sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

1. Quarto poste da série Cartas, e primeiro da 2.ª Fase - Mato, de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


2.ª Fase: O Mato

Pirada, 15 Out 1964
Cá me encontro na terra prometida. Corresponde em tudo ao que imaginava. É um lugar maravilhoso!
O aquartelamento está por enquanto em más condições e os soldados ainda não têm sequer camas para dormir, mas tudo se há-de arranjar.
Estou cá eu e o Cardoso, os meus furriéis e o meu Grupo de Combate. Os oficiais estão praticamente aboletados em casa de um comerciante daqui, um tipo formidável que nos enche de whiskies, gins tónicos e belas jantaradas.
Mas comecemos pelo princípio…

Saímos de Bissau em duas lanchas de desembarque, pois o Castro também veio connosco, estando desde já instalado em Paúnca, uma aldeia perto daqui.
Pernoitámos em Bambadinca, onde fomos muito bem recebidos pela tropa local que nos encheu de cerveja. Por volta das duas da tarde de domingo, chegámos a Bafatá, onde tivemos grande recepção com um almoço oferecido pelo Comandante de Batalhão (do qual ficamos agora a depender). Nesse mesmo dia partimos para Nova Lamego (Gabú) em camiões, onde chegámos às 19H00. Fomos recebidos pelo Tenente que comanda a Companhia lá estacionada e pela esposa que, é também a professora primária daquela pequena vila. Depois de termos jantado com eles, fomos até um clubezito organizado pelos comerciantes cá da terra. Mais um bocado de cavaqueira e mais uns whiskies terminando tudo num sono reparador em belíssimas camas postas à nossa disposição.

Nova Lamego é uma vila bastante simpática. Tem luz eléctrica, biblioteca e em breve, o tal clube inaugurará uma sala de cinema.

Segunda-feira de manhã partimos para Pirada, onde depois de uma natural balbúrdia com a mudança das coisas do pelotão de tropa nativa que, íamos render, nos instalámos finalmente na nossa nova casa.
O quartel, ou melhor, a caserna para os soldados, era um antigo celeiro de mancarra (amendoim), sumariamente transformado, com uma cerca de arame farpado em toda a volta e uns abrigos feitos com cimento, um em cada canto, para defesa e vigilância.
A aldeia consta de uma meia dúzia de casas de pedra e cal cobertas com telhas de barro. As primeiras que aparecem são para os diversos entrepostos comerciais colocados na berma da única estrada. Depois surge uma escola com uma sala de aula exactamente com o mesmo traçado das nossas escolas primárias estilo Estado Novo. Seguem-se dois edifícios, um com as acomodações para o Chefe de Posto, a autoridade civil indispensável numa zona fronteiriça como esta, e outro para um até surpreendente Posto Sanitário. A toda a volta e, a perder de vista, um aglomerado confuso de cubatas e pequenas barracas cobertas de colmo onde se aloja uma numerosa população curiosa e ao mesmo tempo receosa à nossa chegada. A estrada, e único arruamento digno desse nome que divide a povoação ao meio, segue depois, como um carreiro, para norte, na direcção do Senegal que começa a poucos metros dali, assinalado por um pequeno marco fronteiriço.

Começámos logo por ser apresentados ao comerciante mais importante cá da terra, o Sr. Mário Soares, um grande amigalhaço de toda a tropa que por aqui tem permanecido. Acompanhado de um empregado que segurava um enorme cesto cheio de pão fresco acabado de sair do forno. Ali mesmo no meio da estrada, começou a distribui-lo pelos soldados que o recebiam boquiabertos de espanto. Não poderia haver melhor recepção de boas vindas. Um verdadeiro luxo.
(Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem)

Como ele já sabia com antecedência, do dia da nossa chegada, muito oportunamente, tinha mandado reparar uma casa que estava desabitada e em ruínas, mesmo defronte do seu estabelecimento e que vai servir às mil maravilhas para alojar pelo menos, os oficiais e alguns sargentos. Ficou logo combinado o possível aluguer.
(Com a rendição de um pequeno pelotão nativo que era até ali toda a guarnição de Pirada, por uma Companhia de mais de 200 homens, os problemas de alojamento eram inevitáveis, pois para um oficial e um furriel que comandavam o pelotão nativo era fácil a sua instalação numa das casas comerciais, agora para cinco oficias e mais de vinte furriéis e sargentos a coisa já se tornava mais complicada.)
Momentos depois de nos termos instalado provisoriamente, tomado um banho e feito a barba, apareceu uma avioneta que aterrou numa pista de aviação existente mesmo por detrás da nossa nova casa. Inesperadamente surgiu então o Capitão da nossa Companhia que, conseguira à última hora, aquele meio de transporte para poder vir até cá e poder dar uma primeira vista de olhos. Concordando logo com o aluguer da casa, decidiu que ali passaria a ser também a Messe dos Oficiais. Como trouxera com ele, um Engenheiro Militar, tratou-se de ver o que era preciso fazer para aumentar o aquartelamento e ficarmos suficientemente bem instalados. Por enquanto os sargentos ficarão a dormir, um em casa do Chefe de Posto, um velhote muito simpático e conversador, outros aqui na nossa casa e ainda outro no Posto Sanitário.
Quanto à nossa casa é esplêndida. Tem um grande quintal, com um poço no meio e uma larga extensão cimentada debaixo de um enorme alpendre, encostado à casa, sob o qual tomaremos as nossas refeições, quando tivermos aqui a nossa Messe. A casa é fresquíssima e dorme-se aqui muito bem, pois não tem mosquitos! Faltam apenas os móveis, mas temos cá um carpinteiro indígena muito habilidoso que já nos está a fornecer mesas e cadeiras. Camas temos duas de casal, uma em madeira, outra em ferro, emprestadas pelo M. Santos. Os sargentos estão a dormir em camas de ferro militares, que trouxemos.
A casa está toda arranjada de novo. Tem as paredes caiadas de amarelo e as portas e as janelas pintadas de vermelho. As colunas do alpendre também são em vermelho e a armação do poço em azul. Temos várias árvores no quintal que dão umas grandes flores vermelhas muito exóticas. As águas que utilizamos para os banhos vêm do poço. Num quarto ao lado da casa de banho, fora do edifício principal da casa, fica instalado o nosso impedido que fará de vigia e ao mesmo tempo os pequenos trabalhos necessários, tais como cuidar para que o bidão de água para o banho esteja sempre cheio. A casa de banho tem retrete e posteriormente terá um lavatório e um chuveiro, pois já tem um ralo no chão para escoar a água.

Contactámos com a população daqui e creio que estamos a causar boa impressão. A carne de 1.ª é a 150$00 o quilo e as bananas, de excelente qualidade, custam 10$00 cada grupo de 4. As galinhas variam entre 10$00 e 15$00 cada e os cabritos 50$00.
Quanto à luz eléctrica, por enquanto não está montada, embora tenhamos um gerador trifásico de 220 Volts, movido por um motor a diesel. Só estamos à espera de arranjar fio para fazer a instalação por toda a aldeia. Contamos que lá para Janeiro se possam pôr de lado os Petromax e se pense até na possibilidade de sessões de cinema com uma máquina de projectar do Sr. M. Santos.
É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta.
É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. Vive como um nababo indiano rodeado por uma família tranquila (a esposa e duas filhas) e que, pelo menos, aparenta a mais completa felicidade.
Um verdadeiro achado que vim encontrar aqui neste fim do mundo mas, estou bem em crer, quase princípio do Paraíso.

Já começou a afluir gente vinda de todo o lado, até do Senegal, para se tratar no nosso posto clínico, pois a novidade de termos um médico na Companhia, depressa se espalhou. Aliás, a dois passos daqui, estão os nossos principais informadores, nas pessoas do chefe da polícia e outros funcionários administrativos da aldeia senegalesa nossa vizinha, com quem o nosso amigo M. Santos mantém fortes relações de interesses mútuos. São eles os primeiros a comunicar a presença de grupos armados que habitualmente passam por esta zona a caminho da região centro da Guiné, o Oio. Está até combinada uma jantarada em que eles serão nossos convidados.
O régulo de Pirada é um velhote todo bem-posto e que gosta imenso de conversar. É alferes de segunda linha, posto que lhe foi atribuído pela Administração Civil, mas que na verdade não passa de um título quase carnavalesco. Mesmo assim tem bastante autoridade e estamos sempre a recorrer aos seus préstimos e conselhos.

Sinchã Samba Taco, 03 Nov 1964
Eu e mais dois soldados do meu pelotão, o 1.º Cabo Maqueiro Melo (o Preto) e o 1.º Cabo Atirador Bonifácio (o Vilarinho) resolvemos acompanhar o Sr. Barbosa, o Chefe de Posto, que nos convidou para, durante dois dias, testemunharmos o recenseamento das populações, que ele vai ter de fazer na região de Propana, aqui a sul de Pirada. Tal ocasião veio servir às mil maravilhas para assim conhecermos em pormenor toda esta região e também para sermos apresentados de um modo mais informal e menos bélico a toda esta gente que é sempre admirável em hospitalidade e cortesia. É uma das maneiras de fazer a chamada psico, o aliciamento psicológico e indolor das populações para a nossa causa.

Em todas as tabancas, o cabo maqueiro, ajudado pelo Vilarinho, não tinha mãos a medir, fazendo pequenos curativos, aplicando pomadas, distribuindo analgésicos, deixando toda a gente extremamente agradecida. Os miúdos, a princípio, estavam uns bocados desconfiados e berravam como desalmados quando, por exemplo, lhes queriam meter um termómetro na boca, mas depois reinava a alegria.
Em todo o lado nos oferecem galinhas e cabritos. O Land-Rover do Chefe de Posto parece agora um galinheiro. Em todas as tabancas tenho de apertar as mãos a toda a gente que se acotovela para se aproximar de mim.

Nesta noite dormi numa palhota muitíssimo asseada, com uma bela cama de ferro com colchão de rede, lençóis e tudo. Os fulas, apesar de viverem em palhotas, têm sempre as casas muito limpas, mais do que qualquer uma das nossas casas do Alto Minho. Esta tabanca onde estou agora é bastante grande. Tem umas boas dezenas de palhotas e as pessoas são quase todas de feições muito finas. Dir-se-iam brancos se não fosse o tom escuro da pele. Os traços do rosto, nariz e lábios são bastante semelhantes aos nossos.
À noite juntaram-se todos diante da porta da nossa palhota e estivemos um bocado à fresca conversando com o xerife ou seja, o régulo de toda esta região. É um indivíduo com bastante cultura. Tem o equivalente ao nosso 5.º ano do Liceu em estudos árabes.
(Actualmente as nossas escolas estão divididas em: Básicas, até ao 9.º ano de escolaridade e Secundárias, até ao 12.º ano. Em Novembro de 1964, data em que foi escrita esta carta o 5.º ano do Liceu, correspondia ao que hoje é o 9.º ano de escolaridade)
As bajudas (raparigas solteiras) e as mulheres grandes (casadas ou viúvas) vieram todas apertar-nos as mãos, dar-nos as mantenhas (cumprimentos), sentando-se também à nossa volta. Só vos digo que havia algumas que fariam corar de inveja muita morena aí da Metrópole.
Mas nada de maus pensamentos, pois deitámo-nos cedo, eu e o Chefe de Posto numa mesma palhota e os outros dois soldados numa outra aqui ao lado.
De manhã trouxeram-nos água em grandes cabaços e fizemos a toalete nas traseiras da casa, um autêntico quintal cercado com carentim, uma espécie de vedação feita com cana de bambu entrançada, que até tinha, num canto, uma retrete habilmente dissimulada por uns arbustos, tudo impecavelmente limpo.

Hoje continuou-se com o recenseamento. Enquanto o Chefe de Posto vai chamando pelos homens, eu sento-me num banco que prontamente me vieram trazer e vou observando esta gente. Algumas mulheres grandes revezam-se para terem o privilégio de abanar, com grandes lenços, o ar à minha volta, afastando as moscas e mantendo a temperatura mais agradável. Sinto-me um autêntico bwana, o verdadeiro Grande Caçador Branco.
Amanhã regresso a Pirada. Foram uns dias bem passados a comer galinhas à cafreal ao almoço e caldeirada de cabrito ao jantar. Os pequenos-almoços constavam invariavelmente de ovos mexidos com salsichas à boa maneira anglófona. O Sr. Barbosa até levou com ele um cozinheiro privativo.

Quanto aos pequenos tratamentos e curativos que fizemos por entre a população, calculo que foram mais de 500. Como depois todos se sentiam, quase sempre, muito melhor, vinham inevitavelmente trazer-nos mais uma galinha, uma saca de laranjas ou de ovos, repetindo constantemente: Djarama, djarama!, (Obrigado, muito obrigado!).
É um povo extraordinariamente afável e cativante.
Mal cheguei a Pirada já sentia vontade e voltar atrás para ir novamente brincar com as crianças tão sorridentes sempre a rodear-nos, umas mais afoitas que outras, estendendo-nos as mãos, oferecendo limões e laranjas.

Madina do Boé, 21 Nov 1964
Espero que não andem preocupados com a minha falta de notícias, mas acontece que agora é um bocado difícil escrever-vos pois, desde segunda-feira (dia 17) que me encontro fora de Pirada. Fui enviado com o meu Grupo de Combate para Nova Lamego (Gabú) e de lá para aqui, por haver fortes suspeitas que o inimigo quer atravessar a fronteira com a Rep. da Guiné, para depois se instalar nesta zona. Encontro-me na região do Boé, junto àquele ângulo mais côncavo da fronteira da Guiné-Bissau com a Rep. da Guiné. Não era a mim que me competia vir, mas porque a tropa para aqui destinada estava ainda em Bissau, viemos nós, mais dois pelotões de Nova Lamego. Espero não me demorar mais que uma semana, até porque afinal os boatos parecem não ter fundamento. Já patrulhámos quase toda a fronteira virada a Sul sem quaisquer resultados.

Estamos todos alojados numa escola primária e os soldados, de manhã, têm de tirar as armas, as mochilas e as camas improvisadas para que as crianças fiquem com a sala de aulas livre para as lições dadas por um professor também negro.
Dormimos no chão há já uma data de dias e eu, por acaso, ainda não me queixo de dores no corpo, embora aqueles mais magrinhos se comecem a queixar da dureza do colchão. Fomos no outro dia fazer uma patrulha até à fronteira e bebi água de uma ribeira que ficava já na República da Guiné.

Ah! É verdade, já me esquecia de contar o que aconteceu no domingo passado, em Pirada.
Um grupo de notáveis senegaleses, entre eles o Chefe da Guarda-Fiscal, o Chefe da Polícia e vários professores primários de uma povoação vizinha, fronteiriça com Pirada, apareceram para realizar um desafio de futebol entre as duas comunidades. Por acaso ganhámos 2-0, mas os tipos jogavam bem.
No final houve uma grande almoçarada e ao fim da tarde fomos todos levar os nossos convidados de regresso a casa nas camionetas da tropa. Fiquei assim a conhecer mais terra estrangeira e a sua gente. Apesar do corte de relações diplomáticas entre os nossos dois países, as autoridades destas povoações aqui perto da fronteira fazem o possível para manter a melhor forma de convivência pois, como também vivem numa quase penúria de tudo, longe dos grandes centros de decisão vêm abastecer-se do que precisam aqui a Pirada e vice-versa.
Foi um grande dia de festa, deixando toda a gente satisfeita, creio eu. Como na grande maioria são muçulmanos e portanto não bebiam vinho, gastámos litros e litros de laranjada para lhes matar a sede mas, não se olhou a despesas. À noite houve manga de batuque. Veio gente de toda a parte tal como acontece aí na Metrópole, quando há uma romaria. Era tanta gente que cheguei a ter algum receio, em termos de segurança, pois era impossível controlar todas aquelas pessoas, mas felizmente eram apenas pacíficos camponeses, e lá continuámos na bela paz do Senhor.

Voltando aqui a Madina do Boé, acabou hoje a nossa estadia por cá. Recebi esta tarde ordem para regressar a Pirada. O mais caricato é que me parece não haver meios para o fazer. Teremos de atravessar um larguíssimo rio (o Corubal) e o único processo era uma velha jangada, mas esta foi ao fundo ontem à noite, quando tentaram colocar-lhe em cima uma viatura demasiado carregada. Agora terei de esperar que a ponham de novo a flutuar ou então terão de me vir buscar de avião, o que seria muito mais divertido.

A guerra aqui no Boé não passou de boatos. Até os comandos vieram para aqui cheios de ideias e de truques, dizendo que faziam e aconteciam e depois não encontraram ninguém. Até metiam dó de tão desconsolados que andavam.
(No entanto estava bem enganado, pois logo na segunda-feira seguinte, após o meu regresso, o grupo de comandos caiu numa violenta emboscada, tendo sofrido numerosas baixas. Começou então um verdadeiro inferno para a diminuta guarnição do aquartelamento que não teve outra alternativa senão retirar. Os guerrilheiros tomaram conta da situação e fizeram de Madina do Boé o primeiro território independente da Guiné-Bissau. E eu, mais uma vez, escapava intacto, mas por pouco.)

Pirada, 01 Dez. 1964
Professores primários formados aqui, são autêntico ouro! Fartaram-se de fazer escolas à pressa, por toda a parte, mas esqueceram-se dos professores, até porque toda a gente sabe que para aqui ninguém gosta de vir.
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Tivemos mesmo de comprar as cadeiras, pois não tínhamos mobília nenhuma. A tropa que cá estava não nos deixou nada, pois também eram uns pobres desgraçados que mais parecia terem sido desterrados para este fim de mundo.
Um alferes e três sargentos brancos, todos os outros eram tropa indígena. E, como cá, a tropa indígena é paga pelo governo da província, viviam das economias que podiam ir fazendo com o dinheiro do rancho…

Nós, agora estamos quase instalados. Estivemos mais de um mês com toda a gente a dormir no chão, pois nem camas havia, nem carro para as ir buscar a Nova Lamego.
Presentemente, temos em Pirada três camiões grandes (GMCs), duas pequenas camionetas (Unimogs) e dois jeeps.
Já nos deslocamos com relativa facilidade e rapidez, tanto para Nova Lamego como para Bafatá sempre que nos falta qualquer coisa.

Bafatá é uma vilória bastante razoável. Tem um clube que até dá cinema todos os dias. A energia eléctrica é fornecida por um gerador a diesel, um bocado velho e a luz está constantemente a ir abaixo. Mas é melhor que nada. Fui lá este fim-de-semana com o M. Santos e a família, e não deixei escapar a oportunidade de farejar um pouco de civilização.
Hoje também posso dizer:

- Olhem, sabem? No sábado fui ao cinema! Agora não são só vocês que me dizem isso em todas as cartas que me escrevem.

Por acaso até era um filme do Jerry Lewis, que já tinha visto, “Jerry, Primeiro Turista do Espaço”.

Jantámos em casa de um comerciante amigo do M. Santos e, no domingo, almoçámos em casa do Secretário da Administração, outro amigo dele e que, conforme vim a descobrir, depois, é de Viana! Falámos sobre a nossa terra, recordando os tempos em que andou no Liceu, que nessa altura seria ainda, evidentemente, o Liceu Velho.

A situação da guerra continua sensivelmente na mesma. Entrámos na época seca e começou a moda das minas nas estradas. Não nas estradas aqui do Norte, felizmente, mas sim nas do Sul. Não há dúvida que sou um tipo com sorte. Poderia estar agora em Catió ou Bedanda, mas não, encontro-me em Pirada, confortavelmente instalado, descansadinho da vida, onde, à noite, podemos dar um passeio pelas redondezas até casa de alguém conhecido, comer um pouco de amendoim torrado, beber umas cervejas geladas, ouvir um batuque qualquer e voltar tranquilamente para casa, de pilha eléctrica na mão só para não tropeçar e cair nalgum buraco. Fazemos patrulhamentos de rotina que mais parecem passeios dominicais de carro.

Estamos quase no Natal. Como o tempo passa e como o passado nos vai desaparecendo da memória! Tenho receio de parecer um verdadeiro estranho quando regressar.
Pensamos fazer uma festa de Natal para os soldados. Pelo menos o bacalhau com couves não há-de faltar. Sim, porque conseguimos fazer uma horta, atrás do quartel, que promete muitas e belas couves para o Natal. Aqui tudo se dá, desde que seja bem regado e bem tratado. Quase todos os dias comemos às refeições uma bela salada de alface e tomate.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

2 comentários:

JD disse...

Camarada,
Bela vida e boa descrição. Já não conheci Pirada com essa tranquilidade, mas sei que era assim, e que o Soares era homem-grande. Sei que, dessas cumplicidades, foi permitido viver com tranquilidade. E sei de uma senhora que se deslocava de Bajocunda usando um jeep.
Ali vivia-se como em África, romântica, misteriosa, solidária.
Manda mais sff.
José Dinis

MANUEL MAIA disse...

CARO GERALDES,
A TUA FORMA DE ESCREVER ABSORVE O LEITOR.
PARABÉNS.
REFERES A NECESSIDADE DE CHAMAR SANTOS AO VOSSO HOSPITALEIRO ANFITRIÃO,MÁRIO SOARES,PARA EVITAR POSSÍVEIS CONFUSÕES...

PELO QUE REFERES ESTÃO NOS ANTÍPODAS...
SE UM DAVA,O OUTRO FECHA A MÃO...

UM ABRAÇO

MANUEL MAIA