quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

1. Mais um poste da série Cartas, 2.ª Fase - Mato, de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


2.ª Fase: O Mato

Pirada, 03 Jan. 1965
As festas de Natal e Ano Novo passaram sem quase darmos por isso, mas no entanto fizemos manga de festa que foi mais um pretexto para dar vazão à raiva de estarmos aqui contra a nossa vontade.
Todas as noites organizávamos batuques e rara foi a noite em que me deitei antes das 3 da madrugada. De manhã, a convite do Castro, íamos até Paúnca almoçar, eu, o doutor e alguns dos meus furriéis. Quase sempre acabávamos por ficar para o jantar. Em Paúnca come-se muito bem!
Só regressávamos depois da meia-noite, cantando ao luar durante todo o caminho. Entrávamos em Pirada aos tiros, fazendo grande algazarra, acordando toda a gente.
Depois íamos beber café para a nossa Messe e comer algum resto de frango de churrasco com batatas fritas que tivesse sobrado do almoço.

O capitão está de férias na Metrópole, o Cardoso vai cedo para a cama, ou anda por aí entretido a tentar seduzir alguma bajuda (com ofertas de pó-de-talco), de maneira que quem manda agora aqui, sou eu, o alferes mais graduado que se lhes segue.
Além do mais, com estas comezainas todas estou a ficar mais gordo. Da última vez que me pesei, a balança marcou 81 kg. Vejam lá que brutalidade!
Mas já comecei a fazer dieta. Isto é, a tentar comer menos. Praticamente deixei de beber whisky e só de vez em quando é que lá vai um, como refresco.

No dia de Ano Novo, tivemos cá a visita de uma delegação de mulheres senegalesas. Uma autêntica apoteose de cor, pois todas exibiam exuberantes vestidos, cheios de tules e rendas de nylon esvoaçando ao vento. Parece que é uma antiga tradição que, mesmo com esta ameaça de terrorismo, não deixam de festejar. São esposas de funcionários e polícias aduaneiros aqui da fronteira e têm uma maneira de vestir muito mais elegante que as mulheres do lado de cá, que parecem umas autênticas parolas diante delas. Foi um dia inteiro de muita festa com muita luz, muita cor, muita batucada e principalmente muita alegria.
No dia seguinte tudo voltou à normalidade.

O capitão parece que se está a dar muito bem lá por Coimbra, donde é natural e onde foi passar as férias. Parece que não tem vontade de voltar pois já vai com mais de quarenta dias de licença!
Mas, ah! É verdade! Também tivemos cinema por cá!
Foi no dia antes da véspera de Natal.
De repente, precedido por uma multidão de miúdos em grande chinfrineira, apareceu na entrada da aldeia, uma grande carripana, um daqueles Ford-T, quase pré-histórico que, ostentava um pomposo dístico, pintado nas portas: “Cine-Guiné”.
Ao volante, um velhote de chapéu à colonial na cabeça acompanhado por um negro.
Num abrir e fechar de olhos juntou-se uma pequena multidão que o saudava entusiasticamente enquanto ele estacionava aquela estranha traquitana mesmo no centro da aldeia. Imperturbável saiu e logo se dirigiu para uma das lojas comerciais onde parecia já ser esperado.
Era o Manel Jaquim, o famoso homem do cinema ambulante, de quem o M. Santos e o Chefe de Posto, já tanto nos tinham falado que quase o considerávamos como uma personagem lendária. Convidado a instalar-se em nossa casa, não se fez rogado, erguendo um leito de campanha, com o respectivo mosquiteiro, mesmo no meio do nosso quintal. Ao jantar, revelou-se um indivíduo muito patusco, conversador e filósofo. Apesar de já ter uma idade avançada parecia irradiar uma impressionante força anímica.
Fiel ao velho estilo colonial, de largos calções de caqui azul-escuro, chapéu de cortiça, olhar felino, revelando uma sabedoria de velha raposa, o Manel Jaquim é um sobrevivente de outras eras e aventuras, ao estilo dos filmes de Tarzan e da macaca Cheeta, da nossa meninice.
Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que, estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado.

Rápida e metodicamente montou a velha máquina de projectar de 16 mm, completamente portátil, relíquia que afirmou ter comprado aos americanos, como salvado da guerra do Pacífico e à qual dedica toda a atenção e carinho. Aproveitando a largueza do nosso quintal, montou ali mesmo a sala de espectáculo, com um enorme lençol branco a fazer de ecrã (que chega para o formato Cinemascópio). A toda a volta do recinto colocou uma série de fios com lâmpadas eléctricas. A energia para tudo aquilo é fornecida por um pequeno, mas potente gerador a gasóleo que também trazia com ele. Na entrada, pendurou meia dúzia de cartazes a anunciar a sessão de cinema para hoje, do Cine-Guiné. À noite o nosso quintal até parecia a Feira Popular.
Empoleirado em cima de uma enorme caixa que, também lhe servia de cofre, mestre Manel Jaquim, com uma impressionante carabina de caçar elefantes, pousada nos joelhos, começou a cobrar os bilhetes aos clientes que acorriam em massa.
Preços: 4$00 para os pretos; 10$00 para os soldados; 25$00 para os comerciantes e oficiais, mesmo para aqueles que, como nós, tinham emprestado o recinto. Cada qual providenciava o assento que lhe fosse mais cómodo ou sentavam-se mesmo no chão. Era engraçado observar a fila de clientes que se ia formando à porta do cinema, todos com os mais variados bancos e cadeiras à cabeça.

O filme, “Hércules e a Rainha”, era mais um daqueles pastelões italianos sobre temas mitológicos mas que, curiosamente faz sempre as delícias destas plateias, a quem o astuto Manel Jaquim procura contentar.
Apesar de a maioria dos espectadores ser analfabeta e também não perceber nada do que os actores diziam, inacreditavelmente todos pareciam entender a trama, não desviando os olhos ecrã, vibrando entusiasticamente com as proezas do grande herói da mitologia grega.
Quando veio o final, aplaudiram maravilhados.

Bajocunda, 08 Fev. 1965
De repente fui deslocado, às pressas, para esta localidade a 10 km de Pirada e que também pertence ao nosso Comando, por haver boatos de que qualquer coisa estaria eminente.
Estamos cá ao todo, perto de 80 homens, pois também veio outro pelotão pertencente a uma Companhia de Cavalaria que futuramente será quem virá em peso para cá, reforçando esta zona tão perto da fronteira com o Senegal.
Assim somos 2 alferes e 7 furriéis a comer numa messe improvisada numa casa mesmo ao lado de um barracão que faz de caserna para os soldados, tudo encravado no meio de uma minúscula povoação de palhotas e só duas ou três casas de pedra e cal, antigos entrepostos comerciais que em toda a Guiné fazem o escoamento da produção agrícola e pecuária, fornecendo ao mesmo tempo, à população local, os mais variados artigos de consumo.

Tivemos um bocado de sorte pois encontrámos um frigorífico grande a petróleo que ainda trabalha bem. Todo o resto que precisamos é que não há meio de aparecer, tais como: cal, cimento, uma bomba de água, madeira, ferramentas de carpinteiro e pelo menos 15 camas para os soldados que ainda dormem no chão. E isto contando só com os meus, porque os do alferes Gabriel, o oficial de Cavalaria que se veio juntar a nós, esses dormem todos no cimento. É a guerra mais desorganizada que já vi.

Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família; a Ti Clara a velha lavadeira negra que trata da minha roupa que, como gosta muito de agua di Lisboa (vinho) anda sempre a cair de bêbeda e não dá conta do serviço, entregando-o a outra rapariga, a Olívia muito mais competente; o Adulai e o Sambaro, os dois moços que foram os meus primeiros guias e que no outro dia até se deslocaram, de bicicleta, de Pirada para Bajocunda, só para me visitarem e me trazerem uma galinha. Desconfio que, ingenuamente, ambicionam pertencer ao meu grupo de guerreiros e fazem isto para me agradar.

Há ainda a Joaninha, uma criança linda, neta da Ti Clara e a Rita, uma mulata instruída, que sabe fazer renda, ganhando bom dinheiro com isso. Tudo gente com quem confraternizo, sentado num pequeno tamborete à porta da casa de Ti Clara, na berma da estrada, à entrada de Pirada, saboreando amendoim acabado de torrar, enquanto o sol acaba o seu giro diário e se esconde atrás das palmeiras que rodeiam a bolanha lá em baixo.
Quando me viram, vieram logo saudar-me todas sorridentes, perguntando pela minha saúde, pelas minhas coisas, pelos meus parentes, por tudo aquilo que acham ser os meus bens mais preciosos, tal como é costume por estas bandas, apertando-me demoradamente as mãos, especialmente a Ti Clara a quem providencio sempre algumas sobras da água di Lisboa da nossa Messe.
À saída não me deixou partir sem trazer a habitual galinha churrascada na brasa, à cafreal, temperada com muito Piri-Piri e limão como só ela sabe fazer. Abracei-a comovido. Apesar de ser uma velha horrenda com um aspecto quase repelente, coxa, meio louca desbocada até, quando está sob os efeitos do álcool mas quando sorri, o rosto todo se ilumina e transfigura-se revelando a alma pura que aquele corpo alberga. Quando morrer irá decerto direitinha para o céu, como recompensa do inferno que passou cá em baixo nesta terra esquecida dos deuses e dos homens.

O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.
Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23H00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.

Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.
Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.

Bajocunda, 15 Fev. 1965
Estou aqui a vigiar uma área de mais de 300 km2, com dois Pelotões para comandar, o meu e um outro de Cavalaria, situação inédita mas que não me tem acarretado problemas de maior pois eu e o outro alferes rapidamente fizemos amizade.
Cá na terra, para já, sou o chefe máximo, depois do régulo que me pareceu ter muita autoridade entre a população, um déspota quase.
E por isso tenho muito que fazer e não parece. Estão sempre a aparecer à porta do aquartelamento (duas antigas casas comerciais, cercadas de arame farpado, encravadas no minúsculo centro da povoação) indígenas que me querem cumprimentar… e pedir algum favor. Há sempre problemas com o rancho, com as camionetas, com a falta de gasolina, com as patrulhas, com as informações, com os rádios, eu sei lá, uma infinidade de coisas que me está quase a deixar louco.
Depois ainda dizem que vim para aqui para me divertir. Pois, mas o pior é que para além de tudo, os terroristas não são para brincadeiras. Ainda no outro dia mataram dois alferes, um furriel e três soldados, numa emboscada em que usaram metralhadoras e bazookas. Andam organizados em secções de 120 homens, com 2 morteiros, 4 bazookas, 4 minas anti-carro, doze espingardas automáticas, pistolas-metralhadoras e vários revólveres e espingardas de repetição. Por enquanto aqui ainda vou tendo a sorte de a população estar do meu lado e bem armada, senão eles já teriam entrado por esta zona.

Bajocunda, 22 Fev. 1965
Vamos lá ver se consigo escrever algumas linhas como deve ser. Desde a última carta, os acontecimentos têm vindo a multiplicar-se de uma maneira assombrosa. As coisas não estão muito más, mas estão o suficiente para me encher de problemas e não me deixar dormir descansado.
Tudo começou com um ataque a uma aldeia que fica longe daqui. Queimaram as casas, mas não fizeram mortos nem feridos. No entanto toda a população da área já quer fugir, com medo que lhe aconteça o mesmo.
Assim temos de deslocar, todas as noites, duas ou três Secções para proteger as aldeias mais importantes. O IN não voltou, mas andamos todos estourados. Eu, dia sim, dia não tenho de dormir no campo com a tropa. Como se pode calcular, a minha actividade mais que triplicou, preocupado com mil e um problemas.
O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido.

Bajocunda, 01 Mar. 1965
Então que tal o Carnaval? Aqui fizemos uma batucada e improvisámos uma orquestra que esteve a chatear a paciência de todos até altas horas da noite!
Numa tabanca abandonada, na parte Sul deste território, tinha encontrado uns tambores de diferentes tamanhos e eu e alguns furriéis resolvemos improvisar uma pequena orquestra de percussão. Passámos o dia na melhor das disposições, apenas ensombrada pelos constantes intervenções do nosso capitão que parece meio histérico com a situação que está a acontecer agora nesta área.

Com a vinda da Companhia de Cavalaria para aqui, naturalmente regressarei a Pirada. Embora seja melhor para mim, acho que estas trocas e baldrocas acabam sempre por dar mau resultado. Vão ser as piores condições de alojamento, o reacender de velhos problemas, etc., etc.

Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora.
Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo.
Mas a culpa foi só dele e eu passo já a contar como foi.

Nesse dia, como de costume, saí do aquartelamento para levar duas Secções até uma aldeia distante, a tabanca de Orébodé situada mesmo na beira da estrada conhecida pela estrada da mancarra (pois é a única por onde circulam os grandes camiões civis que vão até à zona Nordeste da Guiné para procederem à recolha da tal mancarra, o amendoim, o maior produto agrícola daqui).
No caminho fiz um desvio pela tabanca de Amedalai, a tabanca do régulo, onde fui investigar a veracidade de alguns boatos que corriam sobre um grupo IN, que estaria por perto, do outro lado da fronteira com o Senegal. Juntando alguns elementos da guarda pessoal do régulo para me servirem de guia, fui então até a tabanca de Cuntim, outra tabanca na berma da estrada da mancarra mas bastante mais à frente, onde teriam sido detectados sinais da presença do IN, tabanca essa que ficava a meio do caminho para Orébodé onde teria de deixar as já citadas duas secções.
Como de facto só vi vestígios que me levaram a supor tratar-se de um grupo pouco numeroso, que por qualquer motivo se teria desviado do seu percurso normal e como todos os rastros indicavam claramente que teriam regressado ao Senegal resolvi prosseguir viagem para então instalar os meus homens no local que estava estabelecido, em Orébodé, onde ficariam a pernoitar.
Sem ter dado por mais nada, regressei pela mesma estrada, fazendo novamente o desvio para a tabanca do régulo onde fui deixar os elementos da escolta pessoal dele que, ainda estavam comigo.

Quando cheguei ao aquartelamento soube que o capitão, vindo de Pirada esbaforido, tinha estado lá à minha procura, pois soubera por uns camionistas civis que, entretanto por lá teriam passado vindos de Canquelifá que, um grupo fortemente armado tinha sido visto na estrada da mancarra, tendo até feito parar um deles, embora o mandassem seguir depois. Alarmado com essas notícias ameaçadoras o capitão tentou imediatamente entrar em contacto comigo via rádio, mas eu entretanto já tinha saído com as duas secções. Assim tinha resolvido meter-se num Unimog com mais dois soldados e um furriel e vir ao meu encontro.
Ao chegar a Bajocunda, vendo que eu não estava, temerariamente resolveu, mesmo assim, ir ao meu encontro para me prevenir da situação. Por azar e devido ao tal desvio que eu tinha feito, para a tabanca do régulo, desencontrámo-nos totalmente.

Quando me inteirei do que tinha acontecido, achei que, para não haver mais desencontros, o melhor seria esperar que o capitão resolvesse voltar para trás.
Mas o tempo foi passando e nada de notícias do capitão. Quando anoiteceu e veio a hora do jantar começámos a ficar inquietos e mais inquietos ficámos, quando nos pareceu ouvir o som de uma enorme fuzilaria que parecia vir de Leste, do lado da estrada da mancarra.

Ainda tentámos uma aproximação, avançando para lá com mais uma secção, procurando certificarmo-nos de onde vinha o som do tiroteio mas, como a noite estava demasiado cerrada e como de repente tudo se tivesse silenciado, resolvemos aguardar pela chegada do dia. Quando regresso ao quartel, qual não é o meu espanto, venho encontrar o capitão e os outros homens do seu grupo, num estado lastimoso, de olhar desvairado, falando e gesticulando sem parar, rodeados pelos restantes soldados do nosso quartel.
Tinham sido repentinamente atacados por uma nutrida fuzilaria de toda a espécie, quando chegaram perto da tabanca de Cuntim, (onde eu tinha estado antes, sem que nada me tivesse acontecido). Surpreendidos, apenas tiveram tempo de abandonar a toda a pressa a viatura e as próprias armas, para fugir pelo mato fora, tentando chegar ao quartel. O que conseguiram, por autêntico milagre.
A muito custo lá fomos reconstituindo o filme dos acontecimentos.

De facto um grupo numeroso de guerrilheiros, tinha entrado na zona da tabanca de Cuntim, chegando até junto da estrada, onde teria feito parar os camiões da mancarra, deixando-os, no entanto, prosseguir sem lhes causar qualquer dano. A comprovar isso lá estavam as pegadas que eu e a milícia nativa encontrámos nos arredores daquela tabanca e que, no entanto, pareciam indicar também que esse grupo, posteriormente, teria voltado para o Senegal.
Mas o que deve ter acontecido foi que, quando eu já tinha abandonado o local, o mesmo grupo de guerrilheiros, resolveu voltar atrás, ao mesmo local, à mesma tabanca. E foi então que deram de caras com o grupo do capitão que chegava nesse momento no Unimog.
Surpreendidos por encontrarem ali elementos das nossas tropas, e como eles também não são menos medrosos que nós, julgando estar na presença de um grande contingente, abriram um tão nutrido fogo com todas as armas de que dispunham, espingardas, metralhadoras, bazookas, etc., que o capitão e os homens que seguiam com ele, nem tiveram tempo para mais nada senão, saltar da viatura e fugir, o mais rápido possível, pelo meio do mato. O que lhes valeu foi um pouco de sangue frio e um bom sentido de orientação, pois de outro modo não teriam conseguido regressar ao quartel, sãos e salvos. Mas não ganharam para o susto.
Só quase de madrugada é que consegui apaziguar um pouco o nosso capitão e convencê-lo de que tudo tinha sido causado por um daqueles desencontros acidentais que acontecem sempre quando menos se espera.
Felizmente não havia a registar problemas mais graves. Apenas a lamentar a perda de uma viatura e algumas armas ligeiras. Não se poderiam atribuir culpas, tudo tinha sido um caso fortuito. Mas que de facto, o capitão, não deveria ter tomado aquela decisão temerária de ir à minha procura, isso era uma evidência em que todos nós acabámos por concordar.

Acho que, no entanto, ele nunca mais me olhou da mesma maneira e passou a considerar-me um cruel espinho cravado na honra militar dele, que a todo o custo pretendia manter impoluta. Nunca mais foi o mesmo capitão, jovial, descontraído e até paternal para com os oficiais sob o seu comando. Ficou com o sistema nervoso definitivamente abalado e dia a dia, isso torna-se cada vez mais notório.
Como todo este acidente irá ser apagado, com certeza, dos relatórios oficiais e como não convém ser mais lembrado, o assunto passou a ser tabu. A perda da viatura, reduzida a cinzas pelo fogo IN, vai ser explicada como um incidente de emboscada inesperada e à qual foi impossível resistir sem pôr em causa as vidas das nossas tropas. Mas a imprevidência de um comandante será escamoteada, para que a fragilidade com que se joga esta guerra, não fique mais uma vez à mostra.
(Nem de propósito: na história oficial da CART 676, escrita por um oficial adjunto do capitão, pouco antes do nosso regresso à Metrópole, pode ler-se a seguinte referência a este episódio, nestes termos: “- Em 16 de Fevereiro de 1965 o IN atacou de surpresa a tabanca de Orébodé (Bajocunda) onde se encontrava uma viatura Unimog guardada por 4 soldados. O grande potencial de fogo do IN obrigou os referidos soldados a abandonar a viatura e a irem juntar-se à Secção que se encontrava perto, ficando a viatura completamente destruída e apoderar-se, o IN, de um rádio AN/GRC-9 que estava montado na referida viatura.”- sem mais nada, apenas isto!)

Pirada, 15 Mar. 1965
Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.
Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso.
No entanto trouxe de lá algumas lembranças curiosas: um canhangulo, oferta do régulo, um conjunto de tambores saracolés, uma lança e um jogo muito interessante que, pelos vistos todos os fulas sabem jogar na perfeição, chamado Ôri. Só vos digo que tem causado tanta sensação entre os oficiais e sargentos que em menos de 15 dias todos aprenderam a jogar. Posso-me orgulhar de até me terem vindo pedir para os ensinar. É um jogo bastante simples mas que requer muita atenção e alguns cálculos matemáticos. Além disso é uma boa maneira de promover a aproximação com os nativos que gostam imenso de o jogar. Sempre que posso, desafio qualquer um para jogar comigo, quase sempre o régulo de Pirada, Solo Só que, a rir, dá-me cada nó cego em menos de um fósforo que até fico vesgo. Deve haver uma mnemónica própria para os cálculos necessários em cada tipo de jogada, mas que eu ainda não consegui descobrir qual é.
Tinha encontrado o tabuleiro à entrada de uma tabanca e até pensei que se tratava de uma escultura curiosa feita num pedaço de madeira escura, talvez a representação de uma canoa, ou até algum brinquedo infantil, embora estivesse danificado num dos extremos (pela passagem inadvertida do rodado do jeep). De facto parecia mais com uma canoa, com duas fiadas paralelas de seis cavidades cada e mais duas maiores nas pontas.
Quando, mais tarde, um indígena o viu no aquartelamento, junto com as minhas coisas é que fiquei a saber que se tratava do tabuleiro de um jogo muito popular e conhecido em toda a Guiné, o Ôri, palavra que em dialecto fula significa o algarismo um, a unidade. No próximo aerograma explicarei como se joga.
(Cerca de dez anos depois, pude constatar que este jogo é, nem mais nem menos, o jogo mais disseminado por toda a África, com inúmeras versões e nomes diferentes, Awele, Mancala, Solo, Wari etc. De origens muito remotas, estende-se até à Ásia, e é considerado um dos jogos mais importantes de toda a humanidade.)

Está cá mais um capitão que, veio comandar um grupo de sapadores. Estão a colocar uma cerca de arame farpado à volta das tabancas para as defender (?) mas, que na verdade, apenas serve para restringir a livre circulação dos indígenas e melhor os controlar.

Pirada, 21 Mar. 1965
Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.
Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.
Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!
E quando o Manel Jaquim por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras.

Ainda ontem eu e o Cardoso (regressado de Paúnca, por o Castro ter acabado as férias) fomos a um baile crioulo.
O enfermeiro civil que é mestiço e o ajudante do Chefe de Posto que também é da mesma cor, andam sempre a organizar bailes e outras comemorações, pois aparece sempre um pretexto qualquer nem que seja para provar a toda a gente que até não gostam nada de vinho…, só de cerveja bem gelada!
Um velho gira-discos a pilhas, meio roufenho, lá conseguia debitar umas mornas e coladeras bem dengosas, na semi obscuridade de um Petromax que há muito ultrapassara a garantia e com um vidro mais preto que a cara deles que não deixava sequer identificar as pessoas e os corpos dançantes, só por apalpação. Quando dei por ela, o Cardoso já se tinha raspado deixando-me ali só no meio daquela escuridão mal cheirosa, onde até podia correr o risco de ser degolado por um qualquer assassino escondido nas trevas. A Ti Clara que aparece sempre nestas ocasiões propícias estava lá, sentada a um canto completamente bêbada. Tão bêbada que quando se quis levantar estatelou-se a todo o comprido armando um reboliço que o baile teve mesmo que acabar por ali e eu aproveitei para me escapar à sorrelfa.
Mas fora tudo isso, até foi um baile bastante decente…
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

2 comentários:

amilcar Ventura Furriel Mil da 1ª Comp. BAT. CAV. 8323 disse...

Amigo e camarada de Guiné Carlos Geraldes estive lendo o teu P4892 e quando falas de Bajocunda deixa-me uma grande alegria pelo tempo que lá estive se bem que com oito anos de diferença, mas o engraçado é que quando lá cheguei em Nov. 73 havia três frigoroficos a petróleo um maior que os outros já não funcionava e se calhar era o mesmo que tu lá encontras-te no dia 8 Fev. 65, Amigo Carlos tenho uma foto aerea de Bajocunda do tempo que lá estive se quiseres eu envio-te para veres a diferença.

UM ABRAÇO AMIGO

JD disse...

Com que então sardinha assada?
Como dizia o outro: ele há guerras... e guerras!
Mas as descrições que fazes compensam com delícia as dificuldades passadas.
Um Ford T? Outra maravilha só possibilitada em África.
Aguardo os próximos episódios.
J.Dinis