Ni, Mansoa, 1973/74
Aproveitando o desafio do nosso camarada Carlos Vinhal, vou então fazer aqui a descrição possível de como foi a vida da minha mulher (com e) na Guerra. Para além disso aproveito assim para lhe fazer uma merecida homenagem, porque foi necessário que ela tivesse muita coragem, abnegação, amor e também uma boa dose de aventureirismo, para tomar a atitude que tomou, ao se juntar a mim na Guiné, em pleno período de guerra e até na altura em que tudo começava a parecer caminhar para o abismo.
Quando informei o meu Comando da minha pretensão de chamar para junto de mim a minha mulher e meu filho Miguel de dois anos, fui desaconselhado.
Eu era um pouco rebelde e em todo aquele cenário de guerra a coisa que mais me custava era o afastamento da família, já que todas as outras dificuldades, bem conhecidas de todos nós, eram como de costume superadas, ora com umas pielas, ora com umas chatices com os superiores hieráticos, etc.
Para a falta da mulher e filho é que não havia nada que apaziguasse.
Ultrapassadas as desmotivações, há que passar à acção para concretizar o nosso desejo (meu e da minha mulher). Após as combinações telefónicas e escritas, marca-se a data para o encontro que virá a acontecer em finais de Setembro de 1973.
A família de Henrique Cerqueira, durante a "Operação ao Biambe"
Há aqui que acrescentar, que esta decisão envolve um camarada e amigo meu que foi o Alferes Santos que estava também na CCAÇ 13 em Bissorã, e que já tinha estado comigo no Biambe, porque ambos pertencíamos ao BCAÇ 4610/72. De certo modo tínhamos em comum a maluqueira instalada nos nossos cérebros e pelos vistos ele foi mais maluco que eu, porque veio de férias à Metrópole, de propósito, para casar e como Núpcias ofereceu à sua novíssima esposa uma bela estadia em Bissorã, recheada de aventuras, tais como paludismo, mosquitos, osgas e até Guerra ao Vivo, mais à frente eu explico.
O "operacional" Nuno Miguel no intervalo da "Operação ao Biambe"
Mas voltando à minha Mulher de Guerra. Antes de historiar, vou começar por apresentá-la, pois que se publicares esta história, acho justo que conste o seu nome assim como o de meu filho. É que queira ou não, a minha MULHER DE GUERRA para além de todo o apoio sentimental que me proporcionou, fez história comigo porque passou por ter de enfrentar penosas viagens, instalações precárias, alimentação deficiente, mosquitos e dois ataques directos à nossa povoação, um dos quais com mísseis.
Ficou no entanto altamente enriquecida com o contacto que teve com as populações da Guiné e suas etnias, como libaneses e caboverdianos. Formámos uma amizade razoável com uma família libanesa e com o casal Administrador de Bissorã que eram de Cabo Verde.
NI e Nuno Miguel confraternizam com tropas do Biambe
O que mais me marcou tem a ver com os factos por mim já narrados no nosso Blogue, quando nos foi pedido que contássemos uma História de Natal e nessa eu tive o apoio incondicional da minha Mulher de Guerra. Quando tomei a decisão já narrada eu esperava que fosse enviado (recambiado) para a fronteira de castigo pelo atrevimento que tive de enfrentar o poder instalado, mas vá lá que os rapazes não foram mauzinhos e perdoaram cá o menino que nunca teve o espírito militar de que o meu respeitável Comandante me acusou, em direito de resposta, ao dito artigo de Natal.
A minha mulher manteve-se junto de mim, e mais uma vez faz história, ao sofrer um ataque no dia 31 de Dezembro de 1973 enquanto eu estava de prevenção, já que tínhamos ameaça de porrada o que veio a acontecer e ela cumpriu integralmente com as instruções por mim administradas. Enfiou-se no abrigo com o nosso filho mais o casal Santos e Zinha, enquanto eu andava como uma barata tonta a tentar organizar uma saída com o meu Grupo de Combate. Não esquecer da história de Natal, é que nesta altura cá o rapaz estava mal visto, só que continuava sendo um dos graduados daquele grupo que por acaso até estava de prevenção para um possível ataque. Enfim coisas que vida arranja, não é?
Mas íamos na barata tonta, ou seja baratas tontas, pois que passado o susto inicial era ver heróis a correr até ao arame, até Panhares foram ao arame. No entanto o meu Grupo saiu para o mato se bem que reforçado por mais pessoal da CCAÇ 13. Isto foi só um parêntesis, não resisti a uma provocaçãozinha, é que ainda dói.
A Ni na ponte da outra banda em Bissorã
A minha MULHER DE GUERRA ainda viveu mais umas histórias giras, tais como mais um ataque de mísseis e uma guerrita entre mim e o Comandante de Batalhão, por causa de um Furriel Guinéu que tinha o mau gosto de ser racista, isto já depois do 25 de Abril. A verdade é que ela também viveu lá essa data histórica e até teve o previlégio de, no dia em que eu tive o primeiro encontro com o PAIGC, durante uma picagem para o Olossato, em dia de reabastecimento, assistir a este encontro. Mais uma vez era cá o rapaz o protagonista e único graduado no primeiro contacto, após Abril e fim da guerra, teria mesmo de ser o menino mal visto. Está sempre em todas, olha se tivesse espírito militar!!!!)
A minha mulher foi depois comigo até ao ponto de encontro para confraternizar com o pessoal do PAIGC nesse memorável dia. Semanas mais tarde foi comigo passar um Domingo ao Biambe com os meus antigos Camaradas, mas isso dará outra história.
Bom, isto está mesmo a ficar longo e ainda não apresentei a minha MULHER DE GUERRA por tanto lá vai:
Nome de Guerra - NI
Nome próprio - MARIA DULCINEA ROCHA
Filho - MIGUEL NUNO, que tinha dois anos na altura
Embarcaram na TAP em finais de Setembro de 1973 até Bissau, de seguida seguiram comigo no interior de uma ambulância do Exército até Bissorã. Regressaram à Metrópole em 29 de Junho de 1974 tendo eu regressado em finais de Julho de 1974.
Carlos Vinhal tiveste um pouco de culpa por lançares este desafio, é que vieste lembrar algo que recordo com muito agrado e até dá vontade de escrever tintim por tintim, daí tanta escrita.
Envio algumas fotos da minha MULHER DE GUERRA em acção no Teatro de Guerra em Bissorã, Guiné, ano de 1973/1974.
Um abraço Carlos e restantes Tertulianos
Henrique Cerqueira
2. Comentário de CV:
É com grande alegria que hoje fazemos justiça ao integrarmos como nossa tertuliana uma mulher que deixou o conforto de sua casa, e acompanhada pelo seu rebento de 2 anos, se meteu a caminho da desconhecida Bissorã, algures no interior da Guiné, em guerra, para se juntar ao marido.
Estamos a falar da NI, a partir de hoje com direito a figurar na listagem do lado esquerdo da nossa página, entre os ex-combatentes e amigos do Blogue, onde se encontra a nossa amiga Regina que também visitou e viveu com o seu marido, Fernando Gouveia, em Bafatá.
Não podemos deixar de salientar o modo como o Henrique trata a sua esposa, a minha mulher de guerra.
Sendo assim, cara NI, bem-vinda à nossa caserna virtual e ao nosso Blogue que está disponível para receber a narrativa das suas aventuras passadas em Bissorã e Biambe, ali bem pertinho do Morés, famosa estância de férias da Guiné dos anos 60 e 70. Também andei por lá, sei do falo.
Cara amiga NI, a tertúlia recebe-a com um abraço.
Carlos Vinhal
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3779: As nossas mulheres (7): Ni, uma combatente em Bissorã (1973/74) (Henrique Cerqueira)
Vd. último poste da série de 14 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8275: Tabanca Grande (282): Joaquim Rodero, ex-Fur Mil TRMS (STM/QG, 1970/72)
3 comentários:
Cara NI
Bem vinda "a terra" não a bordo, que muitos de nós não são marinheiros (mas metemos muita água).
Apesar da minha noiva ter insistido para casar e seguir comigo, não o consenti. Portanto ficou por cá.
Agora, com uma plateia masculina, maioritária, ficamos à espera de histórias vista no feminino.
Será interessante saber e obter o ponto de vista, de um "outro ângulo".
Saudações
Caros camaradas
Caríssima NI
Foi de facto um acto de grande coragem, esse de ir até ao 'coração' da Guiné, em tempo de guerra. Haverá quem possa dizer que também, dada a presença duma criança de tenra idade, houve alguma dose de irresponsabilidade.
Hoje por hoje, uma discussão à procura das motivações não tem qualquer relevância. Factos são factos e têm essa característica incortornável, são 'teimosos' e o facto é que a NI esteve lá, conviveu, confraternizou, 'bebeu água da bolanha', no sentido de ter ganho aquele apego à terra e às gentes, sentiu o medo, sentiu o que é estar a ser bombardeada, estar debaixo de fogo, enfim, cresceu.
Hoje, a esta distância, permito-me felicitar os então jovens esposos pela decisão tomada e por isso saudar a cooptação da NI para esta 'família', engrossando a coluna dos familiares e amigos.
Se for permitido, um abraço!
Hélder S.
Uma parte dos testemunhos femininos recolhidos por Marta Pessoa no seu filme "Quem Vai à Guerra" (em ante-estreia no dia dia 13 do corrente, em Lisba) diz respeito à "pequena aventura" das que acompanharam os maridos, nas suas comissões militares em África, no período da guerra colonial (1961/74).
A Maria Dulcineia Rocha fica desde já convidada para partilhar connosco, em primeira mão, as suas recordações de Bissorã... E, já agora, não perca o filme (documentário) da Marta Pessoa que vai entrar no circuito comercial, no dia 16 de Junho próximo:
Lisboa, Cinema Cirty Classic Alvalade
Porto, Zone Lusomundo Mar Shoping
Aveiro, Zon Lusomundo Fórum Aveiro
http://www.realficcao.com/
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