sábado, 16 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11100: Sondagem: "As praxes aos piras, no meu tempo, só lhes fizeram bem"... (3): Também praxei "periquitos", em Cufar... (António Graça de Abreu)


1. Reproduzido, com a devida vénia, de Diário da Guiné, do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu.

Cufar, 19 de Agosto de 1973

No meio dos infortúnios quotidianos, a guerra também pode ser divertida. Esta semana tivemos um dia de grande comédia, com uma espectacular encenação e actores de primeira.

Em Cufar existe um pelotão de canhão sem recuo comandado por um alferes de Alpiarça, do meu curso de Mafra, que reencontrei na Amadora e mais tarde em Bissau. São trinta homens que têm por missão defender o aquartelamento com a pequena artilharia de que dispomos. Acabaram agora a comissão e na LDG chegou o pelotão de “periquitos” que os vem substituir. Os alferes, furriéis e soldados da companhia de açoreanos, eu também, resolveram ir esperá-los ao porto grande do Cumbijã e encenar uma espectacular paródia de modo a que os “piras” ao chegar aqui se borrassem de medo.

Montámos segurança ao cais, brutalmente armados, o que nunca é necessário fazer porque no porto o IN não actua. Os “periquitos” desembarcaram sob um assustador aparato bélico e foram postos a caminhar em fila por um, de ambos os lados da estrada que conduz a Cufar, com as armas apontadas para a vegetação e as bolanhas. Conseguimos convencê-los de que o desembarque era perigosíssimo, costumava haver flagelações, já haviam morrido muitos homens naquele quilómetro de estrada o que, na realidade, é uma refinadíssima mentira. A recepção foi medonha, os “periquitos” estavam amedrontados e eu pensei se seria coisa acertada fazer os rapazes passar por tamanhos apertos.

Assumimos personagens que não são as nossas. Um alferes da companhia 4740, já com mais de trinta anos e uma razoável barriga metamorfoseou-se em major, comandante do CAOP 1 e de toda a zona sul da Guiné. O meu coronel, verdadeiro, estava em Bissau por isso foi mais fácil engendrar e montar a cena. Um outro alferes assumiu-se como cabo especialista em minas anti-pessoal e anti-carro que deviam estar espalhadas na estrada porto-Cufar e era necessário desmontar, um soldado com imenso jeito para actor fez de alferes velhinho, comandante do pelotão a substituir, outro soldado interpretou o papel de alferes médico e, chegados a Cufar, deu consulta a uns tantos soldados “piras”, passou-lhes atestados e encheu-os de tintura de iodo e adesivos, o furriel enfermeiro fez de alferes capelão, figura religiosa que não temos cá. Já em Cufar, o alferes “periquito” pediu ao falso capelão que o confessasse.

O meu papel neste filme que se prolongou por umas três horas foi o de cabo atirador guarda-costas e segurança pessoal do alferes acabado de chegar. Andei sempre ao lado dele, a minha G 3 pronta a disparar, uma faca de mato à cinta, às vezes virava a cara e encolhia o riso. Os “periquitos” chegaram a Cufar e foram para a sua caserna, uma tabanca a cair de podre onde colocámos quatro caixões.

Mas alguns dos “piras”começaram a desconfiar, qualquer coisa não batia certo. O alferes do novo pelotão acreditou em tudo até ao fim. Ao jantar, em sua honra e em honra dos seus homens, dissemos-lhe que havia rancho melhorado, arroz com quadrados de marmelada. Sentámo-nos à mesa, veio a comida, o homem engoliu aquilo e quase vomitou. Era altura de voltarmos a ser quem somos, apareceu o capitão da 4740, deu-lhe um abraço e disse-lhe que tudo não havia passado de uma grande brincadeira. Surpreso, o rapaz reagiu bem, riu, mudou por completo de semblante, parecia outro. E jantámos bifes com um ovo estrelado, batata frita e arroz. A sobremesa foi marmelada.

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11096: Sondagem: "As praxes aos piras, no meu tempo, só lhes fizeram bem"... (2) Quando o meu pira foi caçar um hipopótamo... e acabámos por apanhar um turra: revisitando uma história do Jorge Cabral

6 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro António G. Abreu

Mais uma história de praxe que parece não correu mal nem fez mal a ninguém.
Talvez até tenha servido para 'abrir os olhos' aos novatos e fazê-los entrar no 'espírito da coisa' de forma mais rápida.

Ao ler as 'substituições' de funções e personagens lembrei-me se não se teriam inspirado num filme que passou uns dois ou três anos antes, "The Dirty Dozen" (Os doze indomáveis patifes, título em português) em que num exercício qualquer havia também essas trocas de identidades e até, também, de 'campo', pois passavam de 'azuis', os 'bons', para 'vermelhos', os 'maus', obviamente.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Tem piada que apenas vejo aqui contadas umas brincadeiras sem grande maldade e até com alguma graça.

O que eu gostava era de ver contadas aquelas com violentações, humilhações e outras "ções"..sádicas e afins.

Desafio qualquer praxista,daqueles puros e pseudo-duros a contar se tem "tomates"..

É que com "pseudo-praxistas" estilo A.G.A. ou " nosso alfero J.Cabral".
posso eu bem..é que V.Exas não passavam de uns brincalhões.

Quero realçar que na Guiné nunca fui praxado.. é que lá para as bandas do sul não havia tempo nem disposição para isso..até uma simples voltinha em redor do aquartelamento poderia ser a "morte do artista ou artistas".
Como tudo na vida uns mais sortudos do que outros.

Um alfa bravo para o A.G.A. "brincalhão".

C.Martins

Anónimo disse...

PS

A propósito de praxes..não resisto a contar esta..
Numa cidade do interior "desquecido e ostracizado"..praticava-se a praxe académica imitação da "maltosa coimbrã"..onde qualquer "maltez" que fosse pela primeira vez estudar para a dita era considerado "caloiro".
Era prática corrente as "trupes" esperarem a "caloirada" à saída do cinema e logo ali à frente de toda a gente incluindo algumas "gajas", digo miúdas,oh suprema humilhação.. praticarem o acto da rapadela à tesourada o mais romba possível, com o pretexto,tem que haver não é..que caloiro à noite era para estar em casa a estudar.
Se bem o pensei melhor o fiz..fui ao barbeiro e mandei rapar a farta cabeleira..
Passava por eles todo impante e eles sem poderem fazer nada..até que uma noite a pretexto de nada..ouvi ..oh caloiro anda cá ..vamos rapar-te os "pinte...." bem subiu por mim acima uma raiva incontrolada..levei uma valente carga de porrada e fui parar ao hospital..
Ah..já me esquecia..também foram cinco deles parar ao dito cujo..
A partir daí toda a gente começou a respeitar o caloiro..
Tive uma carreira vertiginosa, no final do ano seguinte fui eleito chefe de "trupe" e acabei com essa prática.

C.Martins

Anónimo disse...

PS

Estou a ser chato..não

Quando ingressei S.M.O. ninguém me mandou rapar a "guedelha".
Já fui devidamente rapado a máquina zero.
Feitios.

C.Martins

Henrique Cerqueira disse...

C.Martins
É mesmo isso que eu já tenho advogado em comentários anteriores.Ou seja a malta descrever as praxes (servícias fisicas e morais) que foram infligidas em especial durante as recrutas e especialidaes.Servicias essas normalmente acobertadas pelas chefias superiores das unidades.Normalmente alguns "serviciados"transformaram-se em "serviciadores"e chamavam ponposamenbte de praxes para integrar os militares dando-lhes espirito de camaradagem e etc...etc....Uma grande treta apenas servia e tal como já por si foi comentado para gaudio de alguns "recalcados,covardes e afins.Eu já comentei algumas passagens que se passaram comigo em Tavira,haja mais a fazê-lo e logo veremos o que são praxes ou servicias.
Henrique Cerqueira

zeca disse...

nunca fui defensor, de qualquer tipo de o que chamam praxes, pois eu fui para a tropa "OBRIGADO" e quase com 22 anos, nunca admiti, de ninguém isso e outras coisas, a que dão nome de praxes, tinha uma vida difícil, era humilde mas exigia respeito, nunca alinhei nesse tipo de coisas, ainda hoje quando vejo alguém gozar o próximo, e infelizmente vê-se muito isso, a mim incomoda-me, por isso tive uma reação quando me apresentei em Paço de Arcos, encontrei a cama feita já não me lembro o nome, e com porcarias!!!!!! arrumei as coisas e disse, vou sai, quando chegar quero a cama direita, caso contrário o F. da P, que fez isto, vai paga-las, sai quando cheguei estava tudo normal, e tudo correu sobre rodas, sempre respeitei e exigia respeito, nunca fui alvo de nada, talvéz porque impunha respeito, foi sempre o meu principio, e nunca me arrependi.