domingo, 30 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4883: Notas de Leitura (19): Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 27 de Agosto de 2009:

Camaradas,

Aqui vai uma recensão sobre uma obra que apareceu em 1974. Em correio separado, vou novamente enviar-vos, também com o pedido de publicação de um texto e imagem sobre uma edição igualmente histórica da obra política de Amílcar Cabral publicada em França, em 1970.
A seguir remeto-me ao silêncio, tereis notícias das minhas leituras em Setembro. Recebei a minha estima e elevada consideração.


Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral

Imediatamente após o 25 de Abril de 1974, as Edições Afrontamento deram à estampa várias publicações alusivas à história dos movimentos de libertação operantes nas colónias portuguesas. No conjunto dessas iniciativas é de ressaltar uma antologia organizada pelo Luís Moita e Maria do Rosário Moita relativa ao pensamento de Amílcar Cabral: “Textos Políticos”, assim se intitula esta antologia abreviada que permitiu ao leitor português conhecer o pensamento do antigo secretário-geral do PAIGC.

É sobre essa raridade histórica que iremos à frente falar. A antologia aparece organizada em torno de três temas fundamentais: a história do movimento de libertação; a teoria que fundamentava a acção no movimento de libertação; e a natureza da política anti-colonial, na perspectiva das relações internacionais. No final, são transcritas longas passagens daquele que foi considerado o testamento político de Amílcar Cabral – o seu último discurso, a sua mensagem de ano novo em 1 de Janeiro de 1973.

Cabral foi reconhecidamente um dos maiores teóricos na luta anti-colonial, deixou um pensamento que pode ser ainda hoje explorado para múltiplas leituras nas dimensões política, social e cultural. Agrónomo especializado na erosão dos solos, aparece na Guiné nos anos 50, onde irá proceder a um recenseamento que lhe irá permitir um contacto profundo com todos os grupos étnicos guineenses, avaliar as potencialidades económicas da região e conhecer minuciosamente todas as suas infra-estruturas e equipamentos. Dirá mais tarde que não foi em vão que optou por vir trabalhar para a Guiné, ele que fora convidado para assistente no Instituto Superior de Agronomia.

De formação marxista, crente nas teses que então vigoravam sobre a integração económica na emancipação do continente africano, estava atento às questões tribais, à natureza específica de um proletariado rural que se devia aliar a uma minúscula burguesia, confinada aos pequenos centros urbanos.

Tentou na Guiné criar uma associação cívica, as autoridades de Bissau não autorizaram a constituição dessa associação, alegando que a maioria dos proponentes não pertencia à classe dos “civilizados”. Mais tarde, em 1956, será um dos fundadores na clandestinidade do PAIGC. Nos anos subsequentes, a Guiné Conacri e o Senegal tornam-se independentes, ateia-se o rastilho que vai possibilitar o apoio ao PAIGC, sobretudo a partir de Conacri.

Cabral, um político de visão, toma nota que a luta armada em que se vai envolver é num território que precisa de ter uma língua de coesão e uma atitude eminentemente libertadora e identitária, já que os líderes de Conacri não escondem o desejo da anexar o território da Guiné portuguesa para criar “a grande Guiné” e Senghor também não dissimula que pretende ter um papel director no novo país de língua portuguesa.

O PAIGC torna-se uma realidade no espectro político africano em 1961, ano em que se inicia a Guerra Colonial e se dá uma vaga de prisões de quadros do PAIGC. Cabral tudo estrutura, tudo organiza, tudo escreve, torna-se na figura emblemática do PAIGC, é o mais prestigiado líder dos movimentos de libertação. No final de 1962, apresenta-se numa comissão das Nações Unidas e apela para que acabe urgentemente a presença colonial portuguesa na Guiné e em Cabo Verde.

Em 1963, depois de ter rejeitado quaisquer alianças com outros movimentos libertadores da Guiné, inicia-se a luta armada, criou-se a cisão da influência territorial entre a potência colonialista e o movimento de libertação, em pouco mais de dois anos alterou-se radicalmente a forma de ocupação do território guineense, falando-se, em termos de propaganda do PAIGC, em zonas libertadas, zonas temporariamente ocupadas pelas tropas portuguesas e zonas em discussão. A aprendizagem da luta armada faz-se em tempo acelerado, entrou-se a sério numa guerra de guerrilhas, militar e socialmente muito violenta.

O líder do PAIGC não tem ilusões sobre o carácter da mobilização de massas para a luta da independência. Diz sempre que o colonialista português não se apropriou das terras da Guiné, não criou concentrações de colonos, não deslocou grandes massas de africanos para pôr no seu lugar colonos europeus, como aconteceu em Angola.

Na Guiné manteve-se a propriedade colectiva da aldeia, o que dificultou a sensibilização dos camponeses, demonstrando-lhes como eles eram explorados na própria terra. Influenciado por outros teóricos africanos, Cabral considerava que a África do tempo não era tribal, seria a luta para ter pão e viver com dignidade que iria rapidamente influenciar a coesão de todos os guineenses (como se sabe, não só esta base teórica era falsa como veio a propiciar equívocos tremendos de que a Guiné ainda não se libertou).

Onde o seu pensamento se revelou inegavelmente heterodoxo foi na sua leitura de classes, na natureza das alianças em tempo revolucionário, na ênfase dada ao papel da cultura e na argumentação utilizada para demarcar a luta anti-colonial da estima fraterna sentida pela população portuguesa.

Esta antologia, convém insistir, está marcada pela data em que apareceu no mercado português e pelo tempo da euforia da independência, logo em 1974. É um livro que fala mais do pensamento do lutador do que do visionário da construção da nação guineense.
Na época, ainda ninguém tinha coragem em desmascarar a inviabilidade de forçar a Guiné e Cabo Verde a coabitarem no mesmo Estado, sabendo-se, como já se sabia, que eram duas realidades completamente distintas, tanto na história do colonialismo, como na economia, educação, valores, religião, etc.

A antologia também por isso não acolhe a visão de Cabral sobre o modo de transformar a Guiné como país subdesenvolvido numa nação na senda do progresso. Vários estudiosos do pensamento de Cabral observam que a sua experiência sob o desenvolvimento estava condicionada pela organização das zonas libertadas, não deixou reflexão teórica sobre um estádio superior de desenvolvimento pós-colonial.

Esta é a antologia de 1974, nela palpita o pensamento e a visão de um lutador optimista, prestigiado e dotado de uma enorme capacidade de comunicação e humanismo. Lêem-se estes textos políticos à luz de um grande sopro libertador, pois para Cabral o mais importante era libertar o povo e confiar no homem.

Como ele escreveu “O homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas”.

Com um grande abraço de camaradagem,
Beja Santos
Alf Mil Cmdt do Pel Caç Nat 52
Imagem: © Beja Santos (2009). Direitos reservados.
___________

Nota de MR:

4 comentários:

Anónimo disse...

Amilcar Cabral já tem uma estátua, após a morte de Nino Vieira, num lugar bem visível, numa rotunda com 50 metros de diâmetro, onde termina aquela que seria a AVENIDA UNIDADE GUINE CABOVERDE, que liga Bissau ao aeroporto em Bissalanca.

Essa avenida só não ficou com esse nome, porque em 14 de Novembro de 1980, o Nino Vieira, derrubou o irmão de Amilcar, o Luis, que se estava a preparar para num congresso próximo ir aprovar e materializar a máxima "partido único, país único".

Pois é Beja Santos, tu e nós todos, (blog), tentamos compreender e discutir aquilo que nos aconteceu à 30 e tal anos, enquanto os guineenses estão a tentar compreender o que está acontecendo agora.

E diz o velho porteiro guineense do estaleiro da minha obra na baixa de Lisboa: É patrão, "os branco foram lá estragar as nossas terras, agora nós vimos na vossa traz". Ou seja, fogem de lá.

Será que Amilcar, visto pelos velhos guineenses, não seria "branco"?

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Já agora mais uma dúvida a acrescentar à do Antº Rosinha. Será que Amilcar Cabral apenas pretendia substituir os portugueses por caboverdianos? Quem ordenava ou pelo menos autorizava o rapto e massacre de populações, queimando vivas mulheres, crianças e velhos que estivessem nas tabancas, e que no 1.º Congresso do PAIGC (13 a 17 de Fevereiro de 1964) em Cassacá defendeu a pena de morte (foram sumariamente julgados e fuzilados vários chefes que queriam seguir uma linha diferente) faz-me questionar sobre o seu real pensamento. Henrique Matos

Luís Graça disse...

Marxista, Cabral ? Como muitos intelectuais da sua geração, deve ter feito as suas leituras de Marx e dos marxistas... Em profundidade ? De maneira sistemática e crítica ?

Julgo que integrou alguns conceitos e análises teóricas do marxismo, mas seria redutor catalogá-lo como um homem da vulgata marxista... A maior parte dos dirigentes políticos do seu tempo, que se reclamavam do marxismo, a começar pelos africanos, não deveriam conhecer mais do que a vulgata marxista...

Como já escrevi anteriormente (*), teríamos que ter em linha de conta o seu pensamento, a sua escrita, os seus discursos, a sua prática… Há quem diga que ele nunca foi verdadeiramente um marxista, como é o caso do seu principal biógrafo, o francês Patrick Chabal, que escreve em inglês e vive no Reino Unido.

Onde Cabral revela o seu melhor é como pedagogo, como educador, em intervenções orais, em crioulo, como no seminário de quadros de 19 a 24 de Novembro de 1969 (“Os princípios do Partido e a prática política”). Usando uma linguagem simples, coloquial, recheada de imagens, é aí que Cabral se revela como o grande comunicador, o grande sedutor que é...

É claro que a sua análise da estrutura social da Guiné e de Cabo Verde não deixava de ter pontos fracos, é em todo o caso
reveladora da hgrande capacidade de Cabral em integrar diferentes contributos teóricos (incluindo os antropólogos coloniais que ele critica, como o António Carreira)...

Cabral foi um homem de pensamento e de acção... Catalogá-lo simplesmente de "marxista", é capaz de ser redutor... Todos os rótulos são redutores (e portanto empobrecedores). Sobretudo se com isso o quisermos "colar" à estratégia e aos interesses da então União Soviética e seus aliados... Julgo que Cabral pagou caro, inclusive com a vida, a sua heterodoxia e independência de pensamento...

(*)Vd. poste de 30 de Junho de 2008
Guiné 63/74 - P3000: Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2008/06/guin-6374-p3000-amlcar-cabral-nada-mais.html

Anónimo disse...

Caros Veteranos;
Devemos denunciar as práticas demagogas, o desvio de alguns do respeito pela verdade dos factos é repugnante.
Aqueles que tudo julgam poder dizer, a pretexto da sua pretendida popularidade, continuam a sofrer desagradáveis surpresas.
As conversas entre Che Guevara e Amilcar Cabral, são bem elucidativas da campanha futura do PAIGC.
Palavras de Amilcar Cabral: "Fidel é sem dúvida um dos maiores revolucionarios(prepotente e assassino) que a historia nos deu no presente século. Um criador que aplicou enriquecedoramente o marxismo-leninismo ás condições do povo cubano. Chegou a hora do marxismo ser o guia para a acção do povo com o objectivo de alcançarem a independencia politica e assegurar a construção economica pela unica via: "O Socialismo".
"Procurar a libertação das forças produtivas e a faculdade de determinar livremente o modo de produção mais adequado ao processo cultural, conferindo~lhe toda a capacidade de criar o progresso".
Kumba Ialá, acusou o PAIGC de ter mandado assassinar Amilcar Cabral.
A sua estátua foi oferecida pelo governo cubano.
Amilcar Cabral, pagou caro o que então tinha planeado, sendo assassinado por dois elementos do PAIGC. A sua morte foi ordenada por Sekou Touré.
"Para bom entendedor"
Cumprimentos.