sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12264: Notas de leitura (532): "Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau", por Fernando Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2013:

Queridos amigos,
A literatura luso-guineense vai evidenciando-se neste engrossar de crónicas e múltiplos apontamentos. São pessoas que ganharam amor aquela terra e àquelas gentes, sentem o dever de contar e resumir, são provas de amor entranhado à procura de novos seduzidos.
É o caso de Fernando Antunes, estudou afincadamente a Guiné e dá-nos a sua visão, cheia de coração saudável.

Um abraço do
Mário


Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau, por Fernando Antunes

Beja Santos

Fernando Antunes tem atividade empresarial na Guiné-Bissau, onde viveu entre 1996 e 2001. Refere na sua nota curricular que desde aí vive entre Portugal e a Guiné. O seu livro “Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau”, Chiado Editora, 2013, é uma bem-intencionada evocação da sua relação afetiva aos guineenses, a quem dedica a publicação.

Leu muito para se documentar: sobre a história muito nebulosa das origens do que é hoje a Guiné-Bissau, sobre os impérios Mandinga e Fula, sobre os Balantas, a origem de Cacheu, as delícias de Bubaque, o que é o acampamento da SOMEC, a comida tradicional portuguesa que se come na Adega do Loureiro, como fervilha o mercado de Bandim, como são os transportes públicos, etc.

Discreteia sobre a cosmologia dos balantas, seguimos o seu empolgamento com maior interesse: “No que respeita à origem das coisas, para os Balantas, há um Ser Supremo (N´haala) que é o criador de todos os entes. No começo só havia o N’haala. Este criou a matéria imprecisa (Iaqwat) a qual ao transformar-se no espírito da terra libertou uma outra essência (Sim) traduzida em vapor no qual aparece o arco-íris que, como uma cobra, se lança no mar dando lugar ao Ethe ndan. Destes três elementos – terra, ar, água – é este último o mais importante pois o espírito da água é indispensável para a produção de arroz. Daí que a Grande Cobra seja muito venerada nas ocasiões relevantes da vida dos Balantas. Uma pessoa possuída pelo Ethe ndan é um ser completo. O Balanta na cerimónia do fanado (Fo) é tomado por esse espírito, e só então passa a ser adulto (lambe). Todos são filhos de N’haala e ao mesmo tempo filho de uma geração. São compostos por um corpo (lite), uma parte imortal (flide) e por uma alma (flite). O flide, para este povo, sempre existiu e existirá. Antes de nascerem já existiam e depois da morte do corpo, continuaram a existir, na casa de Deus”.

Trabalhar em África requer uma nova atitude face à gestão do dia-a-dia e conta o que é a sua vida doméstica. Alugou uma casa no centro da cidade, sem água e sem luz, 1300 euros por mês. Comprou um gerador que dá mais problemas que luz. Dias há que água nem vê-la. Com alguma frequência, o gerador recusa-se a trabalhar. E começam as surpresas: “O gerador: nada. Que trabalhasse eu. Aí, tomei medidas drásticas. Telefonei ao homem que trata dos geradores. O que era? A placa elétrica estava queimada. Toca a ir ao libanês, toca a trocar a placa. Eureka! O gerador trabalhou sábado e domingo, depois disse que estava cansado e que trabalhasse eu. Novo pedido ao meu homem. Diagnóstico: o alternador não carregava a bateria. Mas o habilidoso lá resolveu o problema. Agora, e até ver, há luz e água. Aleluia! E é isto o dia-a-dia fora das horas de serviço! No dito serviço as coisas são mais simples. Serão? Vejamos: quando cá cheguei, das seis impressoras que a empresa tem (ou tinha) só uma funcionava – e funciona. Como não há quem as repare e não as há cá à venda, tive de encomendar a Portugal de urgência duas para virem no voo de sexta-feira da TAP. Aguardei ansiosamente que a semana chegasse ao fim para ter alguma segurança em termos de impressoras. No sábado, chega a notícia: a TAP não trouxe carga, só os passageiros e respetiva bagagem. Simples, não?”.

Deambula pela cidade, não se conforma com a degradação aparentemente irreversível que toma todos os domínios. Bom apreciador do convívio à volta da mesa, dá conta daqueles jantares ao ar livre e refere o restaurante a “Fernandinha”, ali a iluminação provem das velas e os pratos de marca são o peixe grelhado a “bica”, ou a espetada de carne, porco e/ou vaca. Quem vai para estes jantares também deve ir preparado para um bate-papo pela noite fora. Naquele dia, imagine-se, falou-se dos Bijagós, os seus valores do sagrado, a natureza dos seus vínculos sociais.

Sempre que pode, vai até ao interior, sabe que existe a Bafatá histórica e a nova cidade. E dão uma dica para outros presumíveis visitantes: “Quem visita a região e quer almoçar não tem muita escolha. Então, recorre-se ao restaurante do Dinis. A D. Célia lá estará à nossa espera com uma cozinha que os anos deram uma forte influência local. A galinha da terra à cafriela, à bica dourada, será o que encontram se, de improviso, irrompem pelo restaurante. E há que esperar, com conversa morna e uma conversa bem gelada, que as coisas são feitas na ocasião e, por estas bandas, não há lugar para pressas”.

Os encontros fortuitos em África têm outro sabor. Estava um grupo em conversa pachorrenta no complexo turístico de Bubaque, Bijagós, quando chegou um casal acompanhado de dois filhos, foram efusiva e deferentemente cumprimentados, se estava a discutir o povoamento das ilhas Bijagós, foi uma surpresa a intervenção do senhor acabado de chegar: “Para os que não me conhecem, passo a apresentar-me: meu nome é Capacura, o que quer dizer ‘Falcão’. Um dia o meu avô contou-me que o seu avô lhe dissera o que lhe tinha sido transmitido pelo seu avô que… No princípio, todas as ilhas dos Bijagós eram desabitadas, exceto a de Orango Grande onde vivia um homem e uma mulher. Ele chamava-se Orakuma, tinha construído uma cabana e vivia trabalhando a terra com a qual se identificava e de onde retirava o seu sustento. A mulher, de nome Oraga, vivia ao ar livre e passava a vida olhar para o céu e a falar com os espíritos. Num dia de ventos fortes, trovões estrondosos e chuva copiosa, Oraga pediu abrigo a Orakuma, que de bom grado lho deu passando, a partir de então, a viver juntos. Dessa união nasceram Ogubane e Ominka. Ogubane tinha uma inclinação natural para se relacionar com todo o tipo de animais, enquanto Ominka foi adquirindo poderes sobre as chuvas e os ventos. Daqui nasceu o povo dos Bijagós, pois foram-se multiplicando e espalhando pelas outras ilhas e ilhéus, dando origem a quatro linhagens distintas”. Ou seja, há sempre uma forte probabilidade de um repasto vir desvelar um mistério.

Fernando Antunes fala-nos dos poilões, dos Brames, dos Mancanhas, dos Manjacos e dos Papéis. Repete-se, são notas despretensiosas de quem foi matar a curiosidade e redireciona para os amigos saberem um pouco mais sobre estes povos. Não há para ali ajustes de contas, nem miserabilismos, nem rancores trazidos do fundo da memória. A tradição já não é o que era, o confronto de civilizações atenuou as lutas pela hegemonia entre etnias diferentes, a vida na cidade rompe com imensas tradições, só os animistas é que parecem manter-se à parte. Muitos jovens abandonam os usos tradicionais, os Manjacos, devido à gravidade dos problemas económicos, emigram com as mulheres, o que representa uma profunda alteração dos papéis dos chefes de família. Recorde-se que a estrutura social assenta na família extensa, nas linhagens, nos poderes dos velhos, o que acarreta uma estrutura vertical. As chamadas etnias mais supersticiosas, animistas, vêm pôr em causa o papel dos anciãos. Os mais velhos que estão associados ao Ser Supremo, são os intermediários face ao desconhecido. No caso dos Balantas, deteta-se que compete ao líder da congregação unir a comunidade em redor das tradições, mas é também patente que a tradição Balanta vai gradualmente separando-se do terreno religioso.

Estas são, em suma, os apontamentos de alguém que quis encontrar respostas para cultos assombrosos e mistérios que se julgavam indecifráveis. Fernando Antunes gosta tanto da Guiné que pretende passar as suas memórias a quem duvide que a Guiné e os guineenses não são um inestimável afeto.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12248: Notas de leitura (531): "Cambança Final", contos de Alberto Branquinho (Mário Beja Santos)

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