sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20088: Manuscrito(s) (Luís Graça) (169): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte I - O rio Grande...



Lourinhã > c. 1940 > Ponte sobre o Rio Grande, na avenida de António José de Almeida... Foto (ou coleção) de Francisco Fernandes. Cortesia da página no Facebook Lourinhã noutros tempos, mantida pela ADL - Associação para o Desenvolvimento da Lourinhã.



Manuscrito(s) (Luís Graça) Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares > 

Parte I: O rio Grande



Da serra, azul, de Montejunto às dunas da Praia da Areia Branca,  corria o rio, Grande, da tua infância.  Era grande só de nome,  era grande à tua escala, quando eras menino e moço,  e nele brincavas, apanhando enguias, com o teu pai...

Lembras-te ?  Usavam um velho chapéu de chuva, preto, esburacado, como se fosse um camaroeiro.

Só era verdadeiramente grande quando violento,galgando casas e campos,  o rio, Grande, da tua infância.

Até Deus ficava isolado na igreja do convento,  Deus, os presos da cadeia comarcã e a mestre escola e as bancas de peixe e hortaliça do mercado municipal e o matadouro e o quartel dos bombeiros.


Nos dias de inundações e enxurradas,  fazia se gazeta à escola, à catequese e à missa, e era uma festa para os putos. Tomara que chova três dias sem parar!, cantarolava a miudagem em coro...

Lembras-te como era larga a foz do rio e grandes as férias grandes de verão, uma eternidade, duravam enquanto durasse o pião.

E havia uma ponte de madeira, com as Berlengas, ao largo, e o cabo Carvoeiro, ao fundo, e, mais longe ainda, onde o sol se punha, o mar, medonho, revolto, dos teus avoengos,  desaparecidos entre as brumas da memória das Índias e dos Brasis, e o cacimbo matinal das bolanhas das Guinés.

Talvez houvesse, também, senhoras de chapéu alto,  magras, elegantes, citadinas, lisboetas, passeando em barcos a remos e fumando, imagina!,  cigarros de boquilha.  Já não te lembras dos barqueiros, passados todos estes anos. Mas devia haver barqueiros, no rio, Grande, da tua infância, como no rio Sena, em Paris,  e nos quadros do Renoir.

Dizem que os vivos voltam sempre ao local do crime onde nasceram e viveram. Mas um dia o tsunami do esquecimento  irá varrer a tua praia, as tuas dunas, o teu rio, o adro do recreio da tua escola, a tua rede neuronal, o teu álbum de fotografias, amarelecidas, dos rios  Geba e do Corubal, e os lugares da infância onde tu poderias ter sido feliz.

Mas quem sabe se foste feliz ou se poderias tê-lo sido ? Felizmente que não há escalas de medição da felicidade, válidas e fiáveis, e esse exercício é uma pura inutilidade,  o das palavras cruzadas da felicidade.

Dizia-se que o rio, Grande, da tua infância era navegável no tempo dos fenícios, romanos, visigodos, mouros e francos, mas não era rio, era braço de mar, indomável, braço armado do terrível poder de ditar as leis da vida e da morte, de fecundar a terra, de lavrar o mar, de povoar os vales e os cabeços, e de semear os cemitérios.

Nasceste a ouvir o mar, o barulho do mar e dos moinhos de vento que te deixaram os árabes, dizem uns, ou os flamengos, dizem outros, não sei o que está inscrito no teu ADN, mas se Deus te marcou é porque algum defeito te achou.

Batizaram-te cristão, na pia da igreja, gótica, do castelo, que foi românica,  e como antes terá sido mesquita mourisca ou capela visigótica, e, muito antes ainda, templo romano ou anta, dólmen, menir.

Perdeste-te, por amores e guerras, no caminho sul de Santiago e chamaram Grande ao rio da tua infância.

Em noites de pavor palúdico, na Guiné, imaginavas-te numa piroga louca, à deriva, pelo rio Grande de Buba das tuas geografias emocionais.

Nascia, pensavas tu, em Montejunto o rio, Grande, da tua infância,  e era azul a serra, vista do mar.  Mas tu nunca soubeste, em menino, o que ficava por detrás do horizonte. Por detrás de uma serra ficava outra serra, explicava-te a senhora professora de geografia, da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu.

Era curto o horizonte dos meninos da tua rua, a rua do Castelo que terminava no cemitério, o terminal da morte. Nunca foste, na camioneta do João Henriques, espreitar o que ficava por detrás da serra de Montejunto.  De um lado o mar, que era muito maior que o pobre rio, Grande, da tua infância; e do outro a silhueta, azul, da serra, pontuada de moinhos brancos.

Que afinal não era tão alta, a serra, como tu a vias da torre de menagem dos teus castelos de brincar às guerras de mouros e cristãos. Ou quando ias pescar enguias no rio, Grande, da tua infância.

Hoje sabes que já não há enguias no teu rio e que tudo é à escala  do nosso infinitamente pequeno e humano. E que só Alá, dizem, é grande.

Lourinhã, 10 de maio de 2015. Revisto.

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O planeta pode estar a arder em febre e fogo, que os miúdos, esses, em toda a parte têm a extraordinária capacidade de saber "dar à volta" ás tragédias humanas... LG

Anónimo disse...

Os Rios das nossas infâncias!
Quase todos teremos tido o “nosso Rio”.
Tantas brincadeiras,sonhos e aventuras.

Tão perto do Rio Grande de Luís Graça existe o Rio Alcabrichel do Maxial.
Nasce na serra de Monte Junto e deságua na praia Atlântica do Porto Novo/Maceira.
Tão perto!
E,mais uma vez...O mundo é pequeno e a nossa tabanca grande!

Nos verdes anos pouco importaria onde o Rio nascia ou para onde ia.
Então,um pouco como quanto a nós próprios.
Mas aquela consciência de que a água que passava silenciosamente junto àquela pedra nunca mais voltaria para trás,símbolo talvez imbuído da inexorável passagem do nosso tempo linear,tem me acompanhado pela já longa vida.

Surge no texto uma leve referência ao Rio Grande de Buba.
O nosso Rio Grande!
As lágrimas de frustração e saudade dos muitos que junto a ele “sobreviveram” terão contribuído para o sal
por ele transportado para o mar tropical.

“Mar salgado,quanto do teu sal são lágrimas de Portugal !”

Um abraço do J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Õ teu rio Alcabrichel do Maxial também é "meu", passa no Vimeiro e desagua em Porto Novo... E nasce no Montejunto, que eu vejo todos os dias da minha nova casa na Lourinhã... E é maior que o rio Grande da minha infância...

Quando eu era puto, ia fazer "termas" ao Vimeiro, ou melhor, "inalações"... Mais acima, para norte, ficam as praias de Valmitão e Porto Dinheiro, e a vila de Ribamar dos meus avoengos Maçaricos...

Tenho textos sobre estes "sítios mágicos", que irei repescar, em tua homenagem, meu amigo e camarada, aqui tão perto e tão longe....

Todos os rios, Grandes e Belos, são nossos!

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Vimeiro da piscina de água termal “natural-aquecida” que,já em época posterior, valia bem a viagem de carro desde o Monte Estoril .

Vimeiro onde (então) se comiam os mais fantásticos tomates crus recheados com uma pasta(!) de sardinha enlatada ,ovo cozido,cebola picada,salsa também picada e manteiga.
(Servidos por mim ,tanto na Suécia como na solarenga Key West floridiana,não só criam “clientes “ como ajudam a... matar saudades! )

Vimeiro.......

J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Diz a Wikipedia:

O rio Alcabrichel, ou ribeira de Alcabrichel, é um rio português que nasce na Serra de Montejunto perto de Vila Verde dos Francos [, no concelho de Alenquer,], passa por Maxial, Ermegeira, Abrunheira, Ramalhal, Amial, Quinta de Paio Correia, A dos Cunhados, Sobreiro Curvo, Quinta da Piedade, Porto Rio e Maceira, indo desaguar no Atlântico na praia de Porto Novo (Maceira) [, concelho de Torres Vedras], após percorrer cerca de 25 quilómetros.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Alcabrichel

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Em rigor, as termas do Vimeiro já ficam no território de Torres Vedras, Maceira, no limite com Vimeiro (Lourinhã)...

Eram florescentes, as termas do Vimeiro antes do 25 de Abril...Ainda funcionam, e a piscina também...

Fiz uma bonita festa dos meus 70 anos, no restaurante panorâmico do Hotel Golfo Mar, na praia de Porto Novo... Surpresa da Alice... Ouvi dizer que mudou de gerência...