Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 4 de setembro de 2010
Guiné 63/74 - P6931: Estórias do Juvenal Amado (30): Quando o passado vem ao nosso encontro
1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 24 de Agosto de 2010:
Caros Luis, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca grande
Uma pequena estória que traz à luz a verdade sobre o sr. Regala, que aquí já foi falado por diversas.
Um abraço
Juvanal Amado
Estórias do Juvenal Amado (30)
Quando o passado vem ao nosso encontro em forma de abraço é uma experiência única
Assim aconteceu há dias quando me encontrei com o meu camarada do 3972, que foi meu comandante de pelotão.
O ex-Alferes Amadeu foi evacuado com hepatite aos vinte e um meses de comissão.
Alf Mil Luís Amadeu
Lembrei-me dele logo. Recordei o momento da sua evacuação e contei-lhe que tinha corrido o boato da sua morte felizmente mentira.
Falamos de Galomaro, dos nossos camaradas, dos lugares e acontecimentos que nos marcaram com é natural.
Veio à conversa o sr. Regala e sobre isso ele enviou-me posteriormente a estória, que segue em anexo tal como a mandou.
Um abraço a todos os tabanqueiros.
Juvenal Amado
O sr. Regala I
Juvenal:
Como sei que gostas de contar estórias, certamente também gostas de as ler. Aqui vai uma que se passou comigo. Começa em Galomaro e termina em Lisboa alguns anos depois em meados da década de 80.
Da esquerda para a direita: Fur Mil Claudino, 2.º Srgt Silva e Alf Mil Amadeu
Poucas vezes estive na esplanada do Sr. Regala. Talvez duas ou três. Mas lembro-me que uma vez, penso que a convite dele, estive com outros camaradas a comer um frango a cafreal e a beber umas Super Bocks.
O Sr. Regala estava sentado ao meu lado. Enquanto saboreava uma tíbia do frango, vejo passar à minha frente um rapaz talvez com 14 ou 15 anos impecavelmente vestido com umas calças pretas e uma engomada camisa branca. Acompanhei com o olhar a sua deslocação até ao balcão e a sua saída por uma porta que ficava por trás. A minha observação não passou despercebida ao Sr. Regala, que me disse de seguida:
- É o meu sobrinho. Está cá a passar as férias. Vive em Bissau com a minha… (já não me lembro)
Pensei em que altura do ano estávamos e não creio que fossem férias escolares. Mas decididamente não quis saturar mais os meus neurónios e resolvi atacar outra tíbia do animal.
Passados cerca de 15 anos, estava eu a trabalhar na EDP em Lisboa quando fui informado que vinha estagiar para o meu departamento alguém dos PALOP durante uma semana.
Como tinha uma secretária livre no meu gabinete disse que podia ficar directamente comigo que eu o apoiaria no que ele necessitasse.
Apareceu-me então o indivíduo novo de raça negra que era guineense.
Conversamos sobre o seu curso de engenharia tirado na Bulgária. Procurei saber pormenores do curso, matérias, programas e sinceramente pareceu-me bastante fraco o curso de engenharia, mas certamente suficiente para a Guiné. Como até conhecia aquele ambiente, sabia o que lhe poderia fazer alguma falta e prontifiquei-me a mandar tirar umas cópias de alguns projectos-tipo e outra documentação que o pudesse ajudar. Qualquer dos casos iria ficar uma semana comigo.
Resolvi então dizer-lhe que já tinha estado na Guiné durante a tropa. Ao que ele me perguntou.
- Onde?
- Em Galomaro.
- Então conheceu o Sr. Regala.
- Sim.
- Era o meu tio.
Ainda não refeito do que estava a ouvir. Como o mundo é pequeno. Indaguei mais.
- Houve uma vez que eu vi lá um jovem com umas calças pretas e uma camisa branca e o Sr. Regala disse-me que era o seu sobrinho.
Resposta pronta do rapaz.
- Era eu.
Então já refeito do acontecimento, devo ter olhado para ele com uma cara de inquiridor e sem mais, disse-me:
- É que o meu tio era um alto quadro do PAIGC, e depois da independência arranjou maneira de eu ir estudar para o estrangeiro.
No dia seguinte tinha um monte de fotocópias para lhe entregar conforme estava combinado. Mas ele não apareceu naquele dia nem apareceu mais.
Caro Juvenal, gostava de te ver a escrever outras histórias que não fossem sobre a Guiné. Acredita, acho que tens muito talento.
Um Abraço,
Luís Amadeu
O sr. Regala II
O sr Regala era homem de certa idade, baixinho e de origem cabo-verdiana.
Tinha se não estou em erro duas camionetas, com elas para além fazer transportes e comércio entre várias povoações na Zona Leste, era frequentemente contratado para fazer colunas de abastecimentos integrado nas colunas de Galomaro.
Dizia-se que nas colunas em que ele participava podíamos estar descansados, tal era as boas relações que entre ele e a guerrilha existiam. Facto que não me custa acreditar.
Assim falei muitas boas horas com ele onde era fácil adivinhar, que comércio era uma coisa, ideais quanto ao futuro da Guiné era outra.
Também tinha um posto de venda em que vendia umas “bazucas” bem fresquinhas, servia uns bifes com batatas fritas e ovo a cavalo, bem ao jeito de “bitoque” que era uma delícia.
Bem quero isto dizer que este pequeno posto fazia parte do imensa cantina, que era formada à volta dos soldados por toda a Guiné.
Uma terra com agricultura de subsistência, sem industria, sem bens minerais, era pois à volta dos soldados que a economia fervilhava.
Lavadeiras, vendedoras de mancarra, de caju e frutas várias, todas se juntavam perto do arame.
Nas aldeias também comprávamos umas galinhas e a carne para o quartel, também era adquirida por nós a fornecedores junto dos Homens Grandes.
Ao vinho de palma e aguardente de cana, juntavam-se vendedoras de prazer nas ruelas das tabancas, que também dividiam embora por breves momentos o leito os favores e o patacão, que custava essa também transacção.
Em Bafatá lá estavam os restaurantes portugueses e libaneses, a escola de condução, que o artesanato, que bonito era o de filigrana de prata, que os nossos furriéis e alferes mais endinheirados mandavam fazer de encomenda. Não esquecer os vendedores ambulantes que normalmente nada sabiam de português.
Éramos por assim dizer o motivo e fonte de subsistência em todas áreas daquela terra.
Quero eu dizer com isto tudo que o que para lá levamos, trouxemos mais a saudade que tende a crescer.
Comecei por falar no Regala.
Se calhar se comesse hoje o tal bife, diria que não era nada de especial e naquele tempo longe de casa, qualquer coisa nos satisfazia desde que saíssemos da ração de combate ou do rancho, que era servido no Restaurante da Morte Lenta e outros locais com “gerência” parecida.
Mas o que eu não daria por voltar lá, sentar-me e comer para ver se era verdade ou não.
Um abraço
Juvenal Amado
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 – P6798: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (25): Fátima Amado, filha do nosso camarada João Amado, encontra no nosso Blogue notícias sobre a morte de seu pai (Juvenal Amado / Carlos Vinhal)
Vd. último poste da série de 11 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6716: Estórias do Juvenal Amado (29): Depois do meu regresso, ou o homem que num certo dia teve três mães
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4 comentários:
CARO JUVENAL,
SERÁ QUE O NOSSO PRIMEIRO FOI COLEGA DO "CURSO DE ENGENHARIA" DO REGALA SOBRINHO?
UM GRANDE ABRAÇO.
MANUELMAIA
Interessante com passar de tanto tempo, ainda é o "Sr.Regala" com algum afecto ou saudosismo..
Tinha de facto duas grandes camionetas, que as utilizava no transporte de mercadoria no "interior" da zona
Leste e naturalmente deixava-se contratar como convinha, pelo exército português para outros tansportes.
Poucas vezes aprofundei conversas com o sr. Regala, como tambem convinha a ambos.
Pois foi daquele local exactamente, que um professor africano, porque o questionei sobre o conteúdo dos
livros escolares, que foi denúnciar-me ao quartel no mesmo momento. Evidente que o local não era seguro para nada e muito menos para aprofundar conversas com subservientes do sistema. Valeu-me a sorte de o Of. de Dia ser o meu Aferes de Trm, que veio a falecêr no Hospital de Bissau, quando eu já lá estava internado.
Não me recordo realmente de o local ser muito frequentado por graduados, era sim na sua maioria por soldados, principalmente dos que recebiam o chamado "subsidio de zona risco" como eu.
Ou não era assim? No meu caso fui preveligiado porque ficava com todo o patacão que recebia e mais algum enviado da minha Avó.
Diga-se de passagem sobre que o "serviço de restaurante" era óptimo; não regateando a quantidade ou os extras, e de uma grande limpeza considerando as condições.
Fiz da esplanada do restaurante o meu posto de "vigia" e o meu ponto "giratório" dos contactos que procurava a todo o custo estabelecer, onde passei oitenta p/cento do tempo, exceptuando as casernas de transmissões,
da minha vida em Galomaro.
Deveu-se (no meu tempo e na minha opinião) em grande parte à localização e actividades do Sr. Regala, a calmaria que existia, enquanto nos destacamentos circundantes as escaramuças e o "ronco", continuavam.
Já agora apetece-me perguntar: Ainda lá estava o Sr Regala, aquando a tentativa do arame farpado do Paigc ???
Sobre o dito jovem, alto, mais alto que o Isofe (empregado do sr. Regala que se ausentou por tempo
indeterminado...com quem estabeleci laços de grande amizade) esse jovem de camisa branca, vinha do Liceu de Bissau.
Durante dois ou três dias que ele esteve por lá, mantendo sempre aquele aspecto impecável, consegui
estabelecer conversa com ele, sobre os estudos, ficando eu a saber, ou melhor, a sub-entender, que seu destino era para fora da Guiné, e ninguém o poder acompanhar, face à minhas pretensões.
Possuo uma foto com ele, com parte do rosto cortado como convinha na época para as minhas recordações pessoais.
Hoje que pela segunda vez, o Blog me recorda os meus "sonhos" intriga-me não saber (ou compreender ??)a possivel causa imediata da fuga ao emprego e à prestabilidade do Eng. Luís Amadeu no seu local de trabalho.
Com abraço para todos
Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro
galomaro@sapo.pt
Manel Maia
Não sei se era relativo nem em que dia tinha acabado o curso, se o resultado chegou por fax a um Domingo é outra coisa que não sei responder.Que o nosso 1º tirou o seu curso à menos tempo é uma realidade.
Em relação ao que o Filipe pergunta já posso ser mais concreto.
O sr Regala e sua família directa não se encontrava em Galomaro quando fomos atacados no dia 1 de Dezembro de 1972.
Coincidências!!!!!!!!
Quanto a oficiais frequentarem a hospitalidade do sr Regala só posso dizer que pelo menos um era visita assídua e esse não era simpatizante do PAIGC.
Um abraço
Juvenal Amado
Tenho duas historias engracadas com o sr. Regala. Depois de uma operacao de 3 ou quatro dias nos fins de Janeiro de 2002 fui jantar ao restaurante do sr Regala. Escusado sera dizer que antes que o Fana me servisse ja eu tinha bebido umas boas cervejas. quando terminei passei cerca de duas horas a pesar-me nas duas balancas que utilizava, uma para comprar outra para vender. No dia seguinte fui chamado ao comandante dizendo-me que teria problemas se fosse novamente visto a pesar-me. Obvio. Estando uma sua filha doente foi chamado o Dr. Pereira Coelho para a observar. Depois de tratada duas ou tres semanas mais tarde, como sempre perguntou, dr. quanto lhe devo. Como ja previamente estabelecido ele respondeu. Faca contas com o Catroga. Voltou-se para mim livido, so que nao o deixei respirar. Cinco visitas sao duzentos e cincoenta escudos. Ficaram la da mesma forma pois fizemos uma festa daquelas. O servico de saude e mais alguns convidados. Escusado sera dizer que nunca mais fiz psico naquela casa. Um abraco do tamanho do mundo. AUGUSTO CATROGA ex cabo enf.
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