Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > Cais do Xime > 1972 > Reconstituição possível da legenda: "[Da esquerda para a direita,] Viegas, eu, Carneiro, Gomes e Pereira"... Não sabemos de quem é a foto. Foi nos enviada pelo nosso camarada Tó Zé [Pereira da Costa]...
Num belíssimo e tocante texto que ele escreveu há uns anos [Poste P5456, de 13/12/2009, que merece ser relido] o nosso Pereira da Costa evoca estes seus oficiais milicianos, com destaque para o infortunado Martins Gomes que fora seu colega de liceu, embora mais novo.
Além do cap mil art António José Pereira da Costa (que esteve no Xime entre Agosto e novembro de 1972, sucedendo-lhe o cap mil Luciano Carvalho da Costa), há aqui (na foto e no texto) referências aos alf mil art Acácio Dias Correia, Manuel Barbosa Carneiro e Maurício Viegas (do Pel Art que operava o obus 10.5)
1. Mensagem, de ontem à noite, do António J. Pereira da Costa [cor art ref, ex-alf art, CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art, CART 3494/BART 3873, Xime, 1972, e CART 3567, Mansabá, 1972/74] [, foto atual à esquerda]
Camarada:
Depois daquela "aventura", regressou e fixou-se em Mem Martins. Estabeleceu consultório como dentista e era atencioso e eficaz.
Nota do editor:
Último poste da série > 14 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14026: In Memoriam (210): Rolando Basto (1923-2014), pai do nosso camarada e amigo Álvaro Basto (José Teixeira)
Para já uma notícia triste. Morreu o ex-alf at art Manuel Jorge Martins Gomes, meu alferes da CART 3494.
Depois daquela "aventura", regressou e fixou-se em Mem Martins. Estabeleceu consultório como dentista e era atencioso e eficaz.
Um dia fechou o consultório e perdi-o até o encontrar nos convívios da CART 3494, levado pelo Acácio Correia [, ex-alf mil art,] que o ia buscar e entregar ao Telhal [, Casa de Saúde do Telhal, instituição psiquiátrica fundada em 1893, pelos Irmãos São João de Deus].
Era meu ex-colega de Liceu Passos Manuel, mais novo, onde era um puto reguila e hiperactivo.
Na Guiné, a vida não lhe correu nada bem e nunca se adaptou ao sítio e às tarefas. Cada um reage como pode ou o seu íntimo lhe dita. Tinha uma grande paixão pela esposa e filhota (nessa altura não havia ainda o rapaz) e ia para o mato com as fotografias delas num saquito de plástico. Descrevi-o em "As idas ao Fiofioli" [, poste P5456].
Na Guiné, a vida não lhe correu nada bem e nunca se adaptou ao sítio e às tarefas. Cada um reage como pode ou o seu íntimo lhe dita. Tinha uma grande paixão pela esposa e filhota (nessa altura não havia ainda o rapaz) e ia para o mato com as fotografias delas num saquito de plástico. Descrevi-o em "As idas ao Fiofioli" [, poste P5456].
Se quiseres, publica a notícia. Por mim vou avisar a malta da CART 3494. com quem contacto.
Na foto acima, o Gomes é o segundo da direita, com uma "bejeca" na mão.
Um Abraço
António Costa
2. Excerto do poste de 13 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli
(...) Na messe havia também um bar, que não passava do aproveitamento do espaço entre duas rulotes, onde fora construído um balcão em madeira e verga. Atrás do balcão, funcionava um frigorífico a petróleo, cuja mecha se apagava sempre que a artilharia fazia fogo. Recordo-me que tinha prateleiras, cuja utilidade não descortinei, por estarem sempre vazias. Não serviam para nada, mas decoravam. Já se imaginou um bar sem prateleiras?
Era naquele espaço que ficávamos, depois do jantar, a conversar acerca de tudo o que fosse surgindo. Passaram vários por ali, mas, normalmente éramos quatro ou cinco. Recordo o Gomes, o Carneiro, o Pinho da Artilharia, rapidamente substituído pelo Viegas, o Sousa e o Pereira. Enquanto lá estive, passou por lá o Correia, muito activo e animado, mas que, ao fim de poucas semanas, foi transferido, não sei para onde, após uma visita do brigadeiro adjunto-operacional.
O ambiente era triste e lúgubre. As conversas banais ou profundas, sem que para isso houvesse intenção dos participantes. Tinha de ser assim, entre tão poucas pessoas forçadas a conviver num espaço tão reduzido. Muitas vezes falávamos da guerra e da política do país. Debatíamos a guerra quer na Guiné, quer no sector que nos tinha tocado. Neste último tema não havia grandes inovações e acabávamos sempre a comentar as “últimas notícias do Batalhão” [, BART 3873].. Eram normalmente histórias cómicas, que resultavam de mal-entendidos ou situações pouco claras. [...]
2. Excerto do poste de 13 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli
(...) Na messe havia também um bar, que não passava do aproveitamento do espaço entre duas rulotes, onde fora construído um balcão em madeira e verga. Atrás do balcão, funcionava um frigorífico a petróleo, cuja mecha se apagava sempre que a artilharia fazia fogo. Recordo-me que tinha prateleiras, cuja utilidade não descortinei, por estarem sempre vazias. Não serviam para nada, mas decoravam. Já se imaginou um bar sem prateleiras?
Era naquele espaço que ficávamos, depois do jantar, a conversar acerca de tudo o que fosse surgindo. Passaram vários por ali, mas, normalmente éramos quatro ou cinco. Recordo o Gomes, o Carneiro, o Pinho da Artilharia, rapidamente substituído pelo Viegas, o Sousa e o Pereira. Enquanto lá estive, passou por lá o Correia, muito activo e animado, mas que, ao fim de poucas semanas, foi transferido, não sei para onde, após uma visita do brigadeiro adjunto-operacional.
O ambiente era triste e lúgubre. As conversas banais ou profundas, sem que para isso houvesse intenção dos participantes. Tinha de ser assim, entre tão poucas pessoas forçadas a conviver num espaço tão reduzido. Muitas vezes falávamos da guerra e da política do país. Debatíamos a guerra quer na Guiné, quer no sector que nos tinha tocado. Neste último tema não havia grandes inovações e acabávamos sempre a comentar as “últimas notícias do Batalhão” [, BART 3873].. Eram normalmente histórias cómicas, que resultavam de mal-entendidos ou situações pouco claras. [...]
Descrito o ambiente e as rulotes, passemos aos seus habitantes.
O “Manel” Gomes tinha andado comigo no liceu Passos Manuel. Dois ou três anos mais novo, era um miúdo agressivo, sempre em actividade e que não podia deixar de chamar a atenção para os seus cabelos louros encaracolados e os olhos azulíssimos. Era aquilo a que podíamos chamar um malandreco reguilote.
Passados dez anos, ali estava ele, praticamente só, no comando de mais de meia-companhia. Quando cheguei, estava a braços com os restos da emboscada na Ponta Cóli, que tinha dado vários feridos e a morte ao furriel Bento. Havia tarefas burocráticas a cumprir e prazos a respeitar e o Gomes sofria por não saber o que fazer, parecendo não ter apoio de ninguém. Suava quase permanentemente e vivia numa tensão que não abrandava. Amava profundamente a mulher e a filha e, numa pequena embalagem de plástico, levava para as operações, num bolso do camuflado, uma frase escrita no reverso do retrato das duas:
- Abandonne-toi à ma providence et ne doutes jamais de mon amour. [Entrega-te à minha providência e nunca duvides do meu amor].
Era um jovem generoso a pedir que o guiassem. Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletíssimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais. Vi, num programa da televisão portuguesa, o estado em que a sepultura está, passadas que foram quase quatro dezenas de anos. Com poucas defesas a nível psíquico, o Gomes sofria cada vez mais. Voltei a encontrá-lo, na terra onde ambos vivemos. Era dentista, bem afreguesado e foi o dentista da minha família até que o consultório fechou. O resto todos sabemos. [...]
___________
O “Manel” Gomes tinha andado comigo no liceu Passos Manuel. Dois ou três anos mais novo, era um miúdo agressivo, sempre em actividade e que não podia deixar de chamar a atenção para os seus cabelos louros encaracolados e os olhos azulíssimos. Era aquilo a que podíamos chamar um malandreco reguilote.
Passados dez anos, ali estava ele, praticamente só, no comando de mais de meia-companhia. Quando cheguei, estava a braços com os restos da emboscada na Ponta Cóli, que tinha dado vários feridos e a morte ao furriel Bento. Havia tarefas burocráticas a cumprir e prazos a respeitar e o Gomes sofria por não saber o que fazer, parecendo não ter apoio de ninguém. Suava quase permanentemente e vivia numa tensão que não abrandava. Amava profundamente a mulher e a filha e, numa pequena embalagem de plástico, levava para as operações, num bolso do camuflado, uma frase escrita no reverso do retrato das duas:
- Abandonne-toi à ma providence et ne doutes jamais de mon amour. [Entrega-te à minha providência e nunca duvides do meu amor].
Era um jovem generoso a pedir que o guiassem. Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletíssimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais. Vi, num programa da televisão portuguesa, o estado em que a sepultura está, passadas que foram quase quatro dezenas de anos. Com poucas defesas a nível psíquico, o Gomes sofria cada vez mais. Voltei a encontrá-lo, na terra onde ambos vivemos. Era dentista, bem afreguesado e foi o dentista da minha família até que o consultório fechou. O resto todos sabemos. [...]
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 14 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14026: In Memoriam (210): Rolando Basto (1923-2014), pai do nosso camarada e amigo Álvaro Basto (José Teixeira)
4 comentários:
Só hoje vi/li esta triste notícia.
Lembro-me muito bem do Gomes, com quem falava muito quando por acaso nos encontrávamos em Bambadinca ou eu ia até ao Xime.
Era realmente uma "alma atormentada" em perfeito e total frenesim.
Riamos muito, mas também chorávamos os nossos bocados.
Foi daqueles que me deixou marca.
Que descanse em paz!
Para ele o meu abraço de camarigo
Joaquim Mexia Alves
A "vida"está a fazer aquilo que a guerra não conseguiu: levar cada combatente para a eternidade, sem marcar hora ou dia.
Cada dia que passa, parte mais um, do que vamos tendo conhecimento. Muitos partem ignorados, porque sempre fomos "soldados ignorados".
Condelências à familia e camaradas com quem mais privou.
Até sempre!
Mais um camarada que nos deixa, paz à sua alma, um dia nos encontraremos por aí.Mais um camarada que muito sofreu em vida porque como muitos de nós foi obrigado para uma guerra para a qual não tinha qualquer vocação. E não era a Pátria que nos mandava para lá,eram os governantes e as autoridades daquele tempo que sem qualquer legitimidade assim procediam.Ainda hoje há quem pense que os que fugiam que estavam errados.
Manuel Carvalho
Olá Camaradas
Na foto, o "Pereira" sou eu, Pereira da Costa, Cmdt da CArt.ª
Um Ab.
António J. P. Costa
Enviar um comentário