Arranjo tempo (e disposição), em agosto, para a retomar, a partir dos "rascunhos" guardados no meu baú...
A última história publicada data de 9/8/2010 (*)
Os seminários da Igreja Católica forneceram às forças armadas portuguesas, e sobretudo ao exército, importantes contingentes de graduados, milicianos, durante a guerra colonial. Furriéis e alferes, mas também capitães. Em quantidade e qualidade. Em geral, eram jovens com boa formação moral e intelectual, com hábitos de disciplina, sacrifício, resiliência e abnegação, e em princípio mais protegidos contra as "ideias subversivas" (ou "dissolventes") que grassavam nos liceus e universidades, sobretudo a partir da crise estudantil de 1962…
Tinham, além disso, competências relacionais (liderança, trabalho em equipa, gestão de conflitos) que eram relevantes para a condução de grupos de combate. Tinham também uma boa cultura geral e alguns animaram os "jornais de caserna" no mato…
Muitos eram oriundos do meio rural, mais conservador do que o meio citadino, e vinham de famílias pobres ou remediadas. Em geral, eram cooptados por toda uma vasta rede informal de professoras do ensino primário, catequistas e párocos, angariadores de potenciais vocações sacerdotais de entre os melhores alunos do ensino primário obrigatório.
Os seminários menores e maiores, nomeadamente diocesanos, ofereciam a estes jovens oportunidades de educação e mobilidade social ascendente que, à partida, lhes eram vedadas pela sua origem sociofamiliar. O acesso, nomeadamente ao ensino liceal, era limitado a certas camadas da população urbana. A barreira começava na preparação e nos exames de admissão ao liceu. As provas, escritas e orais, eram feitas em geral nas capitais de distrito, bem longe das pactas vilas e aldeias do interior do país…
Está por estudar o papel dos ex-seminaristas na nossa longa guerra colonial (1961/74)… Muitos deles, depois da saída do seminário, eram rapidamente chamados para a tropa… Recorde-se que, por força da Concordata de 1940 (assinada entre Portugal e o Vaticano), os sacerdotes católicos estavam dispensados do serviço militar obrigatório, podendo depois servir a Pátria como capelães castrenses, dependendo da vontade do seu bispo e das necessidades das Forças Armadas. Os seminaristas gozavam do mesmo privilégio.
Sobretudo os que deixavam de frequentar o seminário maior (curso de teologia, que se iniciava no 7º ano, de um total de 12 anos de seminário) eram rapidamente chamados às fileiras do exército. Recorde-se que as suas habilitações literárias não eram automaticamente reconhecidas pelo sistema de ensino oficial. Davam equiparação apenas para efeitos de emprego público e para a tropa. Os ex-seminaristas, com o 7º ano ou mais, não podiam inscrever-se automaticamente (e prosseguir os seus estudos) na escola pública e muito menos na universidade. Ou seja, o 7º ano do seminário (equivalente a 11 anos de escolaridade) não tinha os mesmos efeitos legais do 7º ano do liceu.
Não tinham, por isso, direito a "adiamento", como os estudantes universitários que não reprovassem… Não admira, por isso, que em quase todas as unidades ou subunidades houvesse um ou mais alferes miliciano, ou furriel miliciano, ex-seminarista.
Faltam-nos histórias de vida, relatos autobiográficos, depoimentos, entrevistas, trabalhos de investigação, estatísticas… Temos vinte e tal referências com o descritor "seminário", no nosso blogue. Há já alguns romances sobre este tema: recorde-se aqui, entre outros: (i) "O Seminarista e o Guerrilheiro”, de Cândido Matos Gago (edição de autor, 2015); e (ii) "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015). Mas também temos aqui o testemunho de vários capelães militares, membros da nossa Tabanca Grande: por exemplo, Horácio Fernandes, Mário de Oliveira, Arsénio Puim…
Este texto que se segue é um pequeno contributo para começar a colmar essa lacuna (o conhecimento sobre a participação de ex-seminaristas na guerra colonial). Trata-se de um longo diálogo sob a forma de entrevista, sendo B o entrevistador, que faz o papel de investigador, em contexto académico. Naturalmente que o texto é parcialmente ficcionado, de modo a se poder dizer que "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência"… (LG)
A – Não sou um tipo de ação, sou um contemplativo. De preferência, fico no meu cantinho, com as minhas pantufas e o meu gato, em lugar de tomar o avião e dar uma volta ao mundo.
B – Felizmente tens uma boa reforma, podias bem dar-te a esse luxo…
A – Mas, não. De resto, detesto viajar. E, mais ainda, de andar de avião.
B – Fobias, quem não as tem ?!
A – É mais fobia social do que outra coisa… E logo eu que fui diretor de pessoal toda a vida… Em grandes empresas, com centenas ou até milhares de colaboradores.
B – Claustrofobia ?
A – Também… Não ando de metro, não ando de avião. Isso também limitou, de certo modo, a minha carreira. Podia ter feito uma carreira internacional, cheguei a ser sondado por algumas multinacionais, nomeadamente do setor farmacêutico. Mas isso implicava viajar com frequência, viver no estrangeiro, hoje no Rio de Janeiro, amanhã no Dubai… O dinheiro não é tudo na vida…
B – Tudo tem um preço, é verdade…
A – Mesmo assim não consegui salvar o meu casamento… A minha ex-mulher era muito mais ambiciosa do que eu… Devíamos, os dois, ter trocado os papéis, eu ficar em casa a tomar conta dos putos…
B – Mas é mesmo horror aos espaços fechados?
A – Com a idade, tem-se vindo a agravar… Multidões, estádios, manifestações, espaços confinados… São imagens de infância, do "quarto escuro", de ficar sozinho em casa, enquanto a minha mãe ia às compras… Não sei… Acredita, não gosto de viajar, sobretudo de avião, barco, comboio, metro… Até de carro, em viagens de longo curso. Prefiro um bom passeio, a pé, à beira-mar, na maré vazia… Preciso de grandes espaços abertos...
B – Mas… nem mesmo um cruzeirito às ilhas gregas ?... Ou aos fiordes da Noruega ?
A – Nem isso, nem sequer uma excursão às Berlengas. Dispenso. Sei que moras para esses lados ou és dessa região… Peniche, não é ?!
B – Bem, sou da região, do Oeste, Estremadura… Compreendo, já te bastou o teu cruzeiro até à Guiné, em finais de 1968…
A – Sim, o nosso cruzeiro, já me esquecia que também foste, meses depois de mim, no "Niassa"…
B – O maldito cheiro do "Niassa"!...Eu sei lá, uma estranha mistura, merda, nafta, óleo, creolina, vomitado, maresia... A mim levou-me anos a sair-me das narinas…
A – Um cruzeiro felizmente de ida e voltam no nosso caso…
B – … E com tudo pago pela Pátria, não te esqueças… Exceto bebidas no bar… Eu fui em classe turística, tu em primeira… A Pátria lá sabia fazer as suas distinções…
A – Sabes bem que houve quem regressasse em caixão de chumbo.
B – E alguns, coitados, por lá ficaram aos bocados, nas picadas, ou a apodrecer nos rios, tarrafes, bolanhas, matas da Guiné…
Fez-se um silêncio, tácito, de cerca de um minuto, religiosamente respeitado pelos dois. Eu, que fazia o papel de entrevistador (B) para um trabalho académico sobre histórias de vida de ex-combatentes da guerra colonial, e o meu velho conhecido (e, porque não , também amigo e camarada de armas), o A…, cuja identidade não vou revelar, a seu pedido expresso… É demasiado conhecido ainda no seu meio profissional… Vou tratá-lo simplesmente por Zé… (Era, de resto, uma entrevista com consentimento informado e garantia de anonimato.)
A – Pois é, meu caro, se eu fosse um gajo de ação (ou de "tomates", para usar um termo do nosso calão militar…), eu não teria feito sequer aquela guerra!
B – Terias desertado, é isso ?!
A – Não, não gosto do termo, muito menos da ideia… Bem sabes como era difícil desertar no teatro de operações da Guiné… Cá, antes do embarque, talvez te safasses … Alguns tentaram e tiveram sorte… Mas não os considero heróis. Nem todos terão desertado por razões nobres!... Por exemplo, aos objetores de consciência ainda os posso respeitar e até admirar… Mas como avaliar a sinceridade dos seus propósitos... Houve objetores de consciência da 23ª hora...
B – Ser contra a guerra, aquela guerra, já era um motivo de peso…
A – Para mim, era uma questão de honra e de coerência: se eu me meto nas coisas, mesmo que depois me venha a arrepender, é para ir até ao fim… Tirando o medo (pouco racional) de viajar de avião, até acho que sou um gajo com um mínimo de coragem física… Na guerra, pelo menos não fui medricas, sem nunca me ter armado em herói…
B – Qual quê ?!... Tu até tinhas bons contactos em França, se bem me lembro, do tempo de seminário… Não te era difícil pores-te daqui para fora…
A – Enganas-te… E, de resto, a minha fantasia era a Suécia e as suecas, louras, de olhos azuis…
B – Ah, sim ?!... Muito me contas!...E hoje poderias lá viver, casado ou descasado, talvez pai de filhos e avô de netos lourinhos que não falariam uma única palavra de português…
A – Sim, era o meu sonho: engenheiro eletrónico, reformado, admirador de Olof Palme e dos Abba… Um grande país, que eu muito admiro, pela sua capacidade de concertação social e de sensibilidade ecológica… E só lá estive uma vez, num congresso…
B – … E, para além de uma reforma dourada, talvez também um pequeno monte no Alentejo, para matar saudades da Pátria perdida e depois reencontrada…
A – Nada disso, sou sentimental mas não saudosista… Com uma casa, sim, à beira do lago, em Varmland… Não te esqueças que continuo a detestar viajar… A Suécia ainda fica longe, mas continua a atrair-me… Acho que nasci no país errado, no tempo errado… que me perdoem os mais patriotas do que eu.
Fiz questão de solidarizar-me com as "tentações do pecado" do meu amigo ( e antigo companheiro de seminário), neste caso a de "dar à sola", "dar o salto", “fugir”, antes da tropa… Era um pecado mortal, um crime de lesa-pátria…
B – Não foi nada, Zé, que não me tivesse passado também pela cabeça… A mim, e a milhares de mancebos em idade militar… Só que eu não tinha, como tu, os contactos e a “guita”… Qualquer passador, para te pôr em França, a são e salvo, exigia-te, adiantados, 10 contos… Naquele tempo, por volta de 1968/69, era muita massa. Equivaleria hoje a mais de 3 mil euros…
A – Desertar não desertava. Não faz o meu género. Era algo que me repugnaria, sobretudo depois de ter feito o juramento de bandeira. Para mim, um juramento é algo de sagrado. O juramento de bandeira é um juramento de sangue. Mas faltar às sortes, ou à inspeção militar, ou até ser refratário… era coisa que eu devia ter feito, no devido tempo, e que não violava a minha consciência.
B – Como aconteceu, de resto, a centenas de milhares de gajos da nossa geração… que deram o "salto", os tais que "votaram com os pés" contra a situação, a ditadura, a miséria (para muitos), a guerra em África… Dizem que refratários foram para aí uns 250 mil… Faltosos não sei se há números, terão sido dezenas e dezenas de milhares, seguramente. Desertores, quase que se contam pelos dedos… Se não contarmos os africanos, sobretudo no final da guerra…
A – A porra toda foram os meus pais, se queres que te apresente um alibi… Filho único, mãe católica, beata, devota de Nossa Senhora de Fátima, pai republicano, do "reviralho", mas conservador, daqueles – e eram muitos! – com dúvidas sobre o destino a dar ao nosso glorioso império…
B – Em boa verdade, devias ter dado o salto antes de perfazeres os teus 18 anos, depois de teres acabado o 7º ano… Mas tens razão, Zé, um gajo não escolhe os pais, o país, a história… E depois o coração tem razões que a razão desconhece…
A – Pode ser uma atenuante, mas não é uma desculpa. Eu, na altura, era já um convicto existencialista, tinha lido o Sartre e o Camus, autores que estavam na moda, e só tinha uma opção a tomar: escolher a liberdade, a autodeterminação, como se diz agora… Sim, não me deveriam ter apanhado no "Niassa"…
B – Se, se, se… Bem sabes, pelo que me conheces (, e puxando agora um pouco pelos meus galões, como "académico", "investigador", "sociólogo", que é o papel em que estou aqui a entrevistar-te…), sabes que o "se" (ou o "if", em inglês) não existe em história, na historiografia… Não vais agora reescrever a tua história de vida, nem tu nem eu… De resto, até tens uma bela história de vida…
A – Bela ?!... Não gozes comigo!... Se eu pudesse voltar atrás, à encruzilhada dos meus 18 anos, eu teria cortado à esquerda… Virei à direita, ou melhor, segui em frente, com o rebanho, todos direitos ao matadouro…
B – Bolas!, tens passado, presente e futuro. Há quem o não tenha, muita gente da nossa geração não tem presente nem futuro… E vai ficar na "vala comum do esquecimento", como eu gosto de dizer. Tens, ao menos, uma família, uma carreira, tens saúde, uma boa reforma… E uma pátria!... Bolas, tens uma pátria, com mil anos de existência… Uma língua que é trinta vezes mais falada que o teu adorado sueco que nunca chegaste a aprender e a falar!... Desculpa, se me excedi…
Aqui o meu entrevistado, interrompeu-me com um ar que tanto podia ser de amargura como de irritação:
A – Carreira ?!... Tirei o curso que não queria, direito, para fazer a vontade ao meu pai que trabalhava num tribunal, e por causa da merda do latinório, e acabei por fazer o papel sabujo e burocrático do sargento na gestão de recursos humanos… Passei por muitas empresas, quase sempre para fazer o jogo dos patrões, ou melhor, dos chefões do conselho de administração. Que os patrões, a esses, nunca se lhes via a cara…
E, continuando em registo de (in)confidência, o meu entrevistado, o Zé, acrescentou:
A – Na guerra, não sei se matei… É possível que sim, mas nunca ou raramente se via a cara do gajo que te queria matar… em emboscadas nas picadas ou nos ataques ou flagelações aos aquartelamentos e destacamentos… Vias-lhes as caras só quando prisioneiros ou deixados mortos no capim… Mas nas empresas cortei muitas orelhas, cabeças, pernas, braços, tripas, corações… E sobretudo, cortei muitos sonhos… Apanhei o pior da gestão de pessoal (hoje diz-se, eufemisticamente, "gestão do capital humano", coisificam-se as pessoas…). Refiro-me às empresas nacionalizadas, no nosso desvario revolucionário do 11 de março de 75, e que depois foram (re)privatizadas…
B – "Gorduras", cortaste muitas "gorduras"… Não era assim que se dizia, algo cinicamente, com a moda da "lean production", a produção limpa ou magra, na nossa indústria transformadora ?!
A – Trabalho de carniceiro, devia ter vergonha de o reconhecer e dizer. E até nem me pagavam mal…
B – Alguém tem sempre de fazer o "trabalho sujo", seja nas empresas seja na guerra… Tal como esse camarada que tu foste substituir no tal Pelotão de Caçadores Nativos…
É uma história algo insólita que merece ser retomada mais adiante. Para já anote-se a resposta que me deu o meu entrevistado:
A – Não me fodas com essa, bem sabes que eu era um gajo com princípios e valores… Andei no seminário, casei pela igreja, ia à missa aos domingos, … Como tu, tive uma boa educação, nalguns dos melhores colégios internos do país de Salazar, que eram os nossos seminários, tirei um curso superior…
B – Todos éramos bons rapazes, simplesmente não tínhamos vocação para padres ou então foi Deus que não foi suficientemente convincente para nos motivar… Ou que nos abandonou.
A – Nem para soldados… Deixa-me contar-te: numa empresa que trabalhava para a Lisnave, mandei uma vez mais de uma centena para a rua, tudo gajos "velhos" e "inaptos", acima dos 40 anos, só com a 4ª classe ou menos… E alguns, coitados, tinham passado, como eu, pela Guiné, e tinham bocas para sustentar, filhos a estudar, empréstimos do apartamento a pagar ao banco… Mas nessa altura, em finais de 80 ou princípios de 90, ainda tínhamos vergonha de falar da guerra. Ninguém dizia que tinha estado na Guiné, e muito nem no seminário, mas eu sabia pela história deles, o cadastro de pessoal…
B – Tempos difíceis, não queria estar na tua pele… E, confesso, também não saberia o que fazer no teu lugar…
A – Nessa altura, eu ainda era um bom católico, praticante… Falava com Deus e tinha um bom diretor espiritual… Hoje vai-se ao psicólogo por tudo e por nada. Vivi esses dramas de consciência, sozinho, quando muito com a presença, distante, de Deus e a santa paciência do meu confessor, dominicano, um bom homem, mas de outro século, que nada sabia de economia nem de finanças…
Tive a infeliz ideia de o interromper para lhe perguntar:
B – Ainda continuas crente ?
Fulminou-me com um olhar de reprovação:
A – Por favor, não me voltes a fazer essa pergunta, que é do foro mais íntimo de um homem. Combinámos que íamos apenas falar do nosso tempo de Guiné…
B – Desculpa, Zé, percebi que estavas a entreabrir uma porta ou uma janela. A conversa é como as cerejas, e eu não tenho um guião rígido de entrevista. Nem quero que abras o livro todo… Eu, por mim, já te contei que fui parar a uma companhia africana (… com o Spínola, já não se dizia "companhia de pretos"). Mas não me posso queixar: safado, safei-me e voltei inteiro (ou talvez não tão inteiro quanto isso)…
A – De acordo… Eu, por mim, passei por Mafra e Vendas Novas, fiz os mínimos para merecer os galões (ou as divisas ?, nunca sei a diferença) de aspirante a oficial miliciano… Como sabes, fui sempre bom aluno, no seminário (em Santarém, em Almada, nos Olivais) e depois na faculdade de direito de Lisboa, mas a carreira de tiro e a instrução física não eram o meu forte… Não era dado ao desporto, fui apenas guarda-redes de hóquei em patins… Lembras-te ?!… Era mau no futebol, no atletismo… Em suma, podia ter chumbado, e ir parar a cabo miliciano ou até a soldado básico…
B – O que não te convinha… Pelo que te encheste-te de brio…
A – Pois, não… Queria acabar a merda da tropa, casar-me, trabalhar, continuar a estudar, ter filhos… Na instrução, safei-me, como muitos outros. E sem fazer batota. Claro, fui parar a atirador. Nunca meti uma cunha, e até tinha um colega nosso nos psicotécnicos…
B – E, tal como eu, foste parar à Guiné e a uma companhia africana… Pior sorte, não era possível…
A – Não, fui parar a um Pelotão de Caçadores Nativos, pior ainda…
B – Conta-me lá como foi isso…
A – Fui mobilizado e integrado num batalhão de artilharia, fazia parte de uma unidade de quadrícula. Era alferes miliciano, atirador de artilharia, que eu nunca soube o que era, por comparação com os atiradores de infantaria… Mas não deu para aquecer o lugar… Passado pouco tempo, uns meses, fui chamado para substituir, em rendição individual, um alferes que comandava um Pelotão de Caçadores Nativos, lá para os lados de Farim, na região do Óio…
B – Chegaste a estar com ele ? A conhecê-lo ?
A – Não, já estava de baixa psiquiátrica,ou talvez na metrópole, depois de ter levado uma porrada do Spínola. Havia um pacto de silêncio entre os soldados do pelotão, que era interétnico, com uma maioria relativa de origem fula, e os poucos graduados metropolitanos (2 cabos, 2 soldados condutores, 2 furriéis e poucos mais).
B – A minha companhia era composta por pessoal fula. Os fulas eram "ingénuos", quero eu dizer, não sabiam ser cínicos nem politicamente corretos. Contavam-me muitas histórias, de boa fé, algumas macabras, do início da guerra. E alguns aceitavam, como parte dos seus deveres de lealdade e disciplina, "fazer o trabalho sujo" que nós, brancos, os "tugas", detestávamos fazer… Como, por exemplo, os interrogatórios, com tortura, de prisioneiros, civis ou guerrilheiros… Nenhum de nós tinha sido treinado para isso, em Mafra, em Vendas Novas, em Tavira, em Lamego… Os fulas eram leais (e preciosos "auxiliares" das NT, tanto as milícias como os soldados do recrutamento local). Os mais velhos tinham uma boa experiência de guerra, e sabiam "pôr a cantar" qualquer prisioneiro… Coitados deles se chegassem a cair nas mãos dos "turras",,,
A – Pois, esse alferes que eu fui substituir, era ainda do tempo do Schulz e batia-se à cruz de guerra. Disseram-me que era valente. Outros, que era doido varrido. Não sei muitos pormenores, porque o pelotão não me recebeu bem e fechou-se em copas… De resto foi transferido para a região do Cacheu antes de eu lá chegar.
Só pela consulta do arquivo na "secretaria" do meu Pel Caç Nat, é que eu vim a descobrir que o tipo era do distrito de Braga, e – imagina! - que também tinha andado no seminário dos franciscanos… Onze anos ou mais, já não me recordo. Devia estar quase a chegar a padre.
B – Não terá sido um caso virgem…
A – Resumindo: o tipo não chegou a receber a tão almejada cruz de guerra das mãos do Schulz, levou, isso sim, uma porrada do Spínola, logo em princípios de 1969. Veio-se a descobrir que ele se autopromovera em "senhor da guerra", fazendo a guerra à sua maneira, à revelia, em grande parte, da cadeia hierárquica… Havia quem dissesse que não era bem assim, que ele tinha as costas quentes, tanto no QG como no comando do batalhão, ou pelo menos por parte do major de operações que estava ao corrente do que ele fazia… e que o protegia. Ambos eram minhotos e "bons católicos".
No seu destacamento (isto passou-se na região do Óio, na região fronteiriça, que eu nunca conheci), ele tinha formado, logo em meados de 1967, um "grupo especial" (cerca de 15 a 20 homens da sua inteira confiança, incluindo alguns milícias, fulas). Faziam raides em tabancas sob duplo controlo, ou em "áreas libertadas", em "barracas" (acampamentos temporários) do PAIGC, sobretudo na zona fronteiriça com o Senegal. O objetivo era o "ronco" (de preferência, captura de armas, munições de armas pesadas, liquidação de elementos ou simpatizantes do IN, isolados ou de passagem pelas tabancas e corredores fronteiriços).
B – Que me lembre, no meu tempo, o Marcelino da Mata era o único que tinha um "grupo especial" desse tipo, mas às ordens do com-chefe, dizia-se… Em Angola, havia os "Flechas", ligados à PIDE/DGS, se não me engano…
A – Ao que parece, este alferes e o seu "grupo especial" atuavam à revelia da hierarquia militar. Mas o tipo era considerado um "grande operacional"… E incontestavelmente deu provas de grande coragem. Tinha, com ele, um sargento miliciano ou do QP, não sei ao certo, já com duas comissões de serviço na Guiné: usava, ao que parece, um cavalo marinho e encarregava-se dos interrogatórios, falava bem o crioulo…. E inclusive estava este Pel Caç Nat autorizado a usar armamento e fardas do PAIGC, no tempo do Schulz, para certas "missões" (reconhecimento, contrapenetração, golpe de mão, etc.) na zona fronteiriça… No pelotão, ainda fui encontrar algumas Kalash, já usadas…
B – Um dia, eles teriam mesmo que dar nas vistas, não?!
A – Metade do pelotão (incluindo os 2 cabos e os 2 furriéis) mais o grosso da milícia ficavam a guarnecer o destacamento durante as saídas do "grupo especial", à noite ou de madrugada… Oficiosamente, iam fazer emboscadas ou patrulhamentos ofensivos.
Segundo a versão do nosso entrevistado, a coisa parece que funcionou sob rodas durante meses e meses. Não houve baixas e ganhou-se dinheiro a rodos com os "roncos"…
A – Como sabes, o armamento capturado era trocado por "pesos"… O patacão, justiça se faça ao meu antecessor, era distribuído por todo o pelotão, e não apenas pela malta do "grupo especial"… Eu acho que a guerra é viciante como a droga… Enfim, tudo corria bem até à morte do sargento, que pisou um fornilho, num trilho que ia dar a uma "barraca", já abandonada… Houve mais 3 feridos graves. E foi preciso chamar o heli para as evacuações. A operação era "clandestina" (ou só conhecida do tal major de operações)…
Aí chegou a mostarda ao nariz do Spínola: alguém do comando do batalhão levou com os patins, o major de operações, creio eu, e o alferes foi destituído do comando do Pel Caç Nat. Se bem me lembro, apanhou 30 dias de prisão disciplinar agravada. Com uma boa cunha, acabou na psiquiatria no HM 241 e, passadas umas semanas, foi evacuado para a metrópole. Acabou a guerra sem honra nem glória…
B – Não me lembro desse caso… Mas em 1970 encontrei, nos Adidas, em Bissau, dois camaradas que estavam à espera de julgamento em tribunal militar, um capitão e um furriel de uma companhia que estava na região do Cacheu… Eram acusados de tortura e liquidação de prisioneiros, rapto e violação de bajudas… Não sei qual foi o desfecho…
A – Também ouvi falar desse caso… Creio que o capitão foi ilibado, e o furriel apanhou uns anos de prisão…
B – E então é aqui que tu entras neste filme…
A – Recebi ordens para fazer as malas e ir comandar o pelotão, já colocado na região do Cacheu. Não foi fácil dar a volta à situação: havia uma crise de autoridade no pelotão. E de falta de confiança no oficial, que era eu, que veio substituir o anterior líder, um militar carismático, sem dúvida, e lendário, para os seus homens… Capaz de dar a vida por eles...
B – Em suma, fizeste a guerra e a paz…
A – Podes escrever aí, que sim… Fiz a guerra, defendi-me a mim e aos meus homens, sem nunca me armar em "rambo"… Mas também abri uma escola para os meus soldados, para as mílícias e para os "djubis" da tabanca, construí um poço e um fontanário, apoiei a extensão do posto sanitário do batalhão a que estávamos adidos, fizemos uma horta, oferecíamos legumes à população e às famílias dos nossos homens, pus as nossas parcas viaturas ao serviço da população, transportámos doentes e sacos de arroz e mancarra...
B – Sei que tiveste uma condecoração qualquer…
A – Não, não tive uma cruz de guerra, mas sim um belíssimo louvor do general Spínola, que ainda hoje muito me honra e cujo teor já um dia mostrei aos meus filhos, quando eles já eram crescidinhos, com idade para ouvir falar da guerra em que o pai andou…
Confesso que fiz mal em esconder, no meu currículo, durante tantos anos, o facto de ter feito uma comissão de serviço militar na Guiné… E, já agora, de ter omitido, no meu CV profissional, a minha passagem pelo seminário, de que guardo, de resto, as melhores recordações, contrariamente a muita outra gente…
E aqui termina a 1ª parte da nossa entrevista, gravada em ficheiro áudio. A segunda parte ainda está por transcrever, um trabalho moroso: há uns anos atrás, gastava-se um hora para se transcrever cerca de 10 minutos de conversa (incluindo a tarefa de rever e fixar o texto). Hoje está tudo mais facilitado, a inteligência artificial, a famosa IA, chegou para tornar obsoletos os escribas como eu...
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Foto do autor, à esquerda, em Contuboel, Junho de 1969
Foto (e texto): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados.
Foto (e texto): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados.
A Galeria dos meus heróis (8) > Os seminaristas
por Luís Graça
Os seminários da Igreja Católica forneceram às forças armadas portuguesas, e sobretudo ao exército, importantes contingentes de graduados, milicianos, durante a guerra colonial. Furriéis e alferes, mas também capitães. Em quantidade e qualidade. Em geral, eram jovens com boa formação moral e intelectual, com hábitos de disciplina, sacrifício, resiliência e abnegação, e em princípio mais protegidos contra as "ideias subversivas" (ou "dissolventes") que grassavam nos liceus e universidades, sobretudo a partir da crise estudantil de 1962…
Tinham, além disso, competências relacionais (liderança, trabalho em equipa, gestão de conflitos) que eram relevantes para a condução de grupos de combate. Tinham também uma boa cultura geral e alguns animaram os "jornais de caserna" no mato…
Muitos eram oriundos do meio rural, mais conservador do que o meio citadino, e vinham de famílias pobres ou remediadas. Em geral, eram cooptados por toda uma vasta rede informal de professoras do ensino primário, catequistas e párocos, angariadores de potenciais vocações sacerdotais de entre os melhores alunos do ensino primário obrigatório.
Os seminários menores e maiores, nomeadamente diocesanos, ofereciam a estes jovens oportunidades de educação e mobilidade social ascendente que, à partida, lhes eram vedadas pela sua origem sociofamiliar. O acesso, nomeadamente ao ensino liceal, era limitado a certas camadas da população urbana. A barreira começava na preparação e nos exames de admissão ao liceu. As provas, escritas e orais, eram feitas em geral nas capitais de distrito, bem longe das pactas vilas e aldeias do interior do país…
Está por estudar o papel dos ex-seminaristas na nossa longa guerra colonial (1961/74)… Muitos deles, depois da saída do seminário, eram rapidamente chamados para a tropa… Recorde-se que, por força da Concordata de 1940 (assinada entre Portugal e o Vaticano), os sacerdotes católicos estavam dispensados do serviço militar obrigatório, podendo depois servir a Pátria como capelães castrenses, dependendo da vontade do seu bispo e das necessidades das Forças Armadas. Os seminaristas gozavam do mesmo privilégio.
Sobretudo os que deixavam de frequentar o seminário maior (curso de teologia, que se iniciava no 7º ano, de um total de 12 anos de seminário) eram rapidamente chamados às fileiras do exército. Recorde-se que as suas habilitações literárias não eram automaticamente reconhecidas pelo sistema de ensino oficial. Davam equiparação apenas para efeitos de emprego público e para a tropa. Os ex-seminaristas, com o 7º ano ou mais, não podiam inscrever-se automaticamente (e prosseguir os seus estudos) na escola pública e muito menos na universidade. Ou seja, o 7º ano do seminário (equivalente a 11 anos de escolaridade) não tinha os mesmos efeitos legais do 7º ano do liceu.
Não tinham, por isso, direito a "adiamento", como os estudantes universitários que não reprovassem… Não admira, por isso, que em quase todas as unidades ou subunidades houvesse um ou mais alferes miliciano, ou furriel miliciano, ex-seminarista.
Faltam-nos histórias de vida, relatos autobiográficos, depoimentos, entrevistas, trabalhos de investigação, estatísticas… Temos vinte e tal referências com o descritor "seminário", no nosso blogue. Há já alguns romances sobre este tema: recorde-se aqui, entre outros: (i) "O Seminarista e o Guerrilheiro”, de Cândido Matos Gago (edição de autor, 2015); e (ii) "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015). Mas também temos aqui o testemunho de vários capelães militares, membros da nossa Tabanca Grande: por exemplo, Horácio Fernandes, Mário de Oliveira, Arsénio Puim…
Este texto que se segue é um pequeno contributo para começar a colmar essa lacuna (o conhecimento sobre a participação de ex-seminaristas na guerra colonial). Trata-se de um longo diálogo sob a forma de entrevista, sendo B o entrevistador, que faz o papel de investigador, em contexto académico. Naturalmente que o texto é parcialmente ficcionado, de modo a se poder dizer que "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência"… (LG)
A – Não sou um tipo de ação, sou um contemplativo. De preferência, fico no meu cantinho, com as minhas pantufas e o meu gato, em lugar de tomar o avião e dar uma volta ao mundo.
B – Felizmente tens uma boa reforma, podias bem dar-te a esse luxo…
A – Mas, não. De resto, detesto viajar. E, mais ainda, de andar de avião.
B – Fobias, quem não as tem ?!
A – É mais fobia social do que outra coisa… E logo eu que fui diretor de pessoal toda a vida… Em grandes empresas, com centenas ou até milhares de colaboradores.
B – Claustrofobia ?
A – Também… Não ando de metro, não ando de avião. Isso também limitou, de certo modo, a minha carreira. Podia ter feito uma carreira internacional, cheguei a ser sondado por algumas multinacionais, nomeadamente do setor farmacêutico. Mas isso implicava viajar com frequência, viver no estrangeiro, hoje no Rio de Janeiro, amanhã no Dubai… O dinheiro não é tudo na vida…
B – Tudo tem um preço, é verdade…
A – Mesmo assim não consegui salvar o meu casamento… A minha ex-mulher era muito mais ambiciosa do que eu… Devíamos, os dois, ter trocado os papéis, eu ficar em casa a tomar conta dos putos…
B – Mas é mesmo horror aos espaços fechados?
A – Com a idade, tem-se vindo a agravar… Multidões, estádios, manifestações, espaços confinados… São imagens de infância, do "quarto escuro", de ficar sozinho em casa, enquanto a minha mãe ia às compras… Não sei… Acredita, não gosto de viajar, sobretudo de avião, barco, comboio, metro… Até de carro, em viagens de longo curso. Prefiro um bom passeio, a pé, à beira-mar, na maré vazia… Preciso de grandes espaços abertos...
B – Mas… nem mesmo um cruzeirito às ilhas gregas ?... Ou aos fiordes da Noruega ?
A – Nem isso, nem sequer uma excursão às Berlengas. Dispenso. Sei que moras para esses lados ou és dessa região… Peniche, não é ?!
B – Bem, sou da região, do Oeste, Estremadura… Compreendo, já te bastou o teu cruzeiro até à Guiné, em finais de 1968…
A – Sim, o nosso cruzeiro, já me esquecia que também foste, meses depois de mim, no "Niassa"…
B – O maldito cheiro do "Niassa"!...Eu sei lá, uma estranha mistura, merda, nafta, óleo, creolina, vomitado, maresia... A mim levou-me anos a sair-me das narinas…
A – Um cruzeiro felizmente de ida e voltam no nosso caso…
B – … E com tudo pago pela Pátria, não te esqueças… Exceto bebidas no bar… Eu fui em classe turística, tu em primeira… A Pátria lá sabia fazer as suas distinções…
A – Sabes bem que houve quem regressasse em caixão de chumbo.
B – E alguns, coitados, por lá ficaram aos bocados, nas picadas, ou a apodrecer nos rios, tarrafes, bolanhas, matas da Guiné…
Fez-se um silêncio, tácito, de cerca de um minuto, religiosamente respeitado pelos dois. Eu, que fazia o papel de entrevistador (B) para um trabalho académico sobre histórias de vida de ex-combatentes da guerra colonial, e o meu velho conhecido (e, porque não , também amigo e camarada de armas), o A…, cuja identidade não vou revelar, a seu pedido expresso… É demasiado conhecido ainda no seu meio profissional… Vou tratá-lo simplesmente por Zé… (Era, de resto, uma entrevista com consentimento informado e garantia de anonimato.)
A – Pois é, meu caro, se eu fosse um gajo de ação (ou de "tomates", para usar um termo do nosso calão militar…), eu não teria feito sequer aquela guerra!
B – Terias desertado, é isso ?!
A – Não, não gosto do termo, muito menos da ideia… Bem sabes como era difícil desertar no teatro de operações da Guiné… Cá, antes do embarque, talvez te safasses … Alguns tentaram e tiveram sorte… Mas não os considero heróis. Nem todos terão desertado por razões nobres!... Por exemplo, aos objetores de consciência ainda os posso respeitar e até admirar… Mas como avaliar a sinceridade dos seus propósitos... Houve objetores de consciência da 23ª hora...
B – Ser contra a guerra, aquela guerra, já era um motivo de peso…
A – Para mim, era uma questão de honra e de coerência: se eu me meto nas coisas, mesmo que depois me venha a arrepender, é para ir até ao fim… Tirando o medo (pouco racional) de viajar de avião, até acho que sou um gajo com um mínimo de coragem física… Na guerra, pelo menos não fui medricas, sem nunca me ter armado em herói…
B – Qual quê ?!... Tu até tinhas bons contactos em França, se bem me lembro, do tempo de seminário… Não te era difícil pores-te daqui para fora…
A – Enganas-te… E, de resto, a minha fantasia era a Suécia e as suecas, louras, de olhos azuis…
B – Ah, sim ?!... Muito me contas!...E hoje poderias lá viver, casado ou descasado, talvez pai de filhos e avô de netos lourinhos que não falariam uma única palavra de português…
A – Sim, era o meu sonho: engenheiro eletrónico, reformado, admirador de Olof Palme e dos Abba… Um grande país, que eu muito admiro, pela sua capacidade de concertação social e de sensibilidade ecológica… E só lá estive uma vez, num congresso…
B – … E, para além de uma reforma dourada, talvez também um pequeno monte no Alentejo, para matar saudades da Pátria perdida e depois reencontrada…
A – Nada disso, sou sentimental mas não saudosista… Com uma casa, sim, à beira do lago, em Varmland… Não te esqueças que continuo a detestar viajar… A Suécia ainda fica longe, mas continua a atrair-me… Acho que nasci no país errado, no tempo errado… que me perdoem os mais patriotas do que eu.
Fiz questão de solidarizar-me com as "tentações do pecado" do meu amigo ( e antigo companheiro de seminário), neste caso a de "dar à sola", "dar o salto", “fugir”, antes da tropa… Era um pecado mortal, um crime de lesa-pátria…
B – Não foi nada, Zé, que não me tivesse passado também pela cabeça… A mim, e a milhares de mancebos em idade militar… Só que eu não tinha, como tu, os contactos e a “guita”… Qualquer passador, para te pôr em França, a são e salvo, exigia-te, adiantados, 10 contos… Naquele tempo, por volta de 1968/69, era muita massa. Equivaleria hoje a mais de 3 mil euros…
A – Desertar não desertava. Não faz o meu género. Era algo que me repugnaria, sobretudo depois de ter feito o juramento de bandeira. Para mim, um juramento é algo de sagrado. O juramento de bandeira é um juramento de sangue. Mas faltar às sortes, ou à inspeção militar, ou até ser refratário… era coisa que eu devia ter feito, no devido tempo, e que não violava a minha consciência.
B – Como aconteceu, de resto, a centenas de milhares de gajos da nossa geração… que deram o "salto", os tais que "votaram com os pés" contra a situação, a ditadura, a miséria (para muitos), a guerra em África… Dizem que refratários foram para aí uns 250 mil… Faltosos não sei se há números, terão sido dezenas e dezenas de milhares, seguramente. Desertores, quase que se contam pelos dedos… Se não contarmos os africanos, sobretudo no final da guerra…
A – A porra toda foram os meus pais, se queres que te apresente um alibi… Filho único, mãe católica, beata, devota de Nossa Senhora de Fátima, pai republicano, do "reviralho", mas conservador, daqueles – e eram muitos! – com dúvidas sobre o destino a dar ao nosso glorioso império…
B – Em boa verdade, devias ter dado o salto antes de perfazeres os teus 18 anos, depois de teres acabado o 7º ano… Mas tens razão, Zé, um gajo não escolhe os pais, o país, a história… E depois o coração tem razões que a razão desconhece…
A – Pode ser uma atenuante, mas não é uma desculpa. Eu, na altura, era já um convicto existencialista, tinha lido o Sartre e o Camus, autores que estavam na moda, e só tinha uma opção a tomar: escolher a liberdade, a autodeterminação, como se diz agora… Sim, não me deveriam ter apanhado no "Niassa"…
B – Se, se, se… Bem sabes, pelo que me conheces (, e puxando agora um pouco pelos meus galões, como "académico", "investigador", "sociólogo", que é o papel em que estou aqui a entrevistar-te…), sabes que o "se" (ou o "if", em inglês) não existe em história, na historiografia… Não vais agora reescrever a tua história de vida, nem tu nem eu… De resto, até tens uma bela história de vida…
A – Bela ?!... Não gozes comigo!... Se eu pudesse voltar atrás, à encruzilhada dos meus 18 anos, eu teria cortado à esquerda… Virei à direita, ou melhor, segui em frente, com o rebanho, todos direitos ao matadouro…
B – Bolas!, tens passado, presente e futuro. Há quem o não tenha, muita gente da nossa geração não tem presente nem futuro… E vai ficar na "vala comum do esquecimento", como eu gosto de dizer. Tens, ao menos, uma família, uma carreira, tens saúde, uma boa reforma… E uma pátria!... Bolas, tens uma pátria, com mil anos de existência… Uma língua que é trinta vezes mais falada que o teu adorado sueco que nunca chegaste a aprender e a falar!... Desculpa, se me excedi…
Aqui o meu entrevistado, interrompeu-me com um ar que tanto podia ser de amargura como de irritação:
A – Carreira ?!... Tirei o curso que não queria, direito, para fazer a vontade ao meu pai que trabalhava num tribunal, e por causa da merda do latinório, e acabei por fazer o papel sabujo e burocrático do sargento na gestão de recursos humanos… Passei por muitas empresas, quase sempre para fazer o jogo dos patrões, ou melhor, dos chefões do conselho de administração. Que os patrões, a esses, nunca se lhes via a cara…
E, continuando em registo de (in)confidência, o meu entrevistado, o Zé, acrescentou:
A – Na guerra, não sei se matei… É possível que sim, mas nunca ou raramente se via a cara do gajo que te queria matar… em emboscadas nas picadas ou nos ataques ou flagelações aos aquartelamentos e destacamentos… Vias-lhes as caras só quando prisioneiros ou deixados mortos no capim… Mas nas empresas cortei muitas orelhas, cabeças, pernas, braços, tripas, corações… E sobretudo, cortei muitos sonhos… Apanhei o pior da gestão de pessoal (hoje diz-se, eufemisticamente, "gestão do capital humano", coisificam-se as pessoas…). Refiro-me às empresas nacionalizadas, no nosso desvario revolucionário do 11 de março de 75, e que depois foram (re)privatizadas…
B – "Gorduras", cortaste muitas "gorduras"… Não era assim que se dizia, algo cinicamente, com a moda da "lean production", a produção limpa ou magra, na nossa indústria transformadora ?!
A – Trabalho de carniceiro, devia ter vergonha de o reconhecer e dizer. E até nem me pagavam mal…
B – Alguém tem sempre de fazer o "trabalho sujo", seja nas empresas seja na guerra… Tal como esse camarada que tu foste substituir no tal Pelotão de Caçadores Nativos…
É uma história algo insólita que merece ser retomada mais adiante. Para já anote-se a resposta que me deu o meu entrevistado:
A – Não me fodas com essa, bem sabes que eu era um gajo com princípios e valores… Andei no seminário, casei pela igreja, ia à missa aos domingos, … Como tu, tive uma boa educação, nalguns dos melhores colégios internos do país de Salazar, que eram os nossos seminários, tirei um curso superior…
B – Todos éramos bons rapazes, simplesmente não tínhamos vocação para padres ou então foi Deus que não foi suficientemente convincente para nos motivar… Ou que nos abandonou.
A – Nem para soldados… Deixa-me contar-te: numa empresa que trabalhava para a Lisnave, mandei uma vez mais de uma centena para a rua, tudo gajos "velhos" e "inaptos", acima dos 40 anos, só com a 4ª classe ou menos… E alguns, coitados, tinham passado, como eu, pela Guiné, e tinham bocas para sustentar, filhos a estudar, empréstimos do apartamento a pagar ao banco… Mas nessa altura, em finais de 80 ou princípios de 90, ainda tínhamos vergonha de falar da guerra. Ninguém dizia que tinha estado na Guiné, e muito nem no seminário, mas eu sabia pela história deles, o cadastro de pessoal…
B – Tempos difíceis, não queria estar na tua pele… E, confesso, também não saberia o que fazer no teu lugar…
A – Nessa altura, eu ainda era um bom católico, praticante… Falava com Deus e tinha um bom diretor espiritual… Hoje vai-se ao psicólogo por tudo e por nada. Vivi esses dramas de consciência, sozinho, quando muito com a presença, distante, de Deus e a santa paciência do meu confessor, dominicano, um bom homem, mas de outro século, que nada sabia de economia nem de finanças…
Tive a infeliz ideia de o interromper para lhe perguntar:
B – Ainda continuas crente ?
Fulminou-me com um olhar de reprovação:
A – Por favor, não me voltes a fazer essa pergunta, que é do foro mais íntimo de um homem. Combinámos que íamos apenas falar do nosso tempo de Guiné…
B – Desculpa, Zé, percebi que estavas a entreabrir uma porta ou uma janela. A conversa é como as cerejas, e eu não tenho um guião rígido de entrevista. Nem quero que abras o livro todo… Eu, por mim, já te contei que fui parar a uma companhia africana (… com o Spínola, já não se dizia "companhia de pretos"). Mas não me posso queixar: safado, safei-me e voltei inteiro (ou talvez não tão inteiro quanto isso)…
A – De acordo… Eu, por mim, passei por Mafra e Vendas Novas, fiz os mínimos para merecer os galões (ou as divisas ?, nunca sei a diferença) de aspirante a oficial miliciano… Como sabes, fui sempre bom aluno, no seminário (em Santarém, em Almada, nos Olivais) e depois na faculdade de direito de Lisboa, mas a carreira de tiro e a instrução física não eram o meu forte… Não era dado ao desporto, fui apenas guarda-redes de hóquei em patins… Lembras-te ?!… Era mau no futebol, no atletismo… Em suma, podia ter chumbado, e ir parar a cabo miliciano ou até a soldado básico…
B – O que não te convinha… Pelo que te encheste-te de brio…
A – Pois, não… Queria acabar a merda da tropa, casar-me, trabalhar, continuar a estudar, ter filhos… Na instrução, safei-me, como muitos outros. E sem fazer batota. Claro, fui parar a atirador. Nunca meti uma cunha, e até tinha um colega nosso nos psicotécnicos…
B – E, tal como eu, foste parar à Guiné e a uma companhia africana… Pior sorte, não era possível…
A – Não, fui parar a um Pelotão de Caçadores Nativos, pior ainda…
B – Conta-me lá como foi isso…
A – Fui mobilizado e integrado num batalhão de artilharia, fazia parte de uma unidade de quadrícula. Era alferes miliciano, atirador de artilharia, que eu nunca soube o que era, por comparação com os atiradores de infantaria… Mas não deu para aquecer o lugar… Passado pouco tempo, uns meses, fui chamado para substituir, em rendição individual, um alferes que comandava um Pelotão de Caçadores Nativos, lá para os lados de Farim, na região do Óio…
B – Chegaste a estar com ele ? A conhecê-lo ?
A – Não, já estava de baixa psiquiátrica,ou talvez na metrópole, depois de ter levado uma porrada do Spínola. Havia um pacto de silêncio entre os soldados do pelotão, que era interétnico, com uma maioria relativa de origem fula, e os poucos graduados metropolitanos (2 cabos, 2 soldados condutores, 2 furriéis e poucos mais).
B – A minha companhia era composta por pessoal fula. Os fulas eram "ingénuos", quero eu dizer, não sabiam ser cínicos nem politicamente corretos. Contavam-me muitas histórias, de boa fé, algumas macabras, do início da guerra. E alguns aceitavam, como parte dos seus deveres de lealdade e disciplina, "fazer o trabalho sujo" que nós, brancos, os "tugas", detestávamos fazer… Como, por exemplo, os interrogatórios, com tortura, de prisioneiros, civis ou guerrilheiros… Nenhum de nós tinha sido treinado para isso, em Mafra, em Vendas Novas, em Tavira, em Lamego… Os fulas eram leais (e preciosos "auxiliares" das NT, tanto as milícias como os soldados do recrutamento local). Os mais velhos tinham uma boa experiência de guerra, e sabiam "pôr a cantar" qualquer prisioneiro… Coitados deles se chegassem a cair nas mãos dos "turras",,,
A – Pois, esse alferes que eu fui substituir, era ainda do tempo do Schulz e batia-se à cruz de guerra. Disseram-me que era valente. Outros, que era doido varrido. Não sei muitos pormenores, porque o pelotão não me recebeu bem e fechou-se em copas… De resto foi transferido para a região do Cacheu antes de eu lá chegar.
Só pela consulta do arquivo na "secretaria" do meu Pel Caç Nat, é que eu vim a descobrir que o tipo era do distrito de Braga, e – imagina! - que também tinha andado no seminário dos franciscanos… Onze anos ou mais, já não me recordo. Devia estar quase a chegar a padre.
B – Não terá sido um caso virgem…
A – Resumindo: o tipo não chegou a receber a tão almejada cruz de guerra das mãos do Schulz, levou, isso sim, uma porrada do Spínola, logo em princípios de 1969. Veio-se a descobrir que ele se autopromovera em "senhor da guerra", fazendo a guerra à sua maneira, à revelia, em grande parte, da cadeia hierárquica… Havia quem dissesse que não era bem assim, que ele tinha as costas quentes, tanto no QG como no comando do batalhão, ou pelo menos por parte do major de operações que estava ao corrente do que ele fazia… e que o protegia. Ambos eram minhotos e "bons católicos".
No seu destacamento (isto passou-se na região do Óio, na região fronteiriça, que eu nunca conheci), ele tinha formado, logo em meados de 1967, um "grupo especial" (cerca de 15 a 20 homens da sua inteira confiança, incluindo alguns milícias, fulas). Faziam raides em tabancas sob duplo controlo, ou em "áreas libertadas", em "barracas" (acampamentos temporários) do PAIGC, sobretudo na zona fronteiriça com o Senegal. O objetivo era o "ronco" (de preferência, captura de armas, munições de armas pesadas, liquidação de elementos ou simpatizantes do IN, isolados ou de passagem pelas tabancas e corredores fronteiriços).
B – Que me lembre, no meu tempo, o Marcelino da Mata era o único que tinha um "grupo especial" desse tipo, mas às ordens do com-chefe, dizia-se… Em Angola, havia os "Flechas", ligados à PIDE/DGS, se não me engano…
A – Ao que parece, este alferes e o seu "grupo especial" atuavam à revelia da hierarquia militar. Mas o tipo era considerado um "grande operacional"… E incontestavelmente deu provas de grande coragem. Tinha, com ele, um sargento miliciano ou do QP, não sei ao certo, já com duas comissões de serviço na Guiné: usava, ao que parece, um cavalo marinho e encarregava-se dos interrogatórios, falava bem o crioulo…. E inclusive estava este Pel Caç Nat autorizado a usar armamento e fardas do PAIGC, no tempo do Schulz, para certas "missões" (reconhecimento, contrapenetração, golpe de mão, etc.) na zona fronteiriça… No pelotão, ainda fui encontrar algumas Kalash, já usadas…
B – Um dia, eles teriam mesmo que dar nas vistas, não?!
A – Metade do pelotão (incluindo os 2 cabos e os 2 furriéis) mais o grosso da milícia ficavam a guarnecer o destacamento durante as saídas do "grupo especial", à noite ou de madrugada… Oficiosamente, iam fazer emboscadas ou patrulhamentos ofensivos.
Segundo a versão do nosso entrevistado, a coisa parece que funcionou sob rodas durante meses e meses. Não houve baixas e ganhou-se dinheiro a rodos com os "roncos"…
A – Como sabes, o armamento capturado era trocado por "pesos"… O patacão, justiça se faça ao meu antecessor, era distribuído por todo o pelotão, e não apenas pela malta do "grupo especial"… Eu acho que a guerra é viciante como a droga… Enfim, tudo corria bem até à morte do sargento, que pisou um fornilho, num trilho que ia dar a uma "barraca", já abandonada… Houve mais 3 feridos graves. E foi preciso chamar o heli para as evacuações. A operação era "clandestina" (ou só conhecida do tal major de operações)…
Aí chegou a mostarda ao nariz do Spínola: alguém do comando do batalhão levou com os patins, o major de operações, creio eu, e o alferes foi destituído do comando do Pel Caç Nat. Se bem me lembro, apanhou 30 dias de prisão disciplinar agravada. Com uma boa cunha, acabou na psiquiatria no HM 241 e, passadas umas semanas, foi evacuado para a metrópole. Acabou a guerra sem honra nem glória…
B – Não me lembro desse caso… Mas em 1970 encontrei, nos Adidas, em Bissau, dois camaradas que estavam à espera de julgamento em tribunal militar, um capitão e um furriel de uma companhia que estava na região do Cacheu… Eram acusados de tortura e liquidação de prisioneiros, rapto e violação de bajudas… Não sei qual foi o desfecho…
A – Também ouvi falar desse caso… Creio que o capitão foi ilibado, e o furriel apanhou uns anos de prisão…
B – E então é aqui que tu entras neste filme…
A – Recebi ordens para fazer as malas e ir comandar o pelotão, já colocado na região do Cacheu. Não foi fácil dar a volta à situação: havia uma crise de autoridade no pelotão. E de falta de confiança no oficial, que era eu, que veio substituir o anterior líder, um militar carismático, sem dúvida, e lendário, para os seus homens… Capaz de dar a vida por eles...
B – O pelotão devia sentir-se "órfão" e "injustiçado", não ?!
A – Levei muitos meses a gerir toda esta crise… E não sei se o consegui, quando acabou a minha comissão... Em contrapartida, abracei de alma e coração a política spinolista "Por Uma Guiné Melhor", fiz (ou apoiei) reordenamentos e o melhor que podia e sabia fazer na área da ação psico-social… Confesso que admirava o nosso comandante-chefe e sobretudo o governador-geral, António Spínola.
B – Em suma, fizeste a guerra e a paz…
A – Podes escrever aí, que sim… Fiz a guerra, defendi-me a mim e aos meus homens, sem nunca me armar em "rambo"… Mas também abri uma escola para os meus soldados, para as mílícias e para os "djubis" da tabanca, construí um poço e um fontanário, apoiei a extensão do posto sanitário do batalhão a que estávamos adidos, fizemos uma horta, oferecíamos legumes à população e às famílias dos nossos homens, pus as nossas parcas viaturas ao serviço da população, transportámos doentes e sacos de arroz e mancarra...
B – Sei que tiveste uma condecoração qualquer…
A – Não, não tive uma cruz de guerra, mas sim um belíssimo louvor do general Spínola, que ainda hoje muito me honra e cujo teor já um dia mostrei aos meus filhos, quando eles já eram crescidinhos, com idade para ouvir falar da guerra em que o pai andou…
Confesso que fiz mal em esconder, no meu currículo, durante tantos anos, o facto de ter feito uma comissão de serviço militar na Guiné… E, já agora, de ter omitido, no meu CV profissional, a minha passagem pelo seminário, de que guardo, de resto, as melhores recordações, contrariamente a muita outra gente…
E aqui termina a 1ª parte da nossa entrevista, gravada em ficheiro áudio. A segunda parte ainda está por transcrever, um trabalho moroso: há uns anos atrás, gastava-se um hora para se transcrever cerca de 10 minutos de conversa (incluindo a tarefa de rever e fixar o texto). Hoje está tudo mais facilitado, a inteligência artificial, a famosa IA, chegou para tornar obsoletos os escribas como eu...
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 9 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6839: A galeria dos meus heróis (7): Furriel Carvalho, ou melhor, Car...rasco, o homem do 'tiro de misericórdia' (Luís Graça)
Postes anteriores da série:
21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4849: A galeria dos meus heróis (6): O Renoir de Montemuro, nascido no ano zero da idade atómica (Luís Graça)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)
12 Janeiro 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)
Último poste da série > 9 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6839: A galeria dos meus heróis (7): Furriel Carvalho, ou melhor, Car...rasco, o homem do 'tiro de misericórdia' (Luís Graça)
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1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)
12 Janeiro 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)
16 comentários:
Bela história Luís, falta o resto, mas os protagonistas já devo saber quem são.
Muito do que li, não me é estranho, com as devidas diferenças de funções, eu sabia muita coisa, não que tivesse participado nelas, mas porque não andava ali a dormir.
Gostava que a história acabasse por ser um louvor ao Patriotismo daquele tempo, não de agora, vamos ver o final...
Não podemos deixar passar a mensagem que andamos por lá só a fazer merda, também demos muito àquele povo e aquela terra, não me arrependo de nada, hoje faria o mesmo, o 'salto' nem pensar, acho isso nojento, cobarde, e 'desertor' nem comento para não levar aqui uma porrada de alguns camaradas.
É verdade que durante mais de 20 anos nunca se falava muito, uns com os outros, dos tempos da Guiné, e agora se apanho um qualquer, lá ficamos na conversa que nunca acaba, mesmo não o conhecendo de lado nenhum, mas esteve lá naquela terra vermelha, suou aquela humidade incrível, o calor e a humidade, faz um gajo ficar louco.
As loucuras que tanto tenho falado, vem daí, da dificuldade de adaptação ao terreno, seja com mais ou menos mordomias, era tudo uma trampa.
E de oficial de operações, estamos falados, tenho que chegue para contar.
Isto foi uma boa escola também, se assim não fosse do que íamos agora falar?
Das Suecas? Sim conheci muitas pois trabalhei numa multinacional Sueca, e muitas mulheres cá vieram visitar os maridos e namorados, mas não esqueço, que foram eles, uns dos maiores financiadores do nosso querido PAIGC!
Virgilio Teixeira
Luís
A parte final é genial.
Faz lembrar o que acontecia por cá em 1961, ano em que tudo começou:
….agora vou acabar por haver pouco petróleo no candeeiro.
Quanto aos faltosos, os números oficiais devem ser na ordem de 180.000 cerca de
17% do recenseamento, mas Zé Martins é que é o homem com conhecimento destes números.
Ainda quanto aos faltosos, quando estive a dar ER, em Aveiro, havia lá um recruta que cada vez que ia de fim de semana era preciso a GNR o ir buscar. Dizia que tinha que ficar lá na terra a trabalhar para a família e, por fim, nunca mais apareceu e soubesse que foi a 'salto' trabalhar para a França.
Ab.
Valdemar Queiroz
Camaradas: há neste momento peçp menos dpois camaradas nossos, da Tabanca de Matosinhos, cuja fia está por isso: ppoderão durar alguns dias, semanas, meses... Estamos todos a "prazo", o mesmo é dizer: por um fio... É uma boa ocasião, na nossa idade,. entrados nos setenta, para fazer o "balanço de uma vida"...Há muitos segredos e confidências por fazer... A mim apeteceu-me fazer esta pequena homenagen a todos ps que vieram do seminário e deram o seu melhor no TO da Guiné... Está ppor fazer esse levantamento.
O saudoso alferes Joaquim da Costa Marques comandante do 3º. Pel. da Cart 2520 também foi oriundo do seminário. Pouco fiquei a saber dele, era uma irmandade de 9 ou 10 elementos, creio que de uma família modesta. Ainda me lembro que no dia do meu aniversário em 1969 na Guiné, fez o seu voto de felicidades em Latim. Obrigado Marques, até um dia.
Zé Nascimento, temos aqui, na Tabanca Grande, muitos alferes que passaram pelo seminário. Este texto é também uma homenagem a eles. Um abraço do Luís.
É uma entrevista? Um diálogo entre dois camaradas seniores com muita experiência de vida? A sua leitura entusiasma, todas as questões humanas, sociais, laborais, políticas, religiosas, de guerra, são abordadas com o realismo, a lucidez, a verdade, de quem é adulto e sabe que a vida é finita
Virgílio Ferreira no livro "Manhã Submersa" retrata bem o pesadelo desses garotos de doze anos, sobretudo dos meios rurais do interior do país, sem liberdade religiosa e sem liberdade de expressão por imposição dos pais, dos professores, dos padres e dos governantes, quando entravam nos espaços limitados e claustrofóbicos dos seminários e ficavam privados da liberdade de circulação pelas ruas das aldeias e pelos caminhos de terra dos campos onde a sua natureza de potros selvagens se expandia e conseguia nesse contacto sem barreiras com a natureza mais agreste da Terra sacudir o peso de imposições familiares e sociais. Passei lá um ano, os meus irmãos, três, também passaram por lá, eu confesso que foi o pior ano de "tropa" da minha vida. Quase todos os filhos de lavradores, pequenos, médios e até grandes, da minha aldeia, da minha geração e da seguinte, fizeram essa malfadado tirocínio. Também é verdade que a maior parte se não o fizessem ficariam para sempre a lavrar e cavar a terra. Dessas gerações nenhum saiu padre
Porque como os outros que procuram fazer a paz com a consciência, a verdade e o passado, eu confesso que só fui para a Guiné , por falta de coragem. Digo falta de coragem, porque eu nesse tempo para lá de alguma agricultura pouco ou nada sabia fazer.
Fui para lá convencido de que era uma guerra perdida e admirei muito os que pensando assim deram o "salto" O espaço do Blogue do Luís Graça e camaradas da Guiné, é um espaço livre, ninguém dúvida disso Eu gostaria que pelo menos alguns desses "fugitivos" fizessem alguns depoimentos neste espaço.
Muito obrigado ao Luís Graça e ao outro camarada quase anónimo, que eu desconheço, sou doutros anos. Fico à espera da segunda parte e doutras se quiserem.
Caro amigo Luís
Só uma observação: não considero que o meu "Cabra-cega" seja "romance"... Usei, eu próprio, um pseudónimo como autor e outro como personagem do livro, dei também nomes fictícios a outras personagens reais. Mas os factos são reais, não são romance.
A. Marques Lopes
Marques Lopes: obrigado pelo reparo... O teu livro, que eu "devorei", tem um narrador que é o teu "alter ego", e não fica mal classificar-se como romance... O senso comum dá, muitas vezes, um sentido algo pejorativo à palavra "romance", sinónimo de "ficºão", "fantasia", "imaginação" por oposição a "realidade"... Sem dúvida que o longo percurso, do seminário à guerra colonial, foi uma longa "picada, cheia de minas e armadilhas". Um abraço fraterno e parabéns pela tua frontalidade: há muitos de nós que não ainda não conseguem "dar a cara"... Luís
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ro·man·ce
substantivo masculino
1. Narração histórica em versos simples.
2. Língua ou conjunto de línguas derivadas do latim.
3. Género narrativo em prosa, geralmente longo, de aventuras imaginárias ou reproduzidas da realidade.
4. Relação amorosa.
5. Fantasia.
adjectivo de dois géneros
6. Românico.
"romance", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/romance [consultado em 24-08-2018].
Olá Camaradas
Ainda gostava de saber porque é que o número de ex-seminaristas era tão elevado nas companhias.
Em 1968, em 4 alferes possíveis 3 eram ex-seminaristas e havia mais nas outras CArt do Bart 1896.´
Mais tarde em Mansabá dos 3 existentes um era ex-seminarista e bastante avançado nos estudos. Quando no encontrámos recentemente fiquei a saber que quando ele saíu do seminário, só lá ficaram 10.
Era uma "crise de vocações" ou a igreja que tinha deixado de responder às necessidades espirituais das pessoas, neste caso dos jovens seminaristas e futuros padres?
Jogo nesta última hipótese à qual teremos de adicionar o ambiente sócio-psicológico que se vivia em Portugal e a conivência da hierarquia com "o sistema". Era frequente encontrarmos "dissidentes" e críticos, mas só na parte baixa da estrutura, como era o caso do padre o BCaç 4612.
Mas era um fenómeno inexorável a deserção do seminário. Claro que a "tropa" aproveitava-se... atiradores, com alguma tendência para liderar (que se aprendia desde o início no treino dos seminários) faziam sempre falta.
Um Ab.
António J. P. Costa
Seminarista capitão Lourenço do Saltinho.
Seminário para além do "Cabra Cega" "Gente Feliz Com Lágrimas" de João Melo.
Niassa o cheiro no porão a vomitado, urina, nafta e maresia o nosso miserável regresso 27 meses depois .
Um abraço
Obrugado, Juvenal, referes-te à CCAÇ 3490, que esteve no Saltinho (1971/74) e que teve uma trágica história (a emboscada do Quirafo em abril de 1972)...
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/CCA%C3%87%203490
Sim, o escritor açoriano João Melo, fur mil enf em Angola, também foi seminarista...
Eu julgo, em resposta ao António Costa, que existiam muitos seminaristas nos batalhões e companhias, mas a nível de furriéis e alferes, devido à escolaridade, pois no seminário era fácil fazer o 5º para furriel e o 7º para alferes, e depois deram o salto do seminário porque cá fora já podiam ter uma vida melhor, com a escolaridade que trouxeram do seminário. Não contavam talvez, que iriam fazer uma missão bem pior na guerra, do que seminarista e depois padre.
Se bem se lembram nos anos 60 não havia assim tanta gente com escolaridade para as funções na tropa de furriel e alferes, o mesmo não se pode dizer do soldado raso, pois desta matéria não faltou durante uns tempos.
Sei alguma coisa, mas não muito, o meu pai também esteve no seminário, saiu com uma grande escola de vida, que nunca teria se não o metessem no seminário, mas pouco mais sei, porque ele sempre muito fechado, nunca se abriu muito sobre estas questões.
Eu próprio, poderia ser hoje um ex-seminarista, ou um ex-padre, pois quando acabei a primária, acho que o meu pai tinha ideia de me mandar para lá, só que eu era rebelde demais para isso, e entretanto como foi mobilizado para a India, em 1955, não houve tempo para essas formalidades, e quando voltou passados quase 3 anos já era tarde demais, e assim me safei dessa!
Estou a falar nisto pela rama, mas pormenores não os sei, era tudo muito fechado.
Um abraço para todos, incluindo os anónimos.
Virgilio Teixeira
(ex-alferes miliciano, Guiné, 1967/69)
Caro amigo Luís, novamente
Tem todos os significados que disseste, tu e o Priberam. Mas tem outro, que é o real imaginado ou o imaginário do real, e não está correcto dar aquele nome àquilo que não é nada disto, até porque, na generalidade, todos associam o nome romance a este significado.
Mantenha di muitu bo tardi!
Caros amigos
Já faz tempo que não tenho intervenção aqui neste espaço.
Situações diversas a isso tem levado, sendo que os meus problemas de saúde parecem estar bem encaminhados.
Mas não quer dizer que não acompanhe com atenção e interesse. Apenas "falta tempo".
Nem mesmo os parabéns em que costumava aparecer e que serviam também para 'prova de vida' tem acontecido, em parte porque também o gmail modificou e tornou a 'coisa' menos fácil.
E embora esta interessante "entrevista semi-ficcionada" tenha muita coisa para abordar, aliás como já referido aí acima em comentários anteriores, quero apenas fixar-me naquela parte de "discussão" sobre "ir à guerra ou dar o salto" principalmente por parte daqueles que, à época, não estavam 'alinhados' com o regime vigente e nem com as suas práticas.
É que os havia!
No verão de 1968 estive em Paris, em Bruxelas e em Londres. Ganhei algum dinheiro na apanha do tomate para uma fábrica que havia na minha zona, a Idal, o que me permitiu estar ausente do país de 14 de Agosto a 11 de Setembro desse ano (os meus pais não tinham dinheiro suficiente para sustentar 'viagens de estudante'), na companhia de um outro amigo vilafranquense (que, anos mais tarde, teria algum protagonismo no PRD).
De SudExpress até Paris, de boleias entre Paris e Bruxelas e volta, de avião (1.020$00) de Londres para Lisboa.
Fui ver como era a vida fora da península ibérica. Fui ver como e se poderia viver por lá, nesses países. Fui apanhar o rescaldo do "Maio de 68". Apanhei o fim da chamada "primavera de Praga" com a invasão da Checoslováquia pelas forças do Pacto de Varsóvia. Apanhei a "queda da cadeira" do Prof. Oliveira Salazar.
Regressei com a determinação de que deveria "fazer a tropa e estar no T.O., fosse ele qual fosse".
As razões ficam para outra ocasião.
Mas acho que fiz muito bem, que foi uma decisão muito acertada.
E por isso aqui estou convivendo convosco. Os "guerreiros", os "patrioteiros", os patriotas como eu, e os outros de todos os matizes.
Vou aguardar o resto da "entrevista".
Abraços
Hélder Sousa
Hélder
Bem-vindo, pelas melhoras de saúde e para apresentares as tuas opiniões.
Interessante, em 1968 julgo que já estavas prestes 'a ir prá tropa', teres conseguido autorização para saíres livremente do país.
Eu, em Nov1971, já na peluda (regressei da Guiné Dez1970) tive muita dificuldade, chatices, requerimentos, etc. para arranjar Passaporte e desisti.
Ab.
Valdemar Queiroz
Olá Valdemar
Obrigado pela tua saudação.
Vou tentar voltar a ser mais interventivo.
Quanto à situação que referes (autorização para sair do País em 'vésperas' de ser chamado a cumprir o SMO), tenho a dizer que não me recordo muito bem dos pormenores.
Sei que as viagens (Lisboa-Paris e Londres-Lisboa) foram preparadas e compradas através do "turismo estudantil" (à época era estudante no IIL), que foi preciso tratar de seguro e outras coisas mas não me recordo do quê nem como foram tratadas.
Durante a viagem de comboio, para além do "revisor", para o bilhete, fui abordado por uns "senhores à paisana", próximo da fronteira espanhola, que me perguntaram o que ia fazer, quando voltava e como (lembro que mostrei o bilhete do avião de Londres para Lisboa) e depois não houve mais nada a registar.
Fui às "sortes" a Santarém pois o meu recenseamento foi da minha onde nasci e que pertencia a esse Distrito, não tenho a certeza se foi em Junho ou Julho (e não tenho aqui a caderneta militar à mão para poder confirmar). Sei que fomos uns quantos da aldeia, nascidos em 1948, que se fez a 'festa' do apuramento (fomos todos 'apurados') e que aquando da Festa da aldeia, que ocorre no último domingo de Agosto, não estive presente por me encontrar fora, na tal viagem.
Abraço
Hélder Sousa
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