriga e já estou a ver uma cobra a servir de petisco ...
Eu até gosto de lampreia mas pelas estórias contadas aqui atrasado com as cobras que iam aparecendo a alguns camaradas lá pela Guiné, não consigo abstrair-me da possibilidade de, entre duas garfadas, aparecerem os dedos duma mão ou algo pior que tivesse servido de goluseima ao bicho umas horas antes ... bbbaaaahhhhhhhh !!!!!!

3 - passemos aos casos que, espero, funcionem tipo Alka Selzer para aliviar um pouco o enjoo com que estou.
a) - O cão tenor - só de imaginar a cena com o gajo a ganir ao som do cornetim e a calar-se quando o magala parava de dar à bochecha, dá para me agarrar à barriga ( pode ajudar à má disposição ) a rir a bandeiras despregadas !
Provavelmente o bicho deve ter acabado os seus dias no circo Chen, não ?
b) - As sandes de pão com pão fizeram-me crescer água na boca ( deve ter sido por já ter vomitado e fiquei com fome ! Será ? ). A recordação do sabor da água da bolanha com um misto de podridão e restos de lavagem de corpos, roupa e tachos, espicaçou-me as pituitárias e fez-me delirar com um bom alentejo tinto do qual me vou aproveitar para tomar as minhas pastilhas para o colesterol ( hoje não as acompanho com água ! ) .

A talhe de foice, deixa-me contar-te que em Bula, quando apareciam piriquitos, os oficiais eram praxados na cerimónia de os armar cavaleiros !
Isto passava-se numa casota que alguns tinham arrendado na povoação onde o ritual seguia um determinado guião e que, a acompanhar o whisky que o "infeliz" ia bebendo, lhe eram "servidos" alguns acompanhamentos temperados com pomada anti-venérea !!!
Nunca houve reclamações mas também não sei se alguma vez mais esses "cavaleiros" tiveram filhos ...

Finalmente Binar.
Se eram 10, 20 ou 30 os kms que separavam de Bula não sei pois sempre que fiz o trajecto fi-lo até meio, de pica na mão, e aquilo demorava eternidades ! Depois lá fizemos a protecção à engenharia na construção da estrada mas nunca andei nela ! Ia sempre ao lado, pela mata ....

Desculpa, vou acabar porque está a vir-me outro vómito .....
António Matos

JD disse...

Caro Luis
Retive duas estórias com as quais também encontrei afinidades.
No primeiro caso refiro-me a um canito que andava pelo nosso aquartelamento, mas, pelos vistos terá frequentado a mesma escola daquele que referes, e também armava banzé, ladrando, quando o corneteiro ia a funções junto do pau de bandeira. Como o corneteiro era gago, havia quem dissesse que o cão descobria desafinações intoleráveis. Afinal... fico na dúvida.
No segundo, o caso foi muito importante para mim. O meu filho nasceu no nordeste de Angola, numa localidade com hospital. Havia dois médicos. Um clínico geral que primava pela simpatia e era competente q.b. O Outro fazia cirurgia, mas parecia um magarefe com o avental cheio de sangue, e era visto a fumar na rua durante as intervenções. Jurei para mim que este não veria a minha mulher. No dia do nascimento, pedi à mulher de um colega, enfermeira-parteira, que desse assistência. Foi um parto demorado porque o puto estava mal colocado na grelha de saída, e ela também teve que ajudar empurrando-o e pressionando-o. Correu tudo bem. No fim havia alegria entre elas e os machos presentes, eu e o outro, ríamo-nos de quase termos esgotado uma garrafa de whisky.
Na Guiné tb comi cobra, mas não a descasquei como referes, pois apresentava-se frita como moreia. Talvez pela desconfiança, não me lembro do paladar, mas não fiquei fã.
Finalmente, sobre o parto, hei-de contar uma situação deveras invulgar resolvida pelo nosso enfermeiro. Lá para diante.
Um abraço
José Dinis

Zé Teixeira disse...

Sandes de pão, confesso que desconhecia essa ementa. Batatas com batatas de cebolada, roubadas da Messe, para substituir a massa com massa, ou com umas amostras de chispe. Isso sim. Afinal nós tinhamos uma capacidade de desenrascanço fantástica. A minha homenagem ao Mário Pinto da C.Caç 2317 - Gandembel, que em Buba preparava este petisco às 4 da tarde,para quando eu e mais três ou quatro amigos chegassemos dos trabalhos da estrada, para onde tinhamos ido às 5 da matina, pudessemos "almoçar" algo mais saboroso que o resto da maralha. Ele, como fiel quarteleiro da sua Companhia " desenfiava" as batatas que estavam reservadas para a Messe e assim posso afirmar que tinha rancho melhorado. Obrigado Mário. Espero que o Idálio não leia este meu post para que não te manche a caderneta.
Zé Teixeira