quarta-feira, 16 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22286: Historiografia da presença portuguesa em África (267): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (4) (Mário Beja Santos)

Instalações da Sociedade de Geografia antes de vir para a Rua das Portas de Santo Antão


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
 
Uma coisa é acompanhar atentamente o que se publica nos sucessivos boletins da Sociedade de Geografia nesta fase de arranque; outra é a entrada dentro das propostas, das sugestões, beber o teor dos comentários dos associados. Prevalecem os temas africanos, já heróis consagrados, Serpa Pinto e Capelo e Ivens. Luciano Cordeiro vai à Conferência de Berlim mas não transpira nas atas das sessões qualquer comentário. Esta figura tutelar da Sociedade de Geografia também não esconde críticas, diz para quem o ouve que a Sociedade de Geografia não foi ouvida sobre a questão do Casamansa e do rio Nuno, e diz estar amargado com a cedência de Ziguinchor, onde sempre tremulara a bandeira portuguesa. 

Outros temas vêm à baila, é o caso do padroado português no Oriente, e fala-se muito em negócios, era indispensável instalar comércio por onde tinham andado os grandes exploradores portugueses. Nem uma palavra sobre a Convenção Luso-Francesa de 1886, que definiu as fronteiras da Guiné Portuguesa. E há mesmo um associado, como consta deste texto, que diz desabridamente que se deve dar à França a Guiné em troca de uma porção do norte de Cabinda. Era assim que se passavam as coisas enquanto se cimentava o nosso império africano.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (4)

Mário Beja Santos

Os primeiros dez anos de vida da Sociedade de Geografia de Lisboa conduzem-nos à aspiração das camadas sociais que apostavam com entusiasmo no levantamento do III Império Português, o do Oriente era então um amontoado de pequenas parcelas, o Brasil tornara-se independente, havia que ocupar África, conhecê-la e defendê-la da cobiça de outras potências, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, a Itália, os bóeres da África do Sul, e até mesmo Leopoldo da Bélgica, sonham em fazer recuar as possessões portuguesas. 

A leitura das atas das sessões destes primeiros anos permite conhecer o que estes homens sugerem, que ideologia possuem, como funciona este grupo de pressão constituído por membros da aristocracia, políticos influentes, cientistas, financeiros, comerciantes e, a diferentes níveis, muitos curiosos. Quando se chega a 1885, fala-se muito de África, mas também há ecos de outras parcelas do Império. Logo em 5 de janeiro, alguém anuncia que o padroado português do Oriente estava em perigo: 

“Este padrão das nossas glórias, que por si só constitui o elogio do nome português em todo o Oriente, se se perdesse o temporal havia ainda o espiritual”

E quem assim proclama vai apresentar uma proposta que a ser aprovada devia tramitar para o Governo, considerar o padroado português como uma glória nacional, o Governo de Sua Majestade devia constituir uma comissão para inventariar os bens, e lembrar ao governo que a Inglaterra pretende abocanhar o padroado. 

Quem vai lendo as atas espera saber da boca de Luciano Cordeiro que participou na conferência internacional sobre a questão do Zaire o que ali se passou, mas não há menção. Em fevereiro, houve eleições e o presidente é António Augusto de Aguiar, Luciano Cordeiro voltou ao convívio das sessões, desenvolvidamente temos descrita a receção triunfal de Capelo e Ivens, serão alvo de uma sessão solene em 1 de outubro desse ano no Real Teatro de São Carlos, haverá grandes elogios do Ministro da Marinha e do Ultramar, Capelo e Ivens fazem uma comunicação em que descrevem o que observaram entre Moçâmedes e Quelimane. Ivens entregou à Sociedade de Geografia a bandeira da expedição. E o Rei D. Luís entrega-lhes medalhas de ouro pelos seus eminentes serviços à Ciência e à Pátria.

Os interesses económicos estão atentos a estas explorações e numa sessão com data de 19 de outubro um dos participantes apresenta uma proposta para que se organize uma companhia mercantil destinada à exploração comercial da zona atravessada pelos exploradores Capelo e Ivens.

Um outro dado curioso do que se passa nestas sessões é que se apreciam possíveis trocas de colónias. Nessa mesma sessão de 19 de outubro o sócio Sr. Ferreira de Almeida sugere que se cedesse parte da Senegâmbia por igual território ao norte de Cabinda, cedência que deveria incluir o Forte de São João Baptista da Ajuda. E está escrito textualmente: 

“Que a Guiné não tem importância política nem comercial, apesar de todos os sacrifícios que já ali temos feito; o comércio é francês, as condições climáticas péssimas, o gentio é feroz e o acesso da costa não é fácil. Enquanto que em Cabinda e Molembo e regiões para o norte a França não tem relativamente a mesma preponderância comercial, ali imperam as nossas relações comerciais”

Apura-se que uma fração da comunicação dos oradores propende, cada vez mais, para os negócios. No entanto, são insistentes os comentários relativamente ao que deve ser a ocupação portuguesa em África e alguém profere a seguinte observação: 

“A política de bom-senso consistirá no aproveitamento da tradição histórica, quando ela nos servir para alguma coisa”

Outro acontecimento de monta é a consagração de Luciano Cordeiro, ele é reconhecido por todos como o dínamo. O secretário perpétuo não tem papas na língua, em dado momento diz que a Sociedade de Geografia não fora havida nem achada sobre as cedências do Casamansa e do rio Nuno e deplorava profundamente o que se passava com a entrega de Ziguinchor.

Em 1886, o sócio Sr. António Rodrigues Chicó traz para debate não um tema africano, mas Goa, tece os seguintes comentários:

“A província de Goa, em especial as Velhas Conquistas, têm uma população densa, e os seus habitantes, seja pela posição topográfica e influência do clima, seja mesmo por qualquer razão que não se tem podido conhecer, são excecionalmente dotados de inteligência e aptidão para ciências e artes, e favorecidos do génio aventuroso e empreendedor, com grande facilidade de se aclimatarem nas regiões das mais inóspitas, com tudo prova exuberantemente o grande número dos filhos de Goa que está espalhado pelas cinco partes do mundo, exercendo com proficiência toda a sorte de misteres; mas infelizmente o ensino das ciências e artes em Goa está na proporção inversa das vantagens naturais dos habitantes e o qual, por necessidade, vão procurar fora do país.

Se Portugal destinar uma pequena verba, do muito que nesta província se esbanja, para montar aqui escolas de ciências e artes práticas, mandando da Europa todo o pessoal docente, cuidadosa e escrupulosamente escolhido, e não por favoritismo, e oferecer transporte aos que, competentemente habilitados, quiserem ir tentar fortuna em África, em poucos anos se estabelecerá uma corrente de importante emigração, que muito facilitará a colonização e exploração de África.

No intuito de ser útil ao meu país natal e de ver melhorada a situação desta província, que infelizmente jaz num deplorável estado de apatia e estacionamento, enquanto que os nossos vizinhos da Índia britânica marcham a passos rápidos na senda do progresso e da prosperidade material e moral, aproveitei a ocasião em que fui chamado pelo excelentíssimo Visconde de Paço de Arcos, para fazer parte de uma comissão com o fim de elucidar o governo acerca dos melhoramentos e reformas que o país carece para o seu progresso material e moral”.

E deplora que os projetos que apresentou não receberam apoio da dita comissão.

Ficamos igualmente a saber que o Príncipe Alberto do Mónaco andava a estudar afincadamente a história natural açoriana, e diz-se que o Príncipe, no maior sigilo, andava a estudar a corrente do Golfo. Estamos agora em junho de 1886, aprecia-se o parecer da comissão africana a uma proposta do Sr. Carlos de Mello, reconhece-se a pertinência de fazer uma nova exploração geográfica e travessia entre as regiões meridionais das nossas províncias de Angola e de Moçambique, completando, nuns casos, e noutros iniciando o reconhecimento de diversas bacias e ligações hidrográficas situadas entre as duas costas que tinham sido percorridas por Capelo e Ivens.

Deduz-se nas entrelinhas dos debates que os interesses britânicos e alemães não estavam a ser beliscados pelas explorações portuguesas. O parecer da comissão africana é perentório: é reconhecido a conveniência e a oportunidade de se continuar a exploração geográfica entre a província de Angola e Moçambique.

O número de associados alarga-se e as questões científicas também, chega-se mesmo a apresentar uma comunicação em que um sócio desmonta a fantasia de existir um rito judeu de abafar os moribundos. Em outubro aprecia-se o parecer da comissão africana acerca da colonização do sul de Angola e insiste-se em aperfeiçoar a cartografia africana.

Estamos perto do final do ano, em 13 de dezembro, no Real Teatro de São Carlos há uma receção e conferência dos excelentíssimos sócios do Sr. Serpa Pinto e Sr. Augusto Cardoso, chefes da expedição científica ao lago Niassa. Na ocasião entrega-se a Serpa Pinto uma medalha de honra concedida por ocasião da sua exploração da travessia de Benguela a Durban.

No novo ano mantém-se como presidente da Sociedade de Geografia o Conselheiro António Augusto de Aguiar e em abril desse ano há uma comunicação do Dr. Lisboa Pinto, delegado das cristandades da Índia e Ceilão, o tema tem a ver com as reclamações relativamente à última concordata e aos interesses portugueses no Oriente. Em dado passo diz: 

“Os católicos de Igatpuri e Bossaval, na procuração de plenos poderes que me passaram dizem o seguinte: ‘Esquecidos pelo soberano padroeiro, desprezados pelo arcebispo de Goa, ignorados também pelo amantíssimo Pontífice que rege a igreja de Deus, aos constituintes de V. Ex.ª encarem o nosso desespero’”.

E, mais adiante:
 
“Os meus constituintes de Ceilão, vendo que eram baldadas as suas esperanças e desatendidas as suas mais ardentes súplicas, trazem hoje fechadas as suas igrejas e capelas, não tendo quem os confesse, quem os ajude a bem morrer, nem quem encomende as suas almas depois da morte”.

(continua)

O Rei D. Carlos I na abertura da convenção de 1905 da Sociedade de Geografia de Lisboa, Sala Portugal
Cerimónia no tempo da Monarquia presidida pela rainha D.ª Amélia, na Sala Portugal
Presidente da República, na sua visita à Sociedade de Geografia, perante o Padrão de Diogo Cão
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22268: Historiografia da presença portuguesa em África (266): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, está na altura de se pensar em fazer uma visita, em grupo, à Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), com almoço... Tu conheces os cantos à casa...A preços do ano passado, a coisa fica por 17 euros (almoço de grupo, 15 + visita ao museu, 2).

O almoço em grupo é para um mínimo de 10 pessoas.

Já lá fui, há tempos, fazer uma visita por convite do prof Armando Tavares da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, e sócio da SGL... Ele poderá também associar-se a esta iniciativa da nossa tertúlia.

Que me dizes ? Ab, Luis

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A África estava literalmente a saque... E os seus povos eram simples "gentio" (ou seja, gente a converter ao cristianismo e a "civilizar"):


(...) Um outro dado curioso do que se passa nestas sessões é que se apreciam possíveis trocas de colónias. Nessa mesma sessão de 19 de outubro o sócio Sr. Ferreira de Almeida sugere que se cedesse parte da Senegâmbia por igual território ao norte de Cabinda, cedência que deveria incluir o Forte de São João Baptista da Ajuda. E está escrito textualmente:

“Que a Guiné não tem importância política nem comercial, apesar de todos os sacrifícios que já ali temos feito; o comércio é francês, as condições climáticas péssimas, o gentio é feroz e o acesso da costa não é fácil. Enquanto que em Cabinda e Molembo e regiões para o norte a França não tem relativamente a mesma preponderância comercial, ali imperam as nossas relações comerciais”. (...)

... Claro que não podemos julgar os sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa à luz dos conhecimentos e valore que hoje temos e defendemos... Mas é "interessante" a ideia que tinham sobre a Guiné... Se a tivessem "riscado do mapa doo Império Colonial Português", nunca teria existido este blogue...

Fernando Ribeiro disse...

O Forte de São João Baptista não era da Ajuda, mas sim de AJUDÁ (com acento no A final), que nada tem a ver com ajudas ou auxílios. O nome Ajudá é um aportuguesamento da palavra OUIDAH em língua local, que eu não sei que língua é. Pode ser que seja em língua ioruba (a língua do antigo reino do Benim), mas também pode ser que não.

Valdemar Silva disse...

Beja Santos está constantemente a obsequiar-nos com estes documentos oficiais sacados de escritos da Sociedade de Geografia de Lisboa, ou melhor dizendo da respeitosa e insuspeita Sociedade Geografia de Lisboa.
Como curiosidade a fotografia 1, das antigas instalações da SGL, antes das actuais na Rua da Portas de Santo Antão, são num edifício na Rua Capelo 1-3-5, gaveto com a Rua Ivens (Chiado-Lisboa), antigo Palacete Chagas, que ainda existe e muito bem recuperado para um condomínio de luxo (?).
Pois, na se trata 'da Ajuda' mais sim da Fortaleza de S. João Batista de Ajudá erigida pelos portugueses na Costa do Ouro (Golfo da Guiné) e que serviu para entreposto de escravos.
Entre 1721-1730 esteve subordinada ao Brasil, entretanto a piratagem inglesa e francesa tomaram a Fortaleza durante alguns anos, voltando à posse dos portugueses e a partir de 1865 passou a estar subordinada a S. Tomé e Príncipe. Em 1960 houve um 'não é pra nós não é pra ninguém' e Salazar mandou sair os portugueses e fazer explodir a Fortaleza. Em 1961 foi anexada ao Daomé (Benin) e depois de obras de recuperação a custas da Fundação Gulbenkian é património da humanidade da UNESCO dedicado à escravatura.
A ideia do Luís Graça sobre de visitas de estudo e almoço é genial, pena tenho eu não poder alinhar nessas andanças.
Abraço
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mais um apontamento sobre a Sociedade de Georgrafia de Lisboa:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Hermenegildo_Capelo

(...) Em 1875, Luciano Cordeiro fundou a Sociedade de Geografia de Lisboa, reunindo em seu redor uma elite intelectual, civil e militar. Embora a sua actuação não fosse direccionada exclusivamente para o continente africano, logo nos primeiros anos da sua existência criou a Comissão Nacional Portuguesa de Exploração e Civilização da África, mais conhecida por Comissão de África que assumiu a função de despertar a opinião pública para as questões do Ultramar e que preparou as primeiras grandes expedições de exploração científico-geográfica, recorrendo a financiamento por subscrição nacional, contribuindo assim para a definição de uma política colonial portuguesa em África.

Estas expedições destinavam-se a efectuar o reconhecimento do Cuango e as suas relações com o Zaire, e ainda a comparar a bacia hidrográfica deste rio com a do Zambeze, concluindo, assim, a carta da África centro-austral, o famoso Mapa cor-de-rosa.

Apesar do seu papel fundamental na defesa da posição portuguesa em África, face ao movimento expansionista europeu, a Sociedade de Geografia de Lisboa surgiu tardiamente, no que se refere à criação de sociedades homólogas nos restantes países da Europa. Estas expedições integram-se num contexto político marcado por um forte surto expansionista europeu, nos domínios do continente africano, que antecipam a histórica Conferência de Berlim, realizada em 1885. Exploradores de todas as grandes potências europeias, lançavam-se numa verdadeira rivalidade pela prospecção de territórios, obrigando Portugal a rever urgentemente a sua política colonial e a efectivar a sua presença nestes locais, mas as pretensões portuguesas de ocupação do espaço entre Angola e Moçambique chocaram com as pretensões inglesas, que se materializaram na consequente reivindicação dessa zona para o império inglês através do Ultimato Britânico a Portugal. (...)