quarta-feira, 12 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22194: Historiografia da presença portuguesa em África (262): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Atenda-se a uma expressão lapidar de Chelmicki neste documento: “Eis aqui o que nos resta depois de 400 anos de posse; miseráveis presídios, nenhuma indústria, falta de comércio e de cultura, um deplorável estado de ruína. Tudo, tanto nas Ciências e Artes, como nas administrações, não tendo melhoras, não tendo progressos, ficará estacionário, em breve é retrógrado. Portugal, com os olhos fitos no novo hemisfério com a riqueza das minas, não se importou com as possessões africanas. Aquelas estão perdidas para sempre, mas com estas que ainda existem na posse, Portugal, em poucos anos, com boa administração, tornará a ganhar o seu esplendor".
O documento de Chelmicki é de um diagnóstico frio e sem concessões, mas não lhe falta sonho, ele admite que a ocupação da possessão explorará as enormes potencialidades que a terra oferece. Bem curioso neste documento, e naturalmente compreensível, nunca se fala no que o mar oferece, os estudos hidrográficos eram incipientes, pensava-se que aquele peixe dos rios era bom para a subsistência das populações, não se imaginava minimamente a riqueza das pescas da Guiné. Pois este documento procura cativar o decisor político para apostar na fertilidade da agricultura guineense. Mas exigia-se uma renovação de métodos, uma administração eficiente, e Portugal ainda caminhava vagarosamente para uma nova etapa de desenvolvimento, a Regeneração. Esta Corografia Cabo-Verdiana é verdadeiramente o retrato da Guiné da primeira metade do século XIX, magistralmente complementado com a Memória sobre o estado atual da Senegâmbia Portuguesa de Honório Pereira Barreto.

Um abraço do Mário


Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (4)

Mário Beja Santos

José Conrado Carlos de Chelmicki é autor da "Corografia Cabo-verdiana ou Descrição Geográfico-Histórica da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné", em dois volumes, tendo sido o primeiro publicado em 1841. Este Tenente do Corpo de Engenharia nasceu em Varsóvia, é um jovem quando vem combater pela causa liberal em Portugal, distingue-se pela sua bravura, foi Cavaleiro da Ordem de Cristo, da Torre e Espada, de Nossa Senhora da Vila Viçosa, igualmente condecorado em Espanha, distintíssimo oficial colocado em vários pontos do país, deve-se-lhe uma obra singular, uma descrição ampla e certamente documentada de uma Guiné que poucos anos depois da publicação dos Tomos I e II é alvo de um documento que vem confirmar o que ele observara na sua digressão numa Guiné sem fronteiras, refiro-me concretamente à Memória da Senegâmbia, de Honório Pereira Barreto.

São dois volumes com o recheio precioso de informação, já descreveu uma súmula histórica, percorremos os dois distritos da colónia, Chelmicki alertou para as potencialidades agrícolas, ao tempo o tráfico de escravos caminha para o fim, era crucial encontrar alternativas, atrair investimentos, trazer mais gente. Ao contrário de outros autores, ele não amesquinha o labor indígena, dignifica-o, veja-se como ele fala do artesanato, e com que entusiasmo:
“Quanto à Guiné, nos estabelecimentos portugueses é impossível procurar vestígios de indústria. Não podemos dizer o mesmo dos indígenas: denotam grande aptidão para todos os ofícios mecânicos. Assim os Mandingas Mouros são muito engenhosos. Fiam, tecem, e matizam panos de algodão, ainda que não com a mesma perfeição dos das ilhas de Cabo Verde. São ferreiros, carpinteiros, sofríveis serralheiros. Vi uma espada feita à imitação das nossas, que nada talvez deixava a desejar. Cortam bem os couros e peles, dão-lhes cor, e imitam perfeitamente a marroquim e cordovão. Fazem bolsas para caça, polvorinhos de chifres, primorosamente cobertos com couro. Consertam células, fazem bolsas como carteiras para arrecadar papéis, âmbar, ouro, coral, etc. Encontram-se não menos hábeis ferreiros fazem estruturas para portas, armas de guerra, freios, estribos, esporas, etc.”

Fala também do azeite e vinho de palma, das operações de extração, refere a existência de uma cerveja de milho, e mais adiante escreve: “Os Balantas fabricam sal, fervendo água do mar em tachos de barro. Este sal é claro, mas muito miúdo, pelo que apesar de haver o das ilhas de Cabo Verde, este é preferido pelo gentio. Os Jalofos fazem também a tinta de anil, quase do mesmo modo como em Cabo Verde. Apanham as folhas dos arbustos, antes da sua fortificação, e só a quantidade necessária para tingir imediatamente os seus panos, dos quais, como fica dito, são mui formosos e tão tintos que ficam parecendo cetins”, citando André Alvares de Almada. Noutro lugar, voltará a exaltar a panaria, deste modo: “Os panos, tecidos e colchas atraem a admiração de todos os viajantes, por bem-feitas, cores lindas e lindos lavores: porém, sobretudo, pela maneira como são fabricados”. Descreve minuciosamente o modo de fiar, o tipo de tear (peça única, com muitas camas, feito a obra de arte e o tear vai para o fogo) e carateriza depois os panos: “Estes panos são de algodão, só ou misturado com lã ou seda. Compõem-se de seis ou mais bandas de um pé de largura sobre seis ou oito de comprimento: cozidas umas às outras pelas ourelas, conforme a largura do pano que se quer ter”. Falando da organização militar e do sistema defensivo, dá-nos igualmente informações preciosas. “Numa parte da província, como em Guiné, estão os nossos presídios cercados de hordas selvagens, e são expostos aos seus insultos, ataques e diárias depredações e rapinas”.

Fala do desgraçado estado da Guiné, diz mesmo que presenciou os insultos com muita frequência, tanto dos aliados da Europa como dos gentios da Guiné, e conta uma história que é eloquente:
“No ano de 1836, entrou no porto de Bissau, a esquadrilha francesa de Gorée com artilharia carregada e morrões acesos, exigindo certa quantia, que o governador francês do Senegal quis extorquir do Sr. Caetano Nozolini, negociante português estabelecido nesta praça. Este, suspeito de ter influído para a morte de um capitão mercante francês, chamado Dumège, estava naquela ocasião perante os tribunais de Lisboa, por exigência das mesmas autoridades francesas, livrando-se desta acusação. A esquadrilha fundeou defronte da fortaleza, ameaçando de romper o fogo, não sendo imediatamente pagos os 10 mil francos em que o tribunal de Gorée condenou o Sr. Nozolini. Como, porém, o dito senhor estava ausente, e o governador, ou aliás um negociante que interinamente fazia as suas vezes por 800 mil reis por ano, e por isso não podia com a alma mercantil combinar sentimentos mais nobres, em lugar de repelir agressão tão nefanda, declarou aos piratas visto existirem ali os armazéns do Sr. Nazolini podiam-se indemnizar com as suas mãos; o que não tardou. Oficiais e marinhagem saltaram em terra, e carregaram para bordo couros, peles, marfim, arroz e o mais que acharam. Esta carga foi à praça em Gorée, e depois pagas as despesas e custas da justiça, algumas moedas que sobraram foram religiosamente restituídas. Culpado decerto foi o Governo em não ter resistido; mas mesmo ainda que fosse outro, a artilharia quase toda até sem reparos, e uns 60 pretos, vulgarmente chamados soldados, descalços e nus, com armas que em maior parte não podem mandar fogo, constituíam a guarnição. No ano de 1839, o mesmo Sr. Nozolini roubou uma corveta inglesa da Serra Leoa, uma escuna fundeada no porto da Ilha de Bolama, bem como 200 escravos que lá trabalhavam na roça. Quando voltará o Marquês de Pombal para reprimir semelhantes ultrajes!”

Chelmicki vai fazendo súmulas ou pontos de situação, é irresistível o que ele escreve depois de uma descrição pormenorizada a ilhas do arquipélago dos Bijagós em que há presença portuguesa:
“Eis aqui o que nos resta depois de 400 anos de posse; miseráveis presídios, nenhuma indústria, falta de comércio e de cultura, um deplorável estado de ruína. Tudo, tanto nas Ciências e Artes, como nas administrações, não tendo melhoras, não tendo progressos, ficará estacionário, em breve é retrógrado. Portugal, com os olhos fitos no novo hemisfério com a riqueza das minas, não se importou com as possessões africanas. Aquelas estão perdidas para sempre, mas com estas que ainda existem na posse, Portugal, em poucos anos, com boa administração, tornará a ganhar o seu esplendor. Consideremos as possessões da Guiné como colónias comerciais e agrícolas, isto é, de cultura de plantas exóticas. Elas estão em muito melhor situação que as inglesas e francesas. Cinco grandes rios, como o de Casamansa, S. Domingos (Cacheu), Geba, Rio Grande (Buba) e Nunez (Guiné Conacri), navegáveis muito para o interior, oferecem fáceis meios de navegação. Ocupando as embocaduras destes rios com pequenos fortes, cuja construção muito pouco custará ao Governo, em razão da sua utilidade, dilataremos a fronteira marítima desde o Rio de S. Pedro até ao Cabo da Verga, e proibindo de facto a exportação de escravos de toda esta costa, os habitantes voltarão às pacíficas ocupações de agricultura, retomarão o nobre e perdido caráter da humanidade; penetrarão as Artes, indústria e comércio nestes selvagens mas férteis países, e Portugal senhor de todos estes rios conservará facilmente o monopólio desta nova esfera de atividade.
As ilhas do arquipélago adjacente dos Bijagós, habitadas hoje por uns ferozes negros, em breve, de facto, serão sujeitas à Coroa Portuguesa que, assim, antes de 100 anos, concluída esta grande obra de civilização, contará aqui mais de um milhão de súbditos.
Os terrenos obtêm-se com facilidade dos indígenas: estes devem ser repartidos em grandes sesmarias, a proprietários ricos, zelosos do bem público e inteligentes nos seus interesses. Mandem-se vir colonos da Holanda, Suíça e Alemanha, de onde eles trarão a indústria e civilização, e aumentarão assim a população branca sem diminuirmos a do Reino. Favorecendo o Governo os açorianos, eles hão-de preferir estabelecer-se aqui, e com trabalho, sabendo que o ganho é deles, enriquecer-se em pouco, do que servirem de escravos brancos aos brasileiros. Os degredados formarão debaixo da polícia colónias agrícolas militares; e assim após o acréscimo da agricultura e comércio, teremos força real”
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(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22172: Historiografia da presença portuguesa em África (261): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (3) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Conheço este oficial de outros trabalhos.
Porém, quando ele diz: “Eis aqui o que nos resta depois de 400 anos de posse; miseráveis presídios, nenhuma indústria, falta de comércio e de cultura, um deplorável estado de ruína", o que é que poderíamos esperar que sucedesse?
Nós chegámos lá cem anos depois e o panorama tinha melhorado.
Só que o mundo também tinha mudado, de modo que a proporção, entre o que era e o que devia ser, era a mesma. Quero dizer que a "acção civilizadora dos portugueses" nem numa perspectiva colonialista se concretizou. Não temos razões para ficarmos surpreendidos nem admirados. Os avisos foram múltiplos e variados, como se vê.
"Éramos bombeiros que chegavam tarde a um incêndio florestal que tinha muito por onde arder". Mas a guerra estava "praticamente" ganha ou, no mínimo "controlada"...

Um Ab. e um bom dia
António J. P. Costa

Valdemar Silva disse...

Estes escritos tirados dos arquivos da Sociedade Geografia são mesmo para chatear, e como diria o Carlos Gaspar 'vão sobrar para nós'.
Mas, eu não diria "controlada" para não dar a ideia de estarmos lá a "empatar" até chegar a lotaria dos penaltis.
Então o domínio aéreo, o controlo estratégico de grandes extensões do terreno, a sabida falta de meios e cansaço do IN, não conta? Qual controlada qual quê era só mais uns mezinhos para regresso a casa.

Abraços
Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Iço mêmo Camarada!
Tava na maula!
Qual penalties, qual caraças! A malta ganhava aquilo e na primeira parte do prolongamento...
Eu penso mesmo que a malta ia para lá às catadupas era para se divertir. Era uma espécie de resort colectivo misturado com reality-show.
Se a malta não se punha a pau ainda ganhávamos aquela m***a!

Um ab. e bom FdS
António J. P. Costa