1. Esta estória poderia fazer parte da série Efemérides, mas na verdade não teve importância nenhuma no desfecho da guerra colonial.
Mansabá, Sexta-Feira, 13 de Agosto de 1971*
Tarde quente do dia 13 de Agosto de 1971 que se adivinhava enfadonha. Como não tinha nada que fazer, estava deitado na cama deixando correr o tempo, ouvindo pela milionésima vez uma das duas cassetes que tinha.
O meu Pelotão estava de Serviço ao Aquartelamento e eu estando de Sargento de Ronda, só entraria ao serviço lá para a 1 hora da manhã. De repente lembrei-me que era Sexta-feira e ao mesmo tempo dia 13.
Como não sou supersticioso, saltei da cama e logo pensei que era o dia indicado para se fazer aquelas tarefas que se não devem fazer nestes dias ditos azarentos.
Vesti-me e fui ao quarto dos condutores procurar um voluntário para ir comigo ao exterior do arame farpado rebentar granadas velhas. Não foi difícil encontrar alguém, porque toda a gente gostava assistir ao espectáculo dos rebentamentos.
Enquanto o condutor foi aprontar um Unimog 411, fui levantar um Rádio e avisar o meu Alferes, que estava de Oficial de Dia, dos meus intentos, para que ele por sua vez avisasse todos os Postos de Sentinela à volta do Aquartelamento e mais quem achasse por direito ser prevenido.
Carregada a viatura, dirigimo-nos para o exterior do arame farpado, estrada de Mansabá para o K3, como quem vai para um picnic, para junto de uma árvore morta onde eu costumava, num buraco existente junto a ela, destruir o material que ia armazenando e que não tinha cumprido a sua missão de explodir quando lançado contra o IN.
Depois de dispostas, com cuidado, as granadas velhas no buraco, juntei-lhes uns pedaços de TNT providos de detonadores eléctricos para provocar o rebentamento controlado à distância.
Após o rebentamento e enquanto o fumo se dissipava, aproximei-me do local para verificar se tinha corrido tudo bem ou seja que nenhuma das munições ficasse inteira. Mal me abeirei da árvore, fui recebido por um enxame de abelhas selvagens, em polvorosa, que me perseguiram enquanto eu fugia a sete pés.
Como não fui suficientemente lesto fui picado na cabeça e nas mãos. Enquanto corria, pelo Rádio começaram a chamar por mim. Quando pude, parei e atendi. Era um militar das Transmissões a comunicar-me que o Comandante ordenava que me apresentasse imediatamente no seu gabinete.
Desmontei o serviço, carregámos as tralhas na viatura e lá fomos a caminho do Aquartelamento, não prevendo eu já nada de bom.
Quando entrei na porta da Secretaria, o gabinete do Comandante só tinha acesso por lá, fui alvo do riso por parte dos presentes. O meu aspecto era algo caricato pelos inchaços na testa provocados pelas picadas das abelhas, mas ao mesmo tempo vi caras de preocupação pelo que me esperava lá dentro.
Bati à porta e à voz de ENTRE, entrei, fiz a continência da praxe e em sentido esperei pela pancada. Indiferente ao meu aspecto, perguntou-me o Comandante, muito furioso:
- Nosso Furriel, quem o autorizou a ir fazer rebentamentos para o exterior do quartel?
Respondi que ninguém, e que julgava ter competência suficiente para saber qual era a melhor ocasião para destruir material perigoso, depositado na Arrecadação do Material de Guerra, à minha responsabilidade, desde que antecipadamente desse conhecimento do facto.
- Mas eu não soube de nada!!!
Disse-lhe que previamente tinha avisado o nosso Alferes Bento que estava de Oficial de Dia, para que ele por sua vez alertasse os postos de vigilância e providenciasse pela minha segurança e do condutor que me acompanhava.
- Vá chamar imediatamente o nosso alferes.
Fui ao Bar dos Oficiais procurar o Oficial de Dia para ele me acompanhar ao gabinete do nosso Capitão. Com os dois já na sua presença, foi a vez de o alferes ser interpelado:
- Nosso alferes, o nosso furriel Vinhal deu-lhe conhecimento de que ia fazer rebentamentos?
- Sim, meu Comandante, deu.
- E você avisou-me?
- Não meu Comandante, avisei toda a gente mas não me lembrei do senhor.
- Nosso furriel, pode retirar-se. Por esta vez escapou de uma porrada, mas tenha cuidado comigo!!!
O que se passou no Gabinete do Comandante depois de eu sair não sei, mas adivinho que o alferes tenha ouvido das boas.
Cá fora, na Secretaria, fiquei a saber pelo nosso Primeiro Rita que, quando se deu o rebentamento, o Capitão, julgando tratar-se de um ataque ao aquartelamento, deitou a fugir pelo gabinete fora, mas quando viu que toda a gente continuava sentada a trabalhar, impávida e serena e, ainda por cima com ar de riso, ficou furioso. Sabendo posteriormente que tinha sido eu o autor do rebentamento, julgou chegada a hora de dar a porrada que me havia prometido tantas vezes.
Restabelecida a ordem, dediquei-me a tratar as picadas das abelhas e a reflectir sobre a tarde que tinha passado. Não foi enfadonha, mas convenhamos que naquela Sexta-feira dia 13, melhor tinha sido ficar na cama, sossegadinho, a ouvir pela milionésima vez a música de uma das duas cassetes que tinha e da qual sabia de cor e salteado a sequência das canções.
Perdendo agora um pouco de tempo a falar do meu inesquecível e caro Comandante, Capitão C, sempre digo que foi um dos meus melhores amigos na tropa que, não me conhecendo de lado nenhum, me tinha um amor cego. Quantas vezes aquele homem me ameaçou com porradas, nunca tendo, felizmente, pretexto suficientemente forte para levar avante a sua vontade.
Felizmente, para mim, mais tarde este senhor, depois de uma série de baixas por doença (?) ao Hospital Militar 241 de Bissau, foi definitivamente evacuado para o HMP de Lisboa.
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art.ª MA
CART 2732
Mansabá, 1970/72
__________
Notas de CV:
(*) Esta estória foi publicada na I Série do nosso Blogue (Poste DCLX)
Vd. poste de 21 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6770: Factos e Feitos mais importantes da CART 2732 (3): De Agosto de 1971 a 19 de Março de 1972 (Carlos Vinhal)
Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 – P6792: Estórias avulsas (90): Recordações (José Marques Ferreira, ex-Sold Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Amigo Vinhal
Bela estória em tempo de guerra, com final “soft”, não tivesse sido o ataque das abelhas. Não é só saborear o mel, é preciso ter estofo para aguentar com o ferrão. Eu já fui muitas vezes picado por abelhas, quando criança e não só, também o fui na Guiné e a picada da abelha Africana è mais dolorosa. Aliás, a abelha Africana é mais traiçoeira. Foi desconhecendo esta característica, julgando-se que era mais produtora de mel, logo mais rentável, que foi levada para o Brasil onde se misturou com as colónias autóctones de abelhas. Veio a descobrir-se posteriormente, que a abelha Africana muito do mel que armazenava, era fruto do roubo e assalto que fazia a outras colónias de abelhas e, não da tarefa incansável de andar a voar de flor em flor.
Um abraço
José Corceiro
Carlos
O teu carissimo amigo Catalão, que cheguei a conhecer em Mansabá, encontrei-o depois em Lisboa e Setubal, estava na Policia. Por motivos profissionais, quando estive na Direcção Geral de Combustiveis, cheguei a falar-lhe de Mansabá, mas pelos vistos não se lembrava de nada,também não insisti.
Um abraço
César
Caro Corceiro, falou quem sabe.
Um abraço.
Caro César.
Na verdade, constava-se por lá que o Cap Catalão tinha ido da Polícia de Setúbal para a Guiné. Desconheço se tinha feito alguma comissão anteriormente.
Foi evacuado definitivamente para o HMP depois de várias para o HM 241. Enquanto isso quem comandava a Companhia era o Alferes Casal, e durante 3 meses até o Cap Jorge Picado, apanhado a laço.
Parece-me que o Cap Catalão andava em psiquiatria.
Um abraço
Carlos Vinhal
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