sábado, 18 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7004: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (3): A grande lição do baptismo de fogo

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 16 de Setembro de 2010:

Caros Camaradas
Junto nova história (Baptismo de fogo), vivida no Oio, para ser registada na série "Outras memórias da minha guerra".

Segue, também em anexo, uma das fotos tiradas, à civil, em Fá Mandinga, no primeiro Domingo de Guiné que, apesar do espanto (e contestação) do Capitão, serviram para acalmar as nossas famílias, com a aparente boa disposição de um grupo de militares amigos em "gozo de férias" na Guiné.
Publiquem se julgarem oportuna.

Um abraço e Parabéns pelos DOIS MILHÕES.
do Silva


Outras memórias da minha guerra (3)

Baptismo de fogo – A grande lição

Fá Mandinga, primeiro domingo na Guiné

A nossa Companhia (Cart 1689) havia chegado a Fá Mandinga nos primeiros dias de Maio de 67. Fizemos treino de adaptação na zona do Xime, em Ponte Varela e no Enxalé. Andámos por lá relativamente à vontade e chegámos a não alvejar o IN, apanhado desprevenido em deslocação, o que serviu de chacota na sede de Bambadinca, ao qual a nossa Cart 1689 estava adstrita (que não era o nosso BART 1913, que fora colocado em Catió).

O certo é que, de repente, apesar da inexperiência de combate, fomos mandados para o OIO (zona de Samba Culo), que era uma das zonas mais perigosas da Guiné, sendo a progressão apeada feita a partir do destacamento de Banjara.

Transportados em viaturas desde Bafatá, chegámos a Banjara, onde fizemos um grande jogo de futebol, no Estádio do Capim, que, apesar de muito aquém das medidas regulamentares, não impediu a nossa vitória expressiva de 7 a 2 contra os desgraçados residentes, que viviam ali mais limitados que o melro enjaulado do meu vizinho. Digamos que com 5 semanas de Guiné, ainda tínhamos bastantes reservas energéticas acumuladas na santa terrinha da Metrópole.

Já passava da meia-noite quando saímos virados a norte. Fomos logo aconselhados a poupar a água, visto que só teríamos hipóteses de reabastecimento, lá para o meio-dia, quando se atingisse um rio.

Ninguém estava habituado a tanto calor, especialmente no interior da mata, onde, de noite, o oxigénio rareava. Daí que a água transportada nos cantis e pelos carregadores que nos acompanhavam, foi desaparecendo com o amanhecer.

Outras 2 ou 3 Companhias também andavam lá pela mesma zona, integradas na mesma operação (Op Inquietar), dando-nos uma confiança ilimitada nos êxitos iminentes. E como durante a instrução na Metrópole, se incutia que o que era difícil era apanhar os “turras” porque, “cobardemente”, fugiam, nós já tínhamos alguns valentões capazes de correr atrás deles, logo que os ataques começassem. Quem os ouvia, incluindo alguns graduados, ficava com a ideia de que a guerra não passava de uma caça ao homem, apanhá-los à mão (descalços, desnutridos, mal treinados e desmilitarizados).

Samba Culo, localizada a sul do Rio Canjambari

Recordo aqui que no RASP (V.N.Gaia), unidade onde foi formado o nosso BART 1913, como despedida, foi efectuado um ataque demonstração, em que eu fui designado para comandar o grupo de assalto. Eu, que sempre trazia bala real na câmara desde os “Rangers” de Lamego (onde as “desviei”), fui advertido e instruído pelo Comandante de Batalhão para que se tirasse o “pau-bala” das cápsulas e fosse substituído por algodão. Mais – foram dadas instruções para agir, segundo a guerra clássica, de capacetes, com os postos marcados e os braços estendidos, a indicar a “metralhadora à esquerda” ou “à direita”, sempre a correr para envolver e aniquilar o IN.

Todos os militares eram dignos discípulos de Marte e tinham também aprendido, mais ou menos, a teoria da cautela e caldos de galinha, que lhes tinham ensinado, mas, com tanta gente e tanta confiança, pensava-se: coitados dos “turras”, se a gente os descobre…

Todavia, também havia alguém que passava o tempo a advertir os soldados dos perigos que poderiam surgir e, também, sobre a falta de água, conforme se veio a verificar com alguns militares, ainda nas primeiras horas da madrugada. Tudo parecia estar a ser descuidado. Era o barulho, as conversas, os espaços demasiado curtos entre os homens, a desatenção, etc. Como reacção às minhas manifestas preocupações, era normal os visados encherem o peito e, até, gozarem:

- Calma, ó meu Furriel. Parece que está com medo.

Cruzámos com malta de outra(s) Companhia(s) e, então, a algazarra parecia a do reencontro dos ciganos na Feira de Espinho, às Segundas de manhã. A dada altura até se perguntava em voz alta:

- Onde está o Alferes tal? Está aqui fulano do Curso de Vendas Novas?

Mais uma horita de progressão e muitas reclamações, eis que se parou, para descanso. Uns instalaram-se logo nesse local e outros foram-se deslocando, à procura de uma sombra das poucas árvores e muitos arbustos. E como se amontoavam, procurei afastar um pouco o nosso Pelotão para a direita e mais para norte. Assistiu-se então ao barulho típico de um pic-nic. Só faltou ouvir-se perguntar pelo presunto e pelo garrafão do “binho berde”. Todos, ou quase todos, estavam de tronco nu, sendo de salientar um alferes que até as calças tirou. As armas encostadas (quase) à balda e as roupas, a enxugar do suor, penduradas nos arbustos, ao sol, transmitiam uma imagem de verdadeira paz e alegria que nem na "Aldeia da Roupa Branca". Digamos até, que com um Cimbalino e um cheirinho a pingar, ficaríamos por ali umas horitas em alegre convívio.

Tudo bem… seria uma maravilha se a guerra fosse assim. Mas (lá vem sempre o filho da puta do “mas”), quando menos se esperava, inicia-se um tiroteio tão perto de nós e a envolver-nos, que parecia que nos estavam já a apanhar à mão, ao mesmo tempo que se ouviam alguns gritos de Colonialistas, Filhos da puta, Salazaristas, fora daqui, ide para Lisboa.

Estávamos todos desprevenidos (alguns dormiam a sesta). Recordo que foram relativamente poucos os que responderam de imediato ao fogo, mas estou seguro que foram esses que, sem pararem, utilizando as armas e munições que apanhavam, evitaram o assalto. A confusão era geral, os gritos permanentes; uns de joelhos pediam a Deus, à querida Mãezinha e ao Senhor Santo Cristo, para lhes valer e outros à Senhora da Saúde e à Nossa Senhora de Fátima. Muitos, desorientados, nem sabiam onde tinham a arma, outros não eram capazes de a apontar e, ainda outros, descarregavam os cartuchos com a arma virada para o céu. E os que estavam perto de uma árvore maior, furavam por baixo dos colegas, amontoados, para ficarem por debaixo, provocando a subida dos outros que, ao verem-se, de novo, por cima, repetiam a operação. Enquanto isso, o “valentão da Lixa”, agarrado ao tubo do morteiro 60, desesperado, sem prato, sem granadas e sem saber o que fazer, gritava:

- Ai querida mãezinha que vamos morrer aqui todos - e pedia, também em voz alta, o apoio da Nossa Senhora de Fátima, com quem, seguramente, havia firmado o contrato do feliz regresso…

Claro que pouco a pouco, todos foram reagindo e assumindo o controlo da situação. Não morreu ninguém, nem sequer houve feridos nesse embate (aparte algumas pequenas escoriações e queimadelas com as armas mais utilizadas). Alguém estava a apontar, por engano, para os nossos camuflados pendurados nos arbustos, porque o dólmen do furriel Cepa tinha 11 (onze!) buracos.

Na mesma operação houve outros embates mas, aí já não eram os mesmos periquitos a reagir. Antes pelo contrário, graças à aflição do Baptismo de Fogo, iniciou-se ali um comportamento responsável e eficaz, que nos acompanhou por toda a comissão de serviço, tendo a Cart 1689 alcançado a Flâmula de Honra em Ouro do CTIG e um prestígio que nos acompanhou até ao fim da comissão.

Silva da Cart 1689
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6951: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): O Miranda e a sua adoração pelo Fê Cê Pê

Vd. último poste da série de 3 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6926: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (2): Alferes do QP Henrique Ferreira de Almeida da CART 1689 / BART 1913

6 comentários:

António Miranda disse...

Parece-me que ao escrever esta "festa" o Furriel Silva, ou "isca para os amigos, terá andado de mais com a História da Companhia. O "Baptismo de Fogo" foi muito mais cedo e sem aquele historial todo. O Isca, às vezes, emgana-se, que A senhora de Gervide lhe perdoe. Mas, de qualquer forma, estou com ele. Força, e mais histórias e um pouco mais de verdade. Inté. Furriel (ex) Miranda.

Anónimo disse...

Caro José Ferreira da Silva,

Ou estou errado, mas parece que pertencias à Companhia do Homem Grande Alferes Alberto Branquinho, que tem escrito maravilhas aqui na Tabanca Grande.

Um abraço,

Mário Fitas

Hélder Valério disse...

Caro camarada Ferreira da Silva

Este teu relato vem mais uma vez demonstrar quanto importante é a disciplina, sejam quais forem as circunstâncias.

Por outro lado é também interessante ver assim, em letra de forma, as 'certezas' que eram incutidas nos espíritos da rapaziada...

Um abraço
Hélder S.

Hélder Valério disse...

Caro camarada Ferreira da Silva

Este teu relato vem mais uma vez demonstrar quanto importante é a disciplina, sejam quais forem as circunstâncias.

Por outro lado é também interessante ver assim, em letra de forma, as 'certezas' que eram incutidas nos espíritos da rapaziada...

Um abraço
Hélder S.

Silva da Cart 1689 disse...

Caro Miranda
Obrigado por apareceres.
A história do Baptismo de fogo está de acordo como a vivi. O que presenciei diz respeito à malta do meu pelotão e ao do Alf. Freitas. Os outros, onde poderias estar, não estavam ao meu alcance visual. Pelo menos estes confirmam basicamente a história. Tínhamos pouco mais de 5 semanas de solo guineense.
Se consultares a história oficial da Cart 1689, também podes certificar-te do combate e das datas. Penso que podes estar confundindo este confronto com outros que se verificaram a seguir.
Todavia, tens todo o direito de me desenganares. Para isso, terás que relatar o tal Baptismo de fogo que não este. Mas não esqueças que eu estava lá, porque até Gandembel, não falhei uma sequer.
E toma nota que a minha história poderá não ser a tua e serem ambas verdadeiras.
Entretanto, já vai sendo tempo de esqueceres o nosso fracasso com as gajas de Gervide. Olha que hoje devem ser umas respeitáveis avozinhas, de moral muito acima da tal Senhora do Papa, que tu tanto adoras.
Um grande abraço do
Silva

Silva da Cart 1689 disse...

Caro Mario Fitas

Sim, é verdade, sou da mesma Companhia do Alferes Branquinho.E, embora não sendo do seu pelotão, sempre tivemos um óptimo relacionamento (quem o não teve?). Ele era o Alferes da Cart 1689. O tal que convivia connosco sempre que tinha oportunidade. Tivemos dias inesquecíveis e incontáveis.
Ainda hoje somos amigos, apesar das distâncias quilométricas. Foi ele que insistiu para eu vos fazer companhia. Ainda bem.

Um Abraço do
Silva