Camarada Carlos Vinhal:
Na sequência das minhas memórias de guerra, cujos textos te tenho enviado, e já publicados no blogue, não me podia esquecer das nossas dedicadas madrinhas de guerra.
Em anexo envio-te um simples texto que escrevi em sua homenagem, com o título em epígrafe, ilustrado com algumas fotografias.
Ali está bem patente a adversidade a que estávamos votados em terras da Guiné:
-O isolamento no interior do mato, lá no fim do mundo;
-O rigor do clima, ora o calor, ora as chuvas, a poeira vermelha, a chaga dos mosquitos;
-O suplício da guerra, que nos fez regressar sem a companhia de alguns dos nossos camaradas menos afortunados;
Também ali é notória a magia de uma carta ou de um aerograma, o célebre "bate estradas", o único meio de comunicação com os familiares, amigos, namoradas e as nossas madrinhas de guerra.
Na altura não havia telemóveis nem internete.
Um abraço
Manuel Sousa
AVÉ-MARIA DO SOLDADO
Jumbembém, 12 de Março de 1973
Dedicada madrinha:
Acabou de chegar um helicóptero a este fim de mundo.
O “pombo-correio” que trouxe no bico as sempre esperadas mensagens para todos nós militares, aqui neste cativeiro de guerra, no meio do nada. Melhor dizendo, no meio do mato, onde o calor intenso, a poeira vermelha, as tempestades tropicais e as ferradas de enxames de mosquitos já pouco incomodam, comparando com o silvo das balas, o troar dos canhões e morteiros, o metralhar da “costureirinha” e o cheiro a pólvora queimada, em dias de “festa” cá em Jumbembém e arredores.
Uma dessas mensagens era a sua para mim desejada carta, a que estou a responder através deste meu “bate-estradas”, cujas linhas os meus olhos percorreram avidamente, como sedento no deserto à procura de uma gota de água, bebendo as suas palavras uma a uma, que me transmitiram, bem haja por isso, esperança e coragem para melhor suportar estes momentos tão difíceis, neste meio hostil, longe de familiares e amigos.
Fixei-me demoradamente a contemplar o bonito sorriso do seu rosto, patente na fotografia que teve a amabilidade de me enviar, como que deslumbrado e encantado pela sua beleza e, particularmente, pela brancura da sua tez, já que há tanto tempo não via uma mulher branca e tão bonita.
Aqui as bajudas (raparigas), sendo algumas também bonitas, a cor da sua pele, como sabe, é diferente…, fazem parte de outra cultura.
Vejo em si a minha confidente, imagino-a até como a minha “Nossa Senhora”que me ampara, e, como tal, veja nesta minha missiva uma prece, uma oração, uma avé-maria deste soldado, para que continue a conceder-me a graça da sua simpatia e do seu conforto.
Termino, agradecendo-lhe esse seu gesto altruísta, de dispensar parte do seu tempo a confortar este simples soldado que sou, ao serviço da Pátria. Com as suas palavras, creia, neste quotidiano de guerra, - o perigo que espreita por entre o capim, por de trás de cada árvore, sob o chão das picadas - sentir-me-ei mais confiante, mais seguro, mais afoito, do que com a própria espingarda que tenho por companheira.
Adeus, até à volta do correio.
Manuel Luís Rodrigues Sousa
Na sequência das minhas memórias de guerra que tenho vindo a escrever, era inevitável não fazer referência às nossas simpáticas, dedicadas e altruístas madrinhas de guerra.
Como forma de as homenagear, escrevi esta carta, com data fictícia, a data do meu aniversário, tentando reconstituir, o mais fiel possível, aquilo que um dia escrevi para uma das minhas madrinhas, no decorrer dos anos de 1973 e 1974.
No fundo, condensei nesta carta as centenas de missivas que lhes dirigi, de tal forma “eloquentes” e de caligrafia aprimorada, modéstia à parte, mas elas é que o diziam, que não acreditavam que eu tivesse como habilitações literárias apenas a 4.ª classe.
Aliás, esses dotes eram-me também reconhecidos pelos meus camaradas de Pelotão, a ponto de, ainda hoje, aquando dos convívios anuais, eles me lembrarem dessa perfeição com que escrevia.
Um desses colegas, sabendo desses meus atributos, sugeriu-me para escrever a uma rapariga sua vizinha, em Castro D’Aire, uma beldade lá da terra, segundo ele dizia, mas prevenindo-me de que ela era “estudanta” e que, por isso, não ligava a qualquer um.
Sobranceria, talvez, que existia naquela época por parte dos estudantes, em relação aos menos letrados, ou, ao invés, o complexo de inferioridade por parte destes, em relação àqueles.
Aceitei a sugestão.
Escrevi-lhe, e, para admiração do Salvador Rodrigues da Costa, desse meu colega, a “estudanta” respondeu.
Foi mais uma simpática e dedicada madrinha de guerra, com quem tive o prazer de me corresponder.
Além das madrinhas de guerra com quem me correspondia, tinha uma forma peculiar de arranjar sempre mais uma.
Nunca eram de mais.
Escrevia um aerograma, o célebre “bate estradas”, com uma simples apresentação de quem eu era e fazendo o convite para o efeito.
Endereçava-o para determinada localidade da Metrópole, com a seguinte mensagem no exterior:
“Para a menina que se dignar corresponder-se, como madrinha de guerra, com um soldado em serviço no ultramar”
Utilizando a terminologia da pesca, o “isco” estava lançado.
Muitas vezes o “anzol” veio sem nada, ou seja, os “bate-estradas” tiveram como destino certo o caixote do lixo.
Outras vezes tinha mais sorte.
A mensagem era acolhida e iniciava-se então a troca de correspondência com mais uma das minhas confidentes, culminando algumas vezes com a troca de tórridas cartas de amor.
No final da comissão, aquando do regresso, desfiz-me do volumoso maço da correspondência trocada com as madrinhas de guerra, e não só, por falta de espaço na mala (hoje seriam uma relíquia).
Recentemente, ao fazer arrumações no sótão cá de casa, encontrei numa bolsa dessa mesma e já carcomida mala, uma pequena carteira em plástico, ressequida pelo tempo, com o desenho do crachá do Batalhão 4512, “Os Setas”, a que eu pertencia.
Já não me lembrava daquele objecto, recordando-me então que aquela mesma carteira tinha sido oferecida pelo Batalhão a todos os militares em Tomar, aquando da partida para a Guiné.
No seu interior, numa pequena bolsa, encontrei a fotografia de uma jovem que reconheci como uma das minhas madrinhas de guerra, há 38 anos atrás, de cuja naturalidade não me recordo.
No verso tem a dedicatória: “Com muita dedicação da madrinha sempre amiga Isabel”, e tem a indicação de que foi revelada na FOTO CRISTO.
A velha carteira onde se encontrava esta fotografia, de uma das minhas bonitas madrinhas de guerra!
Verso da fotografia com a dedicatória.
Foi este achado que me levou a mais rapidamente prestar esta homenagem a todas as madrinhas de guerra, personificadas por esta jovem, hoje aproximadamente da minha idade, cuja fotografia, para o efeito, faço questão de inserir neste texto.
Como dizia no final da carta, as suas palavras produziam em nós mais confiança e mais segurança do que as próprias armas com que calcorreávamos os trilhos da mata e as picadas.
Eram a nossa arma secreta.
Assim, para todas elas, as madrinhas de guerra de Portugal, e em particular para aquelas com quem directamente me correspondi, inclusive a Isabel, como reconhecimento da estima e dedicação que nos dispensaram, tão importantes para o levantamento da moral e auto-estima de todos nós, escrevi esta carta como forma de, em meu nome pessoal e de todos os ex-combatentes, lhes prestar a mais sincera homenagem.
Maio de 2011
Manuel Sousa
Até breve
(Reeditado em Outubro de 2011-10-14)
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 6 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8233: Blogpoesia (147): Senhora Aparecida, freguesia de Torno, concelho de Lousada (Manuel Sousa)
Vd. postes relacionados com a nossas Madrinhas de guerra de:
22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2572: As Nossas Madrinhas de Guerra (4): Madrinhas de Guerra (II) (José Teixeira)
23 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3348: Tabanca Grande (93): José Pinho da Costa, ex-1.º Cabo Op Mensagens da CCS/BART 1914, Guiné, 1967/69
16 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6746: Tabanca Grande (230): Felismina Costa, madrinha de guerra de Hélder Martins de Matos, ex-1.º Cabo Escriturário, Bafatá, 1963/64
6 comentários:
Não sei, porque não tive, o que era uma madrinha de guerra.
Sei, pelo do que apercebi naquele tempo, e agora, da importância, não só para os militares mas, tambem para as jovens que, num tempo bastante dificil devido à cultura costumes da época, dedicavam o seu tempo à escrita, mas de cartas a quem, lá longe e desconhecido, lutava pela Pátria.
Essas meninas, hoje avós como nós, foram um baluarte e um suporte daqueles que procuravam “... a menina que se dignar corresponder-se, como madrinha de guerra, com um soldado em serviço no ultramar” são credoras de todo o nosso apreço e estima, como diz Marta Pessoa no seu filme "Quem vai à guerra".
A comparação que fazes "Vejo em si a minha confidente, imagino-a até como a minha “Nossa Senhora”que me ampara, e, como tal, veja nesta minha missiva uma prece, uma oração, uma avé-maria deste soldado, para que continue a conceder-me a graça da sua simpatia e do seu conforto", é sublime.
Caro Manuel Sousa
É muito gratificante, mesmo tanto tempo depois, saber que as minhas/nossas palavras, tiveram algum efeito positivo na vossa moral de soldados, em situação de guerra.
Sei, sem sombra de dúvidas, que era esse o objectivo pretendido.
Vivemos convosco aquele tempo, muito mais do que possam supor.
Havia uma preocupação constante, um saber que a situação era má, muito má e, de vez enquando, a notícia de baixas. Era aterrador, pois todos nós nos lembramos, que, quando jovens, a morte é algo que soa a velho: natural, seria morrer de velho e nunca na flor da idade.
Por isso, minimizar a ausência do seio familiar, escrevendo cartas aos jovens na guerra, foi considerado um dever palas jovens do nosso tempo, em que me incluo.
Obrigada Manuel Sousa, por ter sentido a mensagem, creio ter sido opinião da maioria.
Aceite um abraço fraterno.
Felismina Costa
Caro camarigo Manuel Sousa
Também eu, à semelhança do que disse o JMMartins, não tive 'madrinha de guerra', mas por não achar necessário. Tinha outras pessoas com quem trocava correspondência e as minhas preocupações eram mais de outra ordem que não as que advinham do conforto dessas palavras amigas.
No entanto não deixo de reconhecer o papel importante que tiveram para manter algum equilíbrio emocional e de contributo para o ânimo e moral de muitos dos nossos camaradas, naquele tempo e acho também que este teu texto é uma excelente homenagem a essas mulheres que viveram assim a seu modo, os nossos tempos de guerra.
Abraço
Hélder S.
Gostei muito deste teu trabalho, camarada Manuel Sousa,esta espécie de homenagem ao "bate-estradas" que, devido à sua gratuitidade, facilitou a frequência dos contactos com o outro "mundo" que tantas saudades nos provocava.
Um abraço
As madrinhas de guerra eram um escape para ajudar a passar os tempos da Guerra.
Mas muitas delas era a amizade, admiração que sentíamos por certa jovem dos nossos conhecimentos, por esse motivo uma grande percentagem tiveram um final feliz.
O casamento com o afilhado.
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