Meu caro amigo, Carlos Vinhal:
Envio o presente texto, que é mais um episódio dos que retenho na memória.
Peço-te o favor de o ler e, caso entendas ser digno de publicação, dá-lhe o teu toque pessoal e coloca-o no respectivo lugar.
Um grande abraço para ti e toda a tertúlia
Até breve.
J.Cardoso.
MEMÓRIAS DE UM PASSADO
3 - Um bacalhau que ficou para a história
Decorria o ano de 1973 e, em Agosto desse ano, completava eu, ou tinha completado, 1 ano (?) de permanência no Gabú-Nova Lamego-Guiné.
Os ponteiros do relógio teimavam em ser demasiado lentos, dando a sensação de cada hora passada ser um dia, cada dia um ano e, um ano uma eternidade!
A monotonia do dia a dia, juntamente com as saudades da família, o stress começava a apertar! Como se isso não bastasse, a alimentação que nunca foi famosa por aquelas bandas, vinha piorando cada vez mais, a ponto de haver mais que um levantamento de rancho, (recusa de comer a respectiva refeição).
Na ementa diária constava, salvo raras exceções, num dia arroz com "estilhaços" no outro esparguete com "estilhaços" (pedacinhos de carne). Legumes, não havia! Dizia-se que o Vagomestre se estava a governar com o "pilim" que era devido a cada militar para sua alimentação.
Por essa altura escrevi a meus pais, queixando-me da dita alimentação. Que estava enjoado de comer constantemente arroz e esparguete e, em termos de desabafo, manifestei um desejo à minha saudosa mãe, dizendo-lhe:
- Ah mãe... Quem me dera comer uma boa posta de bacalhau. Fosse cozido, assado ou mesmo cru! (É meu prato preferido).
Confesso que nunca imaginei o resultado deste meu desabafo! Apesar de meus pais viverem numa aldeia e serem pessoas de fracos recursos, minha mãe interiorizou o meu queixume e o amor de mãe falou mais alto. Deslocou-se aos correios, percorrendo a pé uma distância de aproximadamente 8 quilómetros, informando-se sobre a possibilidade ou não, do envio de uma encomenda para a Guiné. Como a resposta foi afirmativa, na volta do correio entre outras coisas, dizia mais ou menos seguinte:
- Meu filho, recebi as tua carta e tomei nota do que dizias relativo à alimentação. Sabendo dos teus desejos, fui aos Correios de Vila Meã e despachei um pacote com bacalhau. Quando o receberes, dá-me notícias. Reconheço que não será o suficiente para te matar a fome, mas creio, contribuirá para teres alguns momentos de satisfação.
Cabe aqui uma nota de agradecimento:
- Obrigada mãe. Onde quer que estejas, que tenhas a devida recompensa pelo bem que me fizeste. De mim, nesta altura que escrevo, só poderei a título póstumo, publicamente agradecer-te e saudosamente recordar-te, vertendo algumas lágrimas de emoção causada pela prática do teu ato.
Depois de tão surpreendente novidade, dei por mim a imaginar se tal encomenda chegaria ao destino! Tomasse ela o rumo de algumas "folhas de vide" (notas de 20 escudos), que eram enviadas dobradinhas junto às notícias dentro dos aerogramas e, dificilmente comeria bacalhau!
Felizmente assim não aconteceu! Passadas que foram cerca de 3 semanas(?), recebi o aviso e levantei a dita encomenda! Fiquei maravilhado. Coloquei o pacote às costas com cerca 4 kg, dirigi-me à caserna, e imediatamente o abri. Ali estavam diante de meus olhos umas boas postas do fiel amigo!
Para o saborear, convidei meia dúzia dos meus amigos e camaradas mais próximos e, no final do repasto, o resultado fica à imaginação de cada um, bastando para tanto visualizar as fotos que junto. Quando mais tarde noticiei a minha mãe o gosto que me tinha dado, ela, algum tempo depois, repetiu a dose, e o resultado final do segundo foi idêntico ao do primeiro.
Penafiel. 4/11/2013
Joaquim Moreira Cardoso
Ex-Sold.Trans. NM 194530/71
Nesta foto, a começar da esquerda em plano mais baixo: O Vasco e eu Cardoso. Em plano mais alto, Pereira e Cunha(?). Na direita e plano mais baixo, o Monteiro e Morim(?)
Nesta foto, à esquerda, o Graça, de costas o A.Santos e mais 3 colegas dos morteiros e na direita eu, Cardoso
____________Nota do editor
Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12063: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (2): Um só dia e uma só noite no mato bastaram para um grande susto
5 comentários:
Passaram entretanto quarenta anos. Muitos, do dito, foram pescados, secos, demolhados e degustados com mil artes.
Agora, e à distância do local e do tempo passado,creio que esse saudoso bacalhau, nunca pareceu tão saboroso e reconfortante.
Mãe é tudo, e tudo faz para nos sossegar o espírito e o corpo.
Ainda bem que todos as tivemos.
Caro Joaquim Cardoso
Mãe é mãe, pronto!
E mesmo que andássemos distraídos e não soubéssemos isso, a verdade é que as 'daquele tempo' faziam das tripas coração para atender aos desejos dos seus filhos....
Essas viagens das encomendas de bacalhau foram um bocado arriscadas pois tinham muitas 'mudanças' até chegar ao destinatário e deviam ser denunciadas pelo cheiro. Afinal nem sempre é justo acusar os serviços de serem incorrectos.
E realmente, a avaliar pelas fotos, os fornecimentos foram um sucesso.
Abraço
Hélder S.
Caro Joaquim:
Há, pela minha parte, apenas uma dúvida intrigante: não havia, por óbvias razões, tempo para o demolhar, então o dito foi comido mesmo salgado, à ganância, com muito vinho por cima. Que monumental chiba!
Um abração do carvalho de Mampatá
Camaradas, as vossas caras de outrora são-me familiares. Os vossos nomes cimentam certezas. Mas o tempo encarregar-se-ia de traçar "azimutes" diferentes para cada um de nós. O Morim, entre outros, lembro-me de jogatanas no campo de futebol, atrás nas instalações dos oficiais, com essa malta. O Santos já reencontrei nos almoços/convívios do nosso blogue; os outros nunca mais soube do seu paradeiro. Eu identificou-me como o Zé Saúde, furriel miliciano de operações especiais/ranger, da CCS do BART 6523 que esteve em Nova Lamego/Gabu em 1973/74. Coube-nos entregar o quartel ao PAIGS no dia 4 de setembro de 1974. Lembro-me que a noite de 3 para 4 foi de arromba. Conto esse episodio no meu livro - GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/74. Contactem-me camaradas. O meu telemóvel é o 961 482 269. Gostava de os rever. Zé Saúde
... "Amor de mãe": foi talvez a tatuagem mais popular na Guiné... Por é que o combatente, na situação-limite que é a guerra, se lemabra mais vezes, ou mais intensamente "daquela que lhe deu o ser" ?
Joaquim, é uma históris bonita de "amor de mãe", que por certo já contastes aos teus netos... Mas também é uma história de camaradagem: não foste comer o bacalhau, às escondidas, atrás do abrigo, sozinho... Não, senhor, e as fotos não te deixam mentir: pegaste no bacalhau e convidaste os amigos, fizeste uma festa de arromba!...
Só podia ser de um português, e para mais do norte!
Parabéns.
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