terça-feira, 1 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4889: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (15): Sobreviver no inferno da Guiné

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos mais um texto do seu baú de memórias:

Camaradas,

No seguimento do envio das minhas estórias para publicação no blogue, seleccionei mais este texto do meu caixote das memórias, porque acho que é matéria do interesse geral e, mais especificamente, dos nossos Camaradas da Tabanca Grande, o qual intitulei de:

"SOBREVIVER NO INFERNO DA GUINÉ"

Na guerra, o factor sobrevivência de um soldado, depende muito da sua inteligência, astúcia, boas preparações física e psíquica, a que se deve juntar uma boa e adequada dose de instrução militar, aliadas a excelentes capacidades de perspicácia e reflexos naturais (ou sexto sentido), tudo isto bem protegido pelo elemento “esquisito”, que ninguém desdenha possuir e que designamos por sorte. Abreviando a ideia numa curta frase: Regressar vivo a casa!

O chamado instinto de sobrevivência é um dom natural propriedade de quase todos os seres vivos, a que o ser humano felizmente não escapa, em maior ou menor escala de valor em cada espécimen, no entanto não mensurável.

Bem se pode dizer que foi esta faculdade humana, que nós mais utilizámos dia-a-dia, na prática, para sairmos vivos das várias armadilhas, patrulhas, colunas, emboscadas, operações, etc. naquele inferno operacional que nos ditou o P.A.I.G.C., as doenças, as más condições alimentares, as condições adversas territoriais e o problemático clima da Guiné.

Depressa nos apercebíamos que a maioria dos “mandantes” na Guerra, preservavam as suas integridades físicas legando o seu mando nos oficiais de patente mais baixa, ou mais novos vulgo "Piriquitos", que operavam no terreno. Era a sua “lei” de sobrevivência.

Aprendemos então a adaptar-nos ao novo modo de viver – na guerra -, e, majoritariamente, a saber preservar a nossa integridade física e vida pessoal.

Tal no entanto, jamais poderia implicar, recorrer a actos de traição, fosse de que modo fosse, que implicassem a preservação da integridade física e vida pessoal do(s) nosso(s) outro(s) Camarada(s).

Ainda ouvi um dia alguém dizer: “Mais vale um covarde vivo que um herói morto”. Se calhar, digo eu, em caso muito limite, sem colocar em causa a integridade física de qualquer Camarada e se, o candidato a covarde, conseguir viver posteriormente com a sua consciência tranquila, o problema seria só dele e de mais ninguém!

Na minha opinião pessoal, cobardia, no nosso caso, era sonegar-se às vicissitudes da guerra por simples que fossem. Covardia era não ajudar um, ou mais Camaradas em dificuldades e abandoná-los à sua sorte. Em casos extremos, covardia poderia passar por não se lutar abnegadamente até ao último alento de vida, em defesa da nossa própria integridade e, ou, se necessário, da dos nossos Camaradas.

Claro que não somos todos iguais e cada um de nós, e no conjunto da sua unidade, regeu-se por um código de conduta, mais ou menos aguerrido e heróico conforme a sua educação intelectual.

Obviamente que o facto de se ser mais valente e ousado, nomeadamente debaixo de fogo IN, diminuía seriamente as probabilidades de se sobreviver.

Por exemplo, as tropas Comandos têm como seu lema: “A sorte protege os audazes”.

Mas a sorte muitas vezes era madrasta e os seus destemidos e agressivos Homens pereciam em combate.

Heróis sim mas a que custo!

Quem ingressava nas tropas especiais sabia, à partida, que o seu factor de sobrevivência, dependia muito de si e do espírito de corpo que era incutido à sua equipa, ao seu grupo e, em acções bélicas de maior envergadura e perigosidade, à sua companhia.

Quantas vezes os rasgos heróicos individuais, ou colectivos, de bravura e coragem custaram o mesmo número de mortos.

Para esta minha análise, não interessa se esses rasgos foram, ou não, involuntários e, ou, irreflectidos.

Depois havia aqueles que, em áreas muito massacradas pelo IN, que eram submetidos massiva e consecutivamente à provação do privação, sofrimento, dor e morte, que muito para além da ambição suprema – a manutenção da sua vida -, com o avançar do tempo e a deformação do seu melhor estado psíquico e físico, se deixavam apoderar por um estranho desprezo pelo risco e pelo perigo.

Este estado era tanto mais agravado com as doenças graves entre elas as mais temidas como o paludismo e as disenterias.

Em estrado terminal, haviam os que, atingido o seu mais alto nível de esgotamento psicológico, se suicidavam.

Muitos de nós que andávamos embrulhados nas hostilidades, que mal tínhamos tempo para poisar nos nossos bura… kos, só voltávamos a tomar algumas precauções e cuidados, ao aproximar-se o fim das comissões e o regressar dos sonhos de voltar a casa… vivos e incólumes fisicamente, porque, psiquicamente, meus amigos bem sabeis como andamos, ainda hoje, quase todos.

Resumindo e pesando tudo isto que acabei de vos dizer, no meu balanço e análise geral meramente pessoal, ao fim destes 35 anos sobre a conclusão do conflito na Guiné, creio, sinceramente, que nós, os ex-Combatentes desta contenda, salvo as devidas e raras excepções à “regra”, cumprimos escrupulosamente o que nos foi mandado, salvaguardando o nosso código de conduta, que foi sobreviver com honra, dignidade e respeito pelo nosso opositor.

Por isso, muito contribuiu, quando eram pedidos voluntários para qualquer missão, perigosa ou não, respeitarmos uma máxima muito bem delineada entre a malta da tropa “normal”, que todos conhecemos: “Voluntários?... Só para casa”.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
__________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


2 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro homónimo Mário,

Parabéns!
Gostei imenso deste teu escrito.
Não consegui passar sem te o dizer.

Continua!

Um abraço do tamanho do Cumbijã,

Mário Fitas

MANUEL MAIA disse...

CARO MÁRIO PINTO,

PARA ALÉM DO SOPRO,DO BAFEJO DA FORTUNA,COMO DIRIA O POETA,ATREVER-ME-IA A DIZER QUE FOI UM ACTO DE INTELIGÊNCIA A NOSSA CAPACIDADE DE PRESERVARMOS A VIDA NUM AMBIENTE TÃO HOSTIL COMO AQUELE QUE ENCONTRAMOS NA GUINÉ,UM POUCO POR TODO O LADO,

DA SIMPLES PICADA DO MOSQUITO PORTADOR DE PALUDISMO,À ÁGUA DA BOLANHA,INQUINADA,QUE REGULARMENTE BEBÍAMOS E À QUAL POR VEZES ACRESCENTÁVAMOS UMA PASTILHA PARA,DE CERTA FORMA,A FILTRARMOS; DA FOME E SEDE,AO ISOLAMENTO TOTAL;DA FALTA DAS MAIS ELEMENTARES CONDIÇÕES DE VIDA POR MANIFESTA INCAPACIDADE DO ESTADO EM FORNECER-NOS ALGO MELHOR QUE A MISERÁVEL VIVÊNCIA DOS ABRIGOS; DAS MINAS ASSASSINAS AO TERRÍVEL CHAPÉU DE CHUVA MORTAL QUE

REPRESENTAVAM OS ESTILHAÇOS DE
RPG;DO ENSURDECEDOR ESTRONDO DOS
REBENTAMENTOS DE ARMAS PESADAS E O
SIBILAR ARREPIANTE DAS BALAS QUE
AINDA HOJE TANTOS DE NÓS CONTINUAM
A "OUVIR" E QUE POR ISSO MESMO
PERSISTEM "AGARRADOS" À GUERRA SEM CONSEGUIREM LIBERTAR-SE DESSE FANTASMA QUE OS ATORMENTA E ATIROU
PARA A MISÉRIA DAS RUAS,CARENTES
DE TUDO,E A QUEM O ESTADO DE FORMA VERGONHOSA NEGA PRATICAMENTE A SUA EXISTÊNCIA.


FOI UMA AUTÊNTICA EPOPEIA A NOSSA VIVÊNCIA DE ÁFRICA.

CONTINUA A BRINDAR-NOS COM OS TEUS ESCRITOS.
OBRIGADO.
MANUEL MAIA