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Queridos amigos,
Graças à impressionante afabilidade da Teresa Almeida, da Biblioteca da Liga dos Combatentes, lá vou tendo acesso a material de registo obrigatório.
O Fernando de Sousa Henriques já nos deixou, a ele se deve um outro livro de viagem de saudades que ele coordenou. Este “No ocaso da guerra do Ultramar” é um relato sem rival, nunca vi tanta minúcia, detalhe e pormenor. Preocupou-se em criar o cenário da guerra, com as suas armas e transportes, a natureza da instrução, a caracterização do meio.
E na segunda parte vamos ter o seu testemunho sobre os terríveis acontecimentos ocorridos em Copá e Canquelifá.
Um abraço do
Mário
No ocaso da guerra do Ultramar (1)
Beja Santos
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A minúcia do relato não abranda, ficamos a saber quem vão render, que estão na Zona de Ação L-4, zona de savana com cerca de 2000 km2 de extensão, caracterizada por uma superfície plana, de solo argiloso, coberto de mata dispersa. De Canquelifá a Piche distam 33 km. Ficamos a saber que nesse ano de 1972 Piche teria uma população aproximadamente de duas mil almas, predominantemente Fulas mas coexistindo com a etnia Mandinga. O régulo de Piche era Maundé Embaló, que morava numa casa ao lado da oficina de mecânica do batalhão, saíram de Piche e passaram por Cambor e Dunane. Ficaram surpreendidos quando entraram em Canquelifá, havia uma placa com o símbolo internacional identificativo de termas, estavam a ser praxados.
Não há qualquer economia descritiva na caracterização de Canquelifá, o reino de Pachisse, os lençóis de água, tipo de clima, os marcos fronteiriços identificativos de Portugal e Senegal, enquanto a nossa fronteira com a Guiné-Conacri era definida por certas árvores seculares que existiam naquela zona árida e agreste. Canquelifá era um aldeamento com cerca de 1,2 km de comprimentos e 500 m de largura. Dentro do perímetro interno havia 15 abrigos para as nossas tropas e milícias, espaldões previstos para os obuses 14 e o canhão sem recuo. Com todo o detalhe, o leitor ficará inteirado onde estão os edifícios, um a um, quem ocupa as instalações, como era a casa ocupada pelo capitão Peixinho de Cristo, são apresentados o 2.º Sargento Patada e o 1.º Sargento Simões. Depois o autor embala-se na pormenorização do Canquelifá social, o nome das povoações e até as tabancas abandonadas. E mais, o leitor é induzido para as celebrações do ramadão, as cerimónias do casamento, os batuques, os dias de festa na tabanca, o fanado, as tarefas domésticas, os trabalhos a cargos dos homens, os casos de lepra. Logo ficamos a saber que o autor esteve em Bambadinca cerca de três meses a comandar uma companhia de instrução de milícias, assunto que remete para o pelotão de milícias 267, em Canquelifá.
Segue-se o breve historial sobre o BCAV 2922, esteve na região de Piche entre 1970 e 1972, são registadas as atividades militares mais relevantes.
E começa o dia-a-dia de Canquelifá, da companhia “Os Abutres”, os seus patrulhamentos, as obras de beneficiação, o material utilizado, os lazeres com jogos de cartas, jogos de futebol e de voleibol. Ficamos também a saber as recordações do capelão e do médico. O capelão fora já para a Guiné com muitas dúvidas de fé, admitia no futuro deixar o sacerdócio. As missas eram celebradas debaixo de uma árvore frondosa que exista junto à enfermaria. Improvisava-se uma espécie de altar que não era mais do que uma pequena mesa onde se colocava o Cristo crucificado. A homilia consistia numa mensagem de paz interior, tudo muito terra-a-terra. Ficaram muito boas impressões do médico da companhia, desvelado e interessado pela saúde de todos. Temos aqui fartos apontamentos sobre o paludismo, as visitas a Canquelifá e até a deserção do furriel Vagomestre, que nas férias rumou para a Suécia. Falava-se muito da comida, todos tinham saudades do rancho familiar. Todos se dedicaram às pequenas hortas, até se plantavam piri-piri, pimentos e salsa.
Asseguro que nunca li um relato como este, é uma prosa coloquial, quase divagante, Fernando de Sousa Henriques depõe, indignado, pela sorte dos militares guineenses que foram esquecidos na pós-independência, não pactua com o abandono destes camaradas tão fiéis, tão aprumados, tão combativos. Parece que escreve para diferentes públicos ao mesmo tempo, a sua participação na guerra parece confundível que toda a guerra, com os acontecimentos ocorridos em todos os teatros de operações, toma-se a sua mobilização como a mobilização de centenas de milhares de jovens portugueses. Não disfarça o orgulho pelas suas classificações e por ser o número dois da companhia. A sua preocupação é envolver o leitor, dar-lhe a saber que havia rações de combate, como eram os quartéis, qual o comportamento das populações face à guerra. Nesta dimensão é um cronista que não esconde os seus estados de alma, faz reproduzir o seu álbum fotográfico com oportunidade. No final do livro, não descurará as listagens de militares ex-combatentes, teremos ali o BCAÇ 3883 por inteiro, tal como o BCAV 2922, a lista nominativa dos combatentes originários dos Açores, o seu espólio fotográfico insere-nos em Canquelifá, aperta-se-nos o coração com as destruições que irão ocorrer na última fase da guerra, pois o relato será igualmente minucioso com os graves acontecimentos em 1974 que tocaram à desditosa Copá e ao cerco a Canquelifá.
Será esta a matéria para a próxima recensão.
(Continua)
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Notas do editor
Vd. também poste de 28 DE JANEIRO DE 2009 > Guiné 63/74 - P3809: Notas de leitura (12): Os últimos dias do destacamento de Copá, Janeiro/Fevereiro de 1974 (Helder Sousa / Fernando de Sousa Henriques)
Último poste da série de16 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12048: Notas de leitura (520): "Guiné Mal Amada - O Inferno da Guerra", por António Ramalho de Almeida (Mário Beja Santos)
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