Trigésimo terceiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Pelas suas contas, e se o Comandante não “fala mentira”, o Cifra daqui a dois meses devia regressar a Portugal. Não andava contente nem triste, estava na expectativa, fazia contas, como iria ser a sua chegada, encontraria tudo na mesma, enfim a sua mente andava um pouco ocupada, mas não tanto que não reparasse na falta de recursos que os seus amigos e amigas, na tal aldeia com casas cobertas de colmo, que existia perto do aquartelamento, e que o Cifra visitava quase todos os dias em que estava livre das suas tarefas, pois tinham falta de tudo, pelo menos no parecer do Cifra.
Levava comida e pão do aquartelamento assim como rebuçados que comprava na loja do Libanês, mas não compreendia a alegria que alguns mostravam nas suas faces ao ver o Cifra de novo, pois viviam na mais profunda miséria, mas eles sentiam-se bem, nas suas casas térreas, com toda aquela falta de utensílios domésticos, com falta de água potável, pó e lixo em tudo o que fosse lugar, mas eles improvisavam quase tudo, e o Cifra nunca ouviu da sua boca uma lamúria que fosse a esse respeito.
Mesmo debaixo desta miséria, quando comiam, chamavam os cães magros e famintos, que por ali andavam, e repartiam o pouco que tinham, e o Cifra ao ver isto, por vezes comovia-se, e não sabia se era por lhe faltar pouco tempo para regressar a Portugal. Já sentia saudades destas pessoas que deviam ter muito bom coração. Havia uma criança que não largava o Cifra, vinha sempre ao seu encontro e agarrava-lhe a mão.
Queria algum carinho e rebuçados, pois logo lhe colocava a mão no bolso, o Cifra, às vezes embaraçado, não sabia como agir para se despedir dessa criança, os seus olhos falavam, eram humildes e diziam tudo o que lhe ia na alma, não necessitava de abrir a boca, aqueles olhos falavam todos os idiomas do mundo.
O Cifra veio embora e deixou umas botas de cabedal, e parte da sua farda, que já não estava em muito boas condições, e algum dinheiro a essa família, mas essa criança, não queria a roupa da farda, queria a boina com o emblema, e o Cifra deu-lha com um grande beijo, quase chorando, mas ela não chorou, tirou o dedo da boca, limpou o ranho do nariz, com as costas da mão, e riu-se, com um sorriso, que dispensava palavras, pois a sua alegria, também falava todos os idiomas do mundo!
Tony Borie, 2005
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Nota do editor
Último poste da série de 28 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12095: Bom ou mau tempo na bolanha (32): A importância da família na guerra (Toni Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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6 comentários:
De Joaquim L. Fernandes
Caro Camarigo Tony
Gosto de ler estas pequenas estórias que revelam a grandeza do coração de quem as viveu e escreveu. É por estas e por outras que eu te admiro e respeito como homem, pelos grandes feitos realizados e que nos tens dado a conhecer. No teu talento, inteligência, abnegação e amor,bem dizes dos braços que te embalaram e dos peitos que te amamentaram.
Quem dera que todos nós portugueses honrássemos a nossa condição e a nossa cultura, como tu bem o fazes. Um grande português, cidadão do Mundo, na grande América.
Muitas felicidades e um grande abraço.
J.L.F.
De Joaquim L. Fernandes
Caro Camarigo Tony
Gosto de ler estas pequenas estórias que revelam a grandeza do coração de quem as viveu e escreveu. É por estas e por outras que eu te admiro e respeito como homem, pelos grandes feitos realizados e que nos tens dado a conhecer. No teu talento, inteligência, abnegação e amor,bem dizes dos braços que te embalaram e dos peitos que te amamentaram.
Quem dera que todos nós portugueses honrássemos a nossa condição e a nossa cultura, como tu bem o fazes. Um grande português, cidadão do Mundo, na grande América.
Muitas felicidades e um grande abraço.
J.L.F.
Camarada Tony
É com um prazer imenso, que leio as tuas missivas. Continua assim...
Um abraço,
Jorge Rosales
Pois é, caro "Cifra", são essas as memórias que 'aquecem' o coração de quem esteve por aquelas terras, com aquelas gentes, naqueles tempos...
Será relativamente fácil de dizer, mais difícil perceber e se calhar quase impossível de entender por parte daqueles que não tiveram essas experiências e que hoje, ao ouvirem-nos ou lerem-nos, não se coíbem de duvidar que assim seja ou que não se consigam rever nos nossos sentimentos. Mas para isso não há remédio!
Mas, também creio, exceptuando aqueles para quem 'a guerra', ou sejam os tiros, as mortes, as vinganças, etc., constitui ainda o seu modo de relembrar (ou até 'viver') o passado, para os outros, aqueles a quem o coração 'fala mais alto', acabam sempre por ter um pouco de 'cifra' nas suas memórias.
Abraço
Hélder S.
Meu caro Tony, assino por baixo o texto acima, do Hélder. Ele não se vai importar de eu fazer uso das suas palavras.
Um grande abraço
Manuel Joaquim
Caro Tony Borié,
Quando ha uma verdadeira amizade, as despedidas entre amigos sao sempre dificeis.
Eu passei uma boa parte da minha infancia no quartel lidando com metropolitanos, mas por norma cada crianca ficava ligado a um amigo mais proximo que o protegia dos outros soldados, pois o quartel que eu conheci era como uma pequena selva onde os mais grandes comiam os mais pequenos.
E, na despedida, cada um a sua maneira, procurava deixar uma lembranca ao seu amigo.
Nao me lembro de ter recebido pecas de fardamento militar, pois que, nestas alturas cada um estava aflito para ter o espolio completo por entregar. Acontecia, por vezes, cenas caricatas em que uns roubavam aos outros uma ou outra peca, para nao estar em falta no momento da entrega.
Ainda me lembro de uma oferta muito especial de um amigo: Uma pequena gaita que, infelizmente, nunca aprendi a tocar como ele, mas nem por isso deixou de criar alegria nos nossos "djumbais" de meninos.
No fundo as criancas nao sofriam com a partida dos amigos, porque logo a seguir vinham outros a colmatar e preencher o vazio do tempo, do espaco e da alma e tudo recomecava de novo. Novos grupos de criancas entravam e outros eram atirados para fora do quartel por nao ter conseguido conquistar um novo amigo.
Obrigado pelas recordacoes e um abraco amigo,
Cherno Baldé
Do que me recordo, raramente os soldados de
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