terça-feira, 20 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10699: Do Ninho D'Águia até África (28): A avioneta do correio (Tony Borié)

1. Vigésimo oitavo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, enviado em mensagem do dia 17 de Novembro de 2012:


Do Ninho D'Águia até África (28)

A avioneta



O Cifra, nas suas viagens de entrega de material classificado, que era o novo código do sistema de cifra, todos os meses renovado, e que era entregue por mão a todas as forças militares que se encontravam em cenário de guerra, sob o comando da unidade de que fazia parte, viaja agora, na avioneta do correio. Vai sentado atrás, ao lado dos sacos do correio. Costuma levar consigo, quase sempre uma Kodac, que o Movimento Nacional Feminino lhe ofereceu numa das suas visitas ao aquartelamento.

O piloto era um furriel, a quem carinhosamente chamavam “Pardal”, que todos conheciam no aquartelamento, pelas suas acrobacias. Iam aterrar numa povoação perto da fronteira com outro país africano, foto em baixo do marco da fronteira.


Voavam baixo, pois o “Pardal” conhecia a pista, que não era mais do que uma clareira no capim. Havia alguma água no solo, não se apercebeu, fez-se à pista e tentou aterrar. A roda esquerda do trem de aterragem ao tocar o solo molhado, desequilibrou a aeronave, que voou mais uns tantos metros, rodopia um pouco, para a direita e para a esquerda, seguindo de novo em frente, embora balançando para um lado e para o outro, mas ficando completamente parada e em segurança, um pouco mais à frente.

Por momentos o Cifra, fica como que paralisado e em pânico. Com o impacto do aparelho no solo, devia de ter dado umas cambalhotas dentro da aeronave, ou talvez não, nunca chegou a saber, pois não levava qualquer cinto de protecção. Recupera o seu sentido de orientação, apalpa a cabeça, com as mãos, não vê qualquer sinal de sangue, afasta um saco do correio de cima de si, bate com os pés, não se recorda se era janela ou porta, que estava em sua frente, com tal impacto, se era porta ou janela, abriu-se. Sai, olha para a frente, e vê o militar, que viajava na frente, sentado com a cabeça baixa, sinal de que talvez tivesse perdido os sentidos, abre a porta, e nesse momento o militar olha para o Cifra, assustado, fazendo algumas perguntas, parecendo estar em pânico.

O Cifra ajuda-o a sair e explica que tiveram um acidente. Do outro lado, no assento do piloto, “O Pardal”, que o Cifra nunca chegou a saber se perdeu o controlo da aeronave, ou o seu sentido de orientação, diz, com a maior calma do mundo:
- Qual acidente, qual caral..!. Vai à volta e abre esta merda, que estou farto de empurrar a porta.

Ninguém sofreu qualquer ferimento, a não ser o susto. No dizer do “Pardal”, a aeronave estava operacional. Em seguida, surgem alguns militares, que vinham prestar protecção e levar os sacos do correio. Ajudaram a colocar de novo a aeronave em outra posição, o Cifra, passou para o lugar da frente, levantou voo de novo usando um lado da clareira no capim, com bastante receio do Cifra, que passado pouco tempo, e perante os sorrisos do “Pardal”, aterraram em Mansoa, depois de fazer umas tantas acrobacias no ar, pois sempre que via uma árvore mais alta, dava uma volta a rasar em seu redor, fazendo a passarada fugir. Quando surgia um rio ou uma bolanha, passava a rasar a água, e sempre que fazia estas manobras, o Cifra agarrava-se com quanta força tinha à cadeira, e às vezes até fechava os olhos, e o “Pardal”, logo dizia:
- Está visto que não és um militar de acção.

O tal militar que viajava na frente, a quem o Cifra abriu a porta para sair, e pertencia à companhia local, ficou eterno amigo do Cifra, e sempre que passava no aquartelamento, bebiam um copo juntos, fazendo juramentos de que nunca diziam nada, do medo que na altura sentiram.

O Kodac das fotografias desapareceu, talvez fosse juntamente com os sacos do correio.
O Cifra gostava mesmo daquela máquina, era do tipo que para se tirar uma fotografia, tinha que se puxar uma pequena alavanca do lado do caixote.

(Fotos e Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10683: Do Ninho D'Águia até África (27): O perfume exótico das filhas do Libanês (Tony Borié)

6 comentários:

paulo santiago disse...

Tony
Aponta uma data para apresentares o livro aqui na nova Biblioteca Municipal,que ainda não deves conhecer.Eu peço a reserva da sala.
Há que anos não via essa designação "Kodac"para máquina fotográfica...
Abraço

JD disse...

Olha Tony,
Não sou receoso de viagens aéreas, qualquer que seja a aeronave. Mas vou contar uma que me causou algum cagaço.
Uma vez que cheguei a Bissau encontrei dois furriéis do leste, acho que do esquadrão nde Bafatá que destacava pessoal em Piche. Depois das celebrações, veio à conversa a chatice de prestar serviços em Bissau quando estávamos em trânsito para o mato. Pessoalmente isso nunca me afectou na capital, pois fui sempre clandestino e nunca fiquei em alojamentos militares.
Mas argumentou-se ainda qualquer coisa, talvez saudades de um restaurante no entroncamento para o Gabu e Bambadinca, e alugámos uma avioneta para nos levar à terra do ourives.
Eu seguia ao lado do piloto. Atrás os dois outros. A certa altura decidiram fumar, e depois da última passa, sem saberem o que fazer às beatas, um abriu a porta do meu lado para as deitar fora. O aparelho desequilibrou-se e o piloto resmungou. Tentei fechar a porta, mas havia pressões que me impediam. O piloto refilava e tentava equilibrar o voo, e dobrou-se sobre mim para fechar a porta.
Não o conseguiu. Novamente tentava equilibrar a avioneta, e já vociferava contra os três. Subiu, e desceu a pique, com a esperança de reduzir a pressão. Tentou fechar a porta novamente dobrado sobre mim. Eu estava a olhar de frente, e na vertical via as árvores a crescerem para nós.
Quando imaginava que estávamos no limite da manobra, dava-lhe murros para tomar conta do rumo. O piloto espumava raiva. A verdade é que ao fim de umas 3 ou 4 tentativas a porta fechou-se com grande alívio para nós. Os outros 2 passageiros não voltaram a piar, mas o ambiente era pesado. Quando a aeronave nos deixou na pista, alguém se dirigiu ao piloto para apresentar desculpas, ou despedidas, e a reacção dele foi qualquer coisa como, vão a um sítio e desapareçam da vista.
Um abraço
JD

Luís Graça disse...

O Pardal, tal como Honório, pertenceu à galeria dos gloriosos malucos das máquinas voadoras...

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Gloriosos%20Malucos%20das%20M%C3%A1quinas%20Voadoras

Torcato Mendonca disse...

Luís Graça, este Cap. Neto, amigo do Honório esteve no Cheche e na Lança Afiada (Agrupamento Norte). Veio para Portugal no Uíge em 4/Dez/69...eu vinha lá...

Ab T.

Tony Borie disse...

Olá camaradas, companheiros combatentes.
Obrigado pelos vossos simpáticos comentários.
Paulo, quando acontecer uma futura publicação, sem dúvida, que aceitarei do coração a tua gentil oferta, para mais na vila, de onde pertencia o vale do Ninho d'Águia, onde nasci.
JD, a tua aventura da avioneta, é muito mais excitante do que a minha, éramos jovens, mas eu ainda hoje lembro, e era como tu dizes, as árvores a aproximarem-se, e a serem cada vez maiores!.
Luis, o Pardal, se hoje pilotasse uma aeronave como aquela avioneta, concerteza que era seleccionado para fazer parte do grupo de pilotos especiais da NASA!. Uns anos atrás fui com o meu filho pescar ao Alasca, e o piloto que nos levou desde Anchorage, a um lugar quase deserto, ao norte de Fairbanks, apesar de ter uma aeronave bastante melhor, era um amador, comparado com o Pardal!.
Um forte abraço, Tony Borie.

Rogerio Cardoso disse...

Amigo Tony
Certa vez, estando eu em Mansôa e precisando de regressar a Bissorã, o Com.Brancamp Sobral virou-se para mim dizendo: Ó Cardoso, eu como tenho que ir a Bissorã, delinear uma operação, vens comigo no transporte aéreo, o que eu agradeci. Quando cheguei á pista e verifiquei qual era o transporte, tremi um pouco, pois não achava piada morrer ingloriamente, é que a avioneta era uma Auster, pilotada por um Sarg.Ajud. de elevada estatura, que teriamos de acrecentar o Com., homem como tu sabes de elevadissima altura e peso, e eu com o equipamento bélico e um saco de bagagem. Mal cabiamos no exiguo espaço, então o homem fez-se á pista, subiu, as árvores cada vez mais perto, e lá passámos uma razante. A meio caminho, o Com. diz para o piloto, então isto não sobe mais, o que ele respondeu, isto não dá mais com o peso que tem, e eu á "rasca", até que apareceu a tão desejada Bissorã.
Este piloto é hoje instrutor no aerodromo de Tires, e foi instrutor do meu filho, quando tirou o brevet. Eu reconheci-o e falando nesta história, ele lembrava-se perfeitamente
Um abraço Tony e parabens pelos excelentes artigos e desenhos.
Roger