Outras memórias da minha guerra (8)
O grande choque
A “grande cambança” Metrópole/guerra no Oio foi um choque enorme. Mesmo afastando aquelas anomalias ditas de preparação militar para a guerra, pois que, em pouquíssimos meses, se passou do gelo para o braseiro, da capacidade de resistência ao frio para a “resistência” ao calor, do conforto dos lares para o desconforto permanente da realidade militar (imposta), do afago das nossas queridas para a repulsa a novas conquistas. Sentimos, também, aquela diferença entre o “aprazível cruzeiro” Lisboa/Bissau e o passeio de 1 de Maio de Bissau para Bambadinca, onde fomos expulsos da embarcação a pontapé pelos “velhinhos” que aguardavam há 15 dias a nossa chegada para o seu feliz regresso.
Esses, mal nos vislumbraram no rio, ainda longe, começaram a gritar:
- O barco é nosso, o barco é nosso! Saiam daí periquitos .
Nós olhávamos para eles (alguns bem bebidos) a saltar, a cantar e a dançar e ficávamos ainda mais afectados negativamente. A gritaria aumentava à medida que nos aproximávamos. E logo que a lancha se aproximou da margem (esquerda) do Rio Geba, eles vieram, como malucos, lançados pelo ar e cairam em cima de nós. Alguns estavam tão descontrolados que não respeitavam ninguém e empurravam-nos borda fora, aos gritos contínuos de “fora daqui periquitos” e de “o barco é nosso”, para além de alguns cumprimentos insultuosos “à moda do Puerto”. E foi assim durante todo o tempo em que decorreu o desembarque.
Na barcaça subindo o Geba para Bambadinca (Machado, Silva e Faria)
Pouco tempo depois fomos despejados em Fá Mandinga, sem palavras e sem ânimo para reagir. Sentíamos um aperto tão grande nos corações que nos deixava (quase) imobilizados.
Os pensamentos eram incontáveis e metralhavam constantemente a cabeça. Sem experiência de tanta pressão, revia o passado recente como filmes entrecruzados uns nos outros, cheios de problemas pendentes sem solução à vista e um futuro de incertezas, sobrecarregado de prováveis fatalidades.
Fá > Sentado - Triste
Com o calor, não conseguia adormecer. Sentei-me no degrau de cimento à entrada dos quartos, respirei fundo algumas vezes, olhei para o céu de estrelado diferente e tentei baixar aquela pulsação de cavalo que não me largava há mais de uma semana. Procurei ordenar tudo dentro da minha cabeça, desde as “não despedidas” de casa e dos amigos e do adeus de Viana do Castelo. E, então, pensava: - Que grande filme!
Domingo, dia 23 de Abril de 1967.
Acreditei que o lisboeta Machado, que acabara o seu serviço de Sargento-de-Dia e porque não se iria ausentar, poderia aguentar o meu turno, iniciado às 8:00. Os meus amigos Bernardino e Isilda foram levar-me e aproveitamos para almoçar juntos no Restaurante Naval, ao lado da ponte Eiffel sobre o rio Lima. Os pais da minha futura mulher não autorizaram que ela me acompanhasse até Viana do Castelo. O Bernardino, aguardava a chamada para a tropa e ela esperava o seu namorado José Ribeiro (Inhecas), irmão do Bernardino, quase a regressar da Guiné, para casar no dia 6 de Maio. Faria um mês de férias. - Quando te encontrares com ele no dia 1, em Bissau, não te esqueças de lhe dizer que venha rapidamente – dizia ela – porque tenho muitas saudades dele.
José Ribeiro e namorada em Esmoriz, durante as férias de embarque para a Guiné (fim do verão 66). Eu seguiria para os Rangers
Fui ao quartel do Castelo da Barra, onde estávamos aquartelados, Estava tudo muito calmo e, segundo me disseram, o Machado não tinha lá estado, mas não sentiram a falta do Sargento-de-Dia. Estavam muito poucos militares no quartel, pois era do último Domingo na Metrópole. Fui para a casa da praça que havíamos alugado e fui preparando as minhas coisas, para os dias seguintes – os dois últimos em Viana do Castelo.
Segunda-feira, dia 24 de Abril de 1967
Fomo-nos reencontrando em casa e no quartel, à medida que o tempo passava. Seguimos para a Parada e reparamos que ninguém tinha arma, porque o quarteleiro ainda não tinha aparecido. Batemos à porta onde ele deveria estar, insistimos, insistimos até a rebentar. Estava enforcado, pendurado pelo cinto, amarrado aos ferros da cama superior do beliche, fardado, mas sem botas.
Como eu não tinha participado qualquer falta nas refeições ou na formatura do recolher, levei com um processo, que me trouxe algumas chatices.
Terça-feira, dia 25 de Abril de 1967
Já havia uns tempos que tínhamos (eu e mais alguns) sido promovidos a Furriel. Porém, como ninguém nos dizia nada, passei a andar sem as divisas de Cabo-Miliciano. Como estava a comandar o Pelotão na formatura geral, o Capitão notou essa pequena anomalia. À frente de toda a gente, obrigou-me a ir buscar a identificação da graduação militar. Como eu não pensava utilizá-las na guerra (“coisas” herdadas dos Rangers) também não as tinha comprado. Valeu-me o Sargento Bigodes, que me emprestou umas divisas de fundo negro, para logo aparecer promovido diante de toda a atenção da Companhia (o que também não agradou ao Cmdt).
O Capitão comandante da CCS, conhecido por “Ternicotim-Ternicotão”, fez-se de instrutor do processo do enforcado quarteleiro e veio chamar-me. Ninguém se faz pelas suas próprias mãos mas, para mim, um homem de metro e meio, nunca deveria sacrificar-se, voluntariamente, entregando-se ao ridículo entre tantos jovens de estatura normal e avessos à guerra. A dada altura, face às minhas incertezas sobre o suicídio, já me interrogava como se eu fosse o possível assassino. Como eu não correspondia à importância que ele desejava atribuir ao processo, chegou a dizer-me:
- Você é indigno do posto que ocupa nas nossas Forças Armadas!
Nunca mais liguei com essa coisa rara, chamada de “Ternicotim-Ternicotão”.
Tive ainda tempo para fazer algumas compras e ir buscar as fotos que tinha tirado num estúdio fotográfico, perto da nossa residência. Porque gostaram do trabalho, ampliaram a minha foto, encaixilharam-na e colocaram-na na montra. Digamos que me favoreceram de tal maneira, que nem parecia eu.
Foto que esteve em exposição na montra do fotógrafo de Viana do Castelo
Era grande a azafama, porque estava programado sairmos à meia-noite.
26 de Abril de 1967
Depois das respectivas chamadas e algumas esperas, deslocámo-nos para a Estação dos CF, onde nos esperava um comboio especial.
Penso que eram cerca de 2h30 quando o comboio arrancou lentamente, depois de uns apitos lancinantes que pareciam chamar-nos para a morte. Ouviam-se choros e gritos, misturados com a cadência crescente do ruído característico dos comboios. À nossa direita, víamos as pessoas nas varandas e janelas, em pijama, a acenar-nos num último adeus. Gostei muito de Viana do Castelo e esta imagem marcou-me sentimentalmente.
(No meu primeiro Domingo, após o regresso, fui com o meu maior amigo, o Inhecas, já tetraplégico, a Viana e corri tudo, inclusive o cume do monte que liga Sta. Luzia a Vila Praia de Ancora).
Cansado, já dormitava no comboio quando parámos em Campanhã. Ouviam-se gritos enormes de jovens, namoradas, mulheres e mães dos militares. Foram mais de 15 minutos para arrastar dos trilhos do comboio algumas dessas pessoas desesperadas. Mal me apercebi desse espectáculo horroroso, fechei os olhos e tapei os ouvidos, para suavizar tais memórias.
O resto da viagem, até Lisboa foi de um silêncio arrasador. Apenas o tac – tum , tac-tum, tac-tum, tac-tum… das rodas do comboio nos martelava a cabeça. Ao amanhecer assistiamos ao movimento das pessoas e viaturas mais ou menos automatizadas, que não reparavam, nem se apercebiam do nosso ingrato destino.
O navio Uíge estava perigosamente inclinado para o cais. Os militares colocaram-se todos do mesmo lado da embarcação, enquanto se ouvem os seus apitos agoirentos a anunciar a largada. Todos querem ver, pela última vez, as pessoas a acenar e a augurar-nos um bom regresso. Imagens dramáticas de tanta gente a gritar e a acenar o adeus, enquanto que outras desmaiavam ou desesperavam vendo os seus entes queridos a afastarem-se para irem para a guerra. Quase todos choravam e outros, como no meu caso e de alguns dos meus amigos, fazíamos tudo para que parecesse divertido. Porém, as lágrimas também não nos largavam.
Não demorou muito tempo e já estávamos sentadinhos à mesa a ser principescamente servidos. O pior foi que a malta não estava habituada ao baloiço do barco e logo havia enjoos e, uns a seguir aos outros, a correrem, de boca fechada, para as casas de banho. Depois, foram três ou quatro dias de lazer e de muita escrita amorosa. Lembro o Mariz, que havia prometido escrever todos os dias uma carta para a sua namorada, em Anadia.
Primeiro almoço no Uige > Rodrigues, Machado, Mariz, Valente, Miranda, Silva, Belmiro e Campos
Raiou o dia 1 de Maio de 1967. O barco parou longe do cais. O que se via era muito pouco e não se distinguiam bem as pessoas ou as coisas de menor dimensão. Apenas um aglomerado de casas baixas, misturadas com algumas árvores. Pensei que o meu amigo Inhecas, que vinha de férias para casar, lá estivesse à minha espera conforme havíamos combinado. Porém, não o vi, porque entrámos directamente do navio para uma embarcação, que nos levaria, pelo Rio Geba acima, para o interior, para Bambadinca.
- Que se passa, Silva? Estás bem? – Perguntou o Campos, Vagomestre da Companhia, que se aproximou, vindo de trás. Respondi-lhe:
- Sei lá. Estou tão atordoado e tão triste que não auguro nada de bom. Ao que ele respondeu:
- Eu também sinto um aperto que receio que me dê alguma coisa. Não me sai da cabeça a minha Rosita a despedir-se e a chorar lá em Viana. Também não me sai da cabeça aquela loucura dos gajos que nos esperavam. Fiquei sem nada, levaram-me os sacos. E ao Capitão, também levaram um. Voltei eu:
– Se me dissessem para eu regressar, ficaria louco de alegria, de certeza absoluta. Respondeu ele:
- Olha vamos ali ao depósito de géneros que há lá qualquer coisa fresca para nos acalmar. – E pondo-me a mão nas costas, concluiu: - Se um dia isto começar a correr mal, fugimos para a Bélgica, para junto do meu irmão, que já lá está à minha espera.
Silva da Cart 1689
Nota: Cinco dias depois, 6 de Maio de 1967 (dia anunciado para o seu casamento), quando recebi a primeira correspondência, fui informado que o meu maior amigo (José Ribeiro) havia levado um tiro na coluna, na noite de 29/30 e que fora evacuado para Lisboa.
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 9 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8393: Convívios (343): A CART 1689 comemorou os 44 anos da chegada à Guiné no dia 30 de Abril de 2011 na Póvoa de Varzim (José Ferreira da Silva)
Vd. último poste da série de 10 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8078: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): Operação Inquietar II - Manga de Ronco
2 comentários:
Pois, Silva
Lembro-me que o nosso capitão (agora general) tentou impor-se e por ordem nos palermas dos "velhinhos" que nos esperavam no cais de Bambadinca e não conseguiu.
E lembro-me, também, que, quando nos enfiaram, sem armas, directamente do Uíge para as embarcações com destino a Bambadinca, o nosso capitão me ter dito: - Nem pedras nos dão para atirarmos aos gajos...
Alberto Branquinho
Caro Camarada Silva. Aplaudo as tuas estórias de permanência na Guiné no tempo da guerra colonial. Tenho lido muitos livros sobre a guerra das três frentes - Angola, Moçambique e Guiné mas e sinceramente tu consegues com uma naturalidade tão grande e tão própria transmitir-nos tudo como se connosco estivesses a falar. Como já te disse várias vezes, essas estórias terão que ficar na História da Era Contemporânea para os nossos netos e não só, poderem um dia ler e reler.Avança Zé., porque tu sabes escrever como ninguém o consegue!
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