1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.
As minhas memórias de Gabu: uma passagem por Bissau
“AO ESFORÇO DA PÁTRIA”
As minhas memórias de Gabu contemplam uma infinidade de situações por mim vividas e trazidas a público, por entender que nestes pequenos textos se cruzam gerações. Desta vez foi uma passagem por Bissau que meu deu ânimo para colocar na tela este pequeno resumo.
A frase do título deste texto assume-se claramente estafada, admito. Aliás, terá sido com ênfase que os antigos marinheiros que desafiaram os “mares nunca dantes navegados” partiram para a descoberta de novas aventuras em territórios distantes, mas… “comendo o pão que o diabo amassou”. Foram heróis.
Deixem-me, porém, opinar que a dita efeméride “AO ESFORÇO DA PÁTRIA”, assimilada num outro prisma, foi, também, substancialmente sugerida aos antigos combatentes que em Angola, Moçambique e na Guiné cumpriram as suas comissões militares. Partia-se para a guerra em honra de uma missão meticulosamente incentivada pelos então senhores do poder que no cais de embarque reforçavam essa velha e misteriosa tese.
Ficava a prece ditada pelo estafado dicionário português que pátria é o “país onde se nasce e de que se é cidadão”. Com efeito, o soldado desconhecido embevecia-se com os discursos daqueles que na hora do adeus se desfaziam em múltiplos dizeres ocasionais, interiorizando a ação psicológica ao soldado sem medo que entretanto começava a ganhar uma outra dimensão. A Guiné, na ótica de ancestrais senhores, pressuponha um porção da pátria lusa que ousara forçosamente defender.
O militar seguia para a guerra convicto que a sua missão era defender um território que era declaradamente português. Seu. De facto, analisando o passado histórico que os nossos antigos navegantes nos legaram, a Guiné era uma província ultramarina onde a bandeira portuguesa se hasteava com presunção. Havia, pois, que defender aquele território que era nosso.
Lembrando dados históricos Nuno Tristão, navegador português, terá chegado à Guiné no ano de 1446. Outras fontes indicam que o primeiro a pisar solo guineense e a navegar nos seus rios, foi Álvaro Fernandes.
A certeza por nós observada ao vivo, e colocando de parte esses laivos históricos, a realidade remete-nos que a Guiné ao longo de 11 anos (1963/1974) foi palco de muitos milhares de militares que pisaram um território que nos foi deveras agreste. A guerrilha, sempre constante, não deu pausas e as suas consequências são sobejamente conhecidas.
Aliás, as suas sequelas apresentam-se para todos nós, antigos combatentes, como resquícios de pequenas/grandes memórias que contemplam ainda hoje o nosso já vasto palco da vida terrena e que nos remetem para imagens de outrora que guardamos honradamente no baú das recordações.
Olhando atentamente a foto exposta, certamente que todos os camaradas que tiveram oportunidade de passear pela cidade de Bissau e passarem ao cimo da avenida principal, defronte ao “chalé” do então governador, ter-se-ão deparado com este monumento erigido em tempos idos.
Naquela altura o verbalizado monumento forneceria ao esmerado guerrilheiro uma simbólica força interior que o conduzia ao fundo da dita avenida, precisamente numa das suas ruas transversais, montar uma emboscada a um prato de ostras, servidas com um molho africano, ou de uma travessa de camarão gigante grelhado e “derrubar” umas boas cervejas, mandando por ora os estridentes sons do armamento de guerra às urtigas. Combatia-se, simultaneamente, um eventual ataque de paludismo, ou um ataque de formigas, ou de abelhas em pleno mato. O momento era de lazer. A companheira G3 estava agora acomodada algures num eventual abrigo e num qualquer buraco em que a Guiné era fértil.
Bissau assumia-se como ponto de embarque e de partida. Pela cidade movimentavam-se batalhões de tropas. Os que chegavam, alcunhados de piriquitos, desbravavam a nova metrópole; os velhos, já conhecedores da burgo e dos seus buracos, percorriam as ruelas com um certo à vontade. Havia no entanto um cuidado sempre atempado: um contacto com a PM que impunha a ordem pública e que esporadicamente se envolvia com veteranos de guerra que mandavam os camaradas policiais declaradamente às malvas.
O alcatroado das ruas da cidade de Bissau, ou o pó das apertadas ruelas onde proliferavam casas tipo europeu, foram entretanto substituídos pelos amargurados trilhos e picadas num mato adensado, onde o imprevisto imperava a cada instante e o soldado sem medo desvendava rumos sempre impensáveis.
Reporto-me à foto onde estou sentado no já referido monumento, ficando a certeza que o clique foi justamente dado aquando vim de férias, abril de 1974, e quando o meu papel na Guiné pressuponha um antecedente grito de liberdade que parecia já entoar nos bastidores de um regime prestes a chegar ao fim: o 25 de Abril!... Num país já em liberdade, Portugal, atrevo-me a citar que para trás ficava a meteórica frase ostentada naquele irreverente monumento a jovens enviados para as frentes de combate, aniquilando os seus sonhos, e que mui pomposamente dizia: “AO ESFORÇO DA PÁTRIA”.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
3 comentários:
Caro Camarada José Saúde,
Naquela altura era tudo para a Pátria e nada para o Povo.
Hoje é tudo para o Povo e o Povo continua a não ter nada.
Isto é que vai p´ra´qui uma açorda...
Quanto às ostras aos camarões e às cervejolas temos também que juntar as sandes de prezunto do Café Bento ou 5ª. Rep. era a Guiné, principalmente Bissau no seu melhor.
Quero dar-te os parabéns pelo lançamento do teu livro e um grande abraço de amizade.
Adriano Moreira
José Saúde, nas tuas Memórias do Gabu, não tens na memória que tenha lá ficado um soldado junto com uma rapariga fula e uma "ninhada" de filhos?
Era professor, de chinelo no dedo com filhos de 15/18 anos, os mais velhos, nos anos de 1986/7.
Portanto já poderá ser de uma incorporação anterior a 1973.
Ainda fui à casa do Alentejo, mas a música era tanta e tanta gente que só comprei o livro e nem te vi para te perguntar isto do soldado.
Vê se consegues alguma informação sobre esse soldado, talvez teu contemporâneo ou anterior, que deve ser uma história interessantíssima, mas provavelmente nada de meter inveja a ninguem.
Os filhos em escadinha chegariam em 1986/7 a mais de meia dúzia.
Cumprimentos
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