1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 21 de Dezembro de 2010:
Caros Editores
Vai direito ao Carlos Vinhal, ao Blogue certamente e se apanhar o Luís Graça que a ciática, estúpida dor, o deixe de atormentar.
Por isso, pelos meus tormentos do passado, sentei-me e escrevi. Devia ter revisto melhor Mas é Natal e lembrei-me de algo que me atormentou e, porque não, de algo que me foi querido e no Natal seguinte de mim desapareceu.
Vamos perdendo e ganhando neste passar pela vida.
Um Bom Natal para Vocês, para a Familiar e para Todos, crentes ou não desde que sejam Homens de Boa Vontade, de Dádiva e Amor ao Próximo.
Fazem disto o que entenderem é vosso e vosso também é um abração que vos envio,
Torcato
A Casa da Praia
O copo rolava entre os dedos, atravessado pelo olhar a perder - se logo ali ou a projectar-se longe, muito longe, de onde só parte dele voltara.
Para lá voa o pensamento e isso tornava o olhar amortecido, baço, amarrotado.
Buscava o quê e porquê? Por nada? Por uma desejada aquietação, uma adaptação a esta nova realidade diferente e incómoda.
Por estranho que lhe parecesse era o seu mundo. O mundo do seu viver de outrora. Certamente não tinha ficado estático, certa e naturalmente avançara, como na canção - …pulara e avançara como bola… ele não. Por isso ali estava, parado, preso ao breve momento, ao rolar do copo, aos mil pensamentos a irem e virem, tentando aos poucos, sair daquele torpor e caminhar por um novo trilho. Qual?
-Dás-me um cigarro?
Sobressaltou-se e olhou-a. Cabelos negros caídos, olhar amendoado, sorriso leve a sair de uma boca de desejo.
Mal esboçou o gesto de se levantar. Viu-a sentar e sorrir em espera do pedido feito.
- Dá duas ou três fumaças antes. Não gosto do sabor a gasolina do “Zippo”.
Falaram um pouco e pediu para ele a acompanhar à casa da praia.
Já no carro olhava a imensa planície, a charneca, as árvores e, até sobre isso fazia comparações, até nisso estabelecia a diferença com as bolanhas.
- Dá-me outro cigarro e diz-me porque vais tão calado. Estás sempre ausente. De quando em vez pareces desaparecer. Estás diferente, tão diferente
- Observo só e já vejo o mar. Não vale a pena fumares a esta velocidade.
A aldeia apareceu ao fim da recta, numa visão de quietude, casas brancas ladearem a estrada que, aos poucos, se tornara rua.
Sentiu um pouco de frio ao descerem do carro. O cheiro da brisa marítima e o som ritmado da ondulação forte adocicavam o ambiente e acalmavam-no.
Enlaçou-a pela cintura e sentiu o ligeiro estremecer.
- Tens frio?
- Um pouco. Vamos já a casa e depois ao café. Deves querer comer perceves. Tenho uma proposta a fazer-te: porque não passas uns dias aqui, na casa da praia? Fazia-te bem. Pensavas, estavas junto ao mar, eu vinha cá uma ou outra vez. Depois do Natal claro.
Nada disse e nem quis entrar. De facto, talvez ali se encontrasse melhor com ele. Depois do Natal, claro. Este ano iria passá-lo com a família.
O ano anterior passara-o com outra família, o pessoal da CART 2339. Recordava os rostos de seus camaradas, expressões de alheamento ao que se passava em redor, pensamentos a irem para junto de seus familiares. Faziam, mesmo assim, tentativas de ali fazerem Natal. Apareceu bacalhau, talvez liofilizado, batatas e outras imitações para enganarem mentes e paladares.
Natal a quarenta graus, mas era Natal.
Recordava-se de se sentir mais atento, besta militar que era e, por isso mesmo, atento a um possível ataque a Mansambo. Eles estavam logo ali e nada tinham a ver com o Natal ou com a vida deles.
Outrora ou agora era ilha, era um homem só, um sujeito, quer lá ou cá, deslocado, em grande parte, de si.
Houve jantar e alegria em Mansambo, meninos sem prendas, meninos homens de rostos fechados em sorrisos forçados, ali e, todos eles iam muito mais para além, para junto de outros que amavam e a brutalidade imposta não apagara.
Esses outros, estando nesse além para onde parte deles ia, certamente neles pensavam e, porque não, alguma lágrima furtiva pelas caras rolara.
Eles não. A maioria, quase a totalidade, secara as lágrimas há muito. Natal no mato, na mata, naquele lugar erguido por eles e transformado em aquartelamento, em lugar de viver, de lutar. Lugar a muito e a nada dizer.
Sentiu o leve toque dela e disse-lhe de pronto.
- Aceito. Depois do Natal venho até cá uns dias Só. Eu e o ruído do mar podemos encontrar um caminho. Espero que não o das caravelas.
- Pensas voltar? É isso que queres? Ainda?
- Irei pensar e certamente encontrar-me melhor. Percebes?
Porque não vamos á procura de perceves ou de uma sapateira…?
Hoje, quarenta anos depois, recorda ainda quanto foi difícil adaptar-se à vida civil… tanto tempo, tantos Natais depois de só um por lá passado.
Quase Natal de 2010
__________
Notas do Editor:
(*) Vd. poste de 14 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7435: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (26): Siga a Marinha (Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7503: Blogoterapia (169): Para quando um Soldado Deconhecido das últimas guerras de África? (José Belo)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Caro 'camarigo' Torcato
Esta tua 'história de Natal' é bem reveladora da dificuldade de (re)adaptação por que passaste. E olha que ainda hoje em dia...
É também, para além do mais, uma belíssima história. Com sentimento, com 'alma', com interrogações.
Abraços
Hélder S.
olá Amigo Torcato Mendonça!
Com que então, em mais um Natal das nossas vidas, o Sr. recorda... um tempo que não esquece!
Difícil, ou mesmo impossível, esquecer o passado, seja ele, bom ou mau!
Mas, é evidente a sua ligação a esse tempo, que tenho a certeza, lhe trás boas e más recordações.
Gostei da história, solta, esclarecedora,evidenciando o seu grau de ligação a um passado "presente".
É assim meu amigo!
Não se passa impunemente por uma experiência dessas.
Mas...mantenha-o à distância a que se encontra!
Um Abraço fraterno da amiga
Felismina Costa
Viva Torcato!
Tuas palavras... brisa sentida, de um pensamento ondolante nos trigais da planície!
Sim lá nesse Natal de Massambo a ondolação era de capim aspero e cortante.
O que aqui tão profundamente transcreves, é um Natal consequente de vivência machucada pelo passado.
Bonito!
Como eu gosto de ler e procurar a beleza escondida, nas palavras que roubas ao pensamento.
Obrigado meu amigo, por este tão belo e sentido naco de escrita.
Sonha!... Com essa bola colorida que ninguém nos rouba.
Hoje! Sumula de alguns Natais que se foram, que seja a esperança de sempre um Natal melhor.
Um abraço do tamanho da Planície!
Mário Fitas
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