Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 10 de outubro de 2022
Guiné 61/74 - P23690: Notas de leitura (1504): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2020:
Queridos amigos,
Manuel Arouca é um bom confecionador de literatura de passatempo, não falta nem drama com ciúme, militares estropeados, heróis da guerra, desgraçados morais, sinais evidentes de que o Estado Novo caminha para a sua perdição. A questão de fundo é a inverosimilhança, não é preciso ser antigo combatente para imaginar um furriel em Guileje, que recebe a visita de figuras gradas do Movimento Nacional Feminino, na comitiva vem a mulher que é o enlevo do seu coração, desencadeia-se uma tempestade de fogo, e aquele furriel, que gosta de tirar fotografias insólitas à Robert Capa, escapa-se para o mato com a mulher apaixonada atrás, capta imagens extraordinárias de gente estorricada pelo bombardeamento aéreo; inverosímeis são também as passeatas de ski aquático em Gadamael. Tudo bem apimentado com bebedeiras de estrondo, ambientes luxuosos, muita roupa de marca, carros que custam fortunas, e um final feliz depois de um longo labirinto de equívocos. Pode-se dizer que é a televisão que vem até à literatura, e não o inverso.
Um abraço do
Mário
Deixei o meu coração em África, por Manuel Arouca (2)
Mário Beja Santos
Na década de 1980, Manuel Arouca [foto à direita] ganhou notoriedade com um bestseller intitulado "Filhos da Costa do Sol". Podemos considerá-lo romancista, argumentista e guionista. O seu romance "Deixei o meu Coração em África", Oficina do Livro, 2005 (trata-se da 2.ª edição, que serve de base para esta apreciação) tem como protagonista o Furriel Rodrigo, menino de boas famílias que se entrosam com outras boas famílias, numa circulação entre Lisboa, Sintra, Estoril e Cascais, famílias com muitos negócios, com enorme apreço pelo Estado Novo, a geração de Rodrigo vê emergir sinais de inconformismo com a ordem estabelecida. Há muito álcool, sexo, estranhas sinas do destino que provoca casamentos equívocos, condenados a caírem na água, mas com bodas da maior popa e circunstância, com caçadas e a alta sociedade possidente a marcar presença.
O Furriel Rodrigo Pereira dos Santos vai para Guileje e mais tarde para Gadamael. Manuel Arouca nasceu em Porto Amélia, a presença de Moçambique no romance é uma quase inevitabilidade. Rodrigo é amigo de um jovem banqueiro, Ricardo, com muitos interesses em alguns pontos da colónia; como é amigo de Chico, um ilustre advogado, que depois de Isabel, a grande paixão de Rodrigo, se ter divorciado de Armando, um canalha da pior espécie, com ela vive e convive.
É bom que o leitor atine que há uma senhora africana que é atropelada por Isabel, no Estoril, em 1989, larga um bom maço de papéis que Isabel recolhe, são as memórias de Rodrigo, como solução de trama não deixa de ser um bom “chapéu velho” para que a narrativa tenha seguimento, mesmo com saltos cronológicos, vê-se perfeitamente que o autor domina a técnica do folhetim e conhece bem os condimentos do melodrama. Ricardo foi para a guerra, em Lourenço Marques é recebido com estadão, jantar no Grémio Civil, onde se traja habitualmente a rigor, mas naquela noite é tudo à desportiva, com camisas Lacoste ou Fred Perry, vestidos em linho, sedas naturais, chiffons e organzas. Não faltou nenhum barão das Finanças, Ricardo sente-se atraído por Guida, uma beleza espetacular, viajam de avioneta, são cenas dignas do filme África Minha, frequentam clubes, é tudo um forrobodó, no Sul de Moçambique ninguém fala em guerra, é um dado remoto lá muito em cima. Seguem para Nacala, a seguir entra no palco da guerra, perto de Vila Cabral, não irão faltar caçadas e encontro com Jorge Jardim. Voltamos a Guileje, os ataques sucedem-se, as colunas de reabastecimento são um inferno, não falta também um ataque de abelhas, Rodrigo escreve ao pai a dizer que não há solução militar para aquela guerra, é preciso que os apoiantes do Estado Novo suportem a tese de Spínola, é imperativo uma reconciliação de todos os guineenses, mesmo sabendo-se que o regime rejeita categoricamente conversações com os “terroristas”. O pai de Rodrigo almoça com um ministro de Salazar no Grémio Literário, uma conversação cheia de asperezas, o ministro tem que sair à pressa, fora avisado que o seu nome estava ligado ao escândalo dos Ballet Rose. O Capitão Ivo Ferreira, um amigo de coração de Rodrigo em Guileje, recebe ordens para abandonar Guileje, é vítima da política de Spínola, todos os cabo-verdianos têm que abandonar lugares de comando. Abreviando, um dos amigos de Rodrigo é traído pela mulher que anda com um escroque, quando Rodrigo for a Lisboa para casar desanca-o de tal modo que o energúmeno será hospitalizado; outro amigo terá a sua paixão africana, há casório religioso e civil, uma mina leva-lhe as pernas. Não esquecer, tal como nas telenovelas, Rodrigo gosta de Isabel que casará com Armando, Rodrigo com Leonor, dinheiro para ali não falta, tudo com estadão e bebedeiras.
Regressado do casamento agridoce, Rodrigo é transferido de Guileje para Gadamael. Se toda esta África é já uma arte escritural sempre à superfície, se todo o absurdo da descrição daquele ataque a Guileje em que o Furriel Rodrigo no meio de uma tempestade de fogo corre para a mata acompanhado de Isabel para fotografar as imagens de um ataque aéreo ao grupo guerrilheiro, agora o absurdo fala mais alto, o Furriel Rodrigo irá ter conversações com uma figura de proa do PAIGC, fará ski aquático, com um zebro dotado de um motor potente, Armando, mais onzeneiro do que nunca, manda missivas ao ministro de Salazar, em tom ciclotímico, umas vezes é a euforia da captura do capitão cubano Pedro Peralta, no decurso da Operação Jove, no ano seguinte revelará a profunda deceção por Spínola, por causa do massacre de vários oficiais, em 20 de abril de 1970. Como é próprio de gente fina, Spínola há de visitar o quartel de Rodrigo, trata-o por tu, irá comer chabéu de peixe feito à base de tainhas acompanhado com água das pedras. Há para ali umas lambuzadelas de etnografia e etnologia, casamentos, choros, fanados. E o fim da comissão de Rodrigo é em Bissau, Armando teve à beira de levar um bom par de tabefes, com muito espanto Rodrigo vê marchar os comandos africanos, o comandante é o Capitão Baga, irmão-gémeo de Sima, o chefe guerrilheiro com quem Rodrigo teve conversas sigilosas, claro está.
A guerra acabou, Rodrigo comparece no casamento de Isabel, pouco antes da cerimónia têm uma conversa acalorada, é um arrebatado dueto de amor, com mais poesia só o que Shakespeare pôs nas bocas de Romeu e Julieta. A descrição dos ambientes é sempre de fausto, de grandeza, naquela declaração de amor Rodrigo preparava-se para lhe levantar o vestido, a mãe de Isabel entrou e não se apercebeu daquele furor. Entramos na reta final, a africana recuperou a consciência, chama-se Páscoa, andou nas Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, tem um magnetismo muito especial, Rodrigo tinha desaparecido com o pretexto que estava canceroso, deu à costa, Páscoa foi a fiel portadora do documento que Rodrigo foi laboriosamente escrevendo no arvoredo guineense. Numa atmosfera de ópera, dá-se o reencontro entre Isabel e Rodrigo. Rodrigo descobre que é pai do filho de Isabel. Necessariamente que toda esta saga termina em bem, à custa de outros corações destroçados: “Isabel e Rodrigo abraçam-se. Ela encosta-lhe a cabeça no peito. As palavras são completamente desnecessárias. Sentem-se um ao outro como nunca na vida se tinham sentido”.
É esta a síntese de um melodrama que começa em 1968 e desabrocha em 1989, pelo caminho andou-se pelo Sul da Guiné, houve um rol de intrigas, casais trocados, e depois do 25 de Abril aquela besta do Armando andou na trafulhice, depois de ter calcorreado vários partidos. Fica por esclarecer se Manuel Arouca não vai voltar a pôr Rodrigo Pereira dos Santos de novo na Guiné, já que ele ali deixou o coração.
Imagem de uma coluna entre Aldeia Formosa e Buba, retirada do blogue Guiné 1968/69, referente à BCAÇ 2834, com a devida vénia
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Nota do editor
Último poste da série de 7 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23682: Notas de leitura (1503): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
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2 comentários:
PÓIS!
Assim se faz literatura (e cinema) sobre ambientes, realidades e circunstâncias que o autor não conhece (possivelmente ouviu ou leu umas "coisas"...), deturpando, extrapolando, condimentando ao gosto de quem imagina que irá ler (ou ver) - o "mercado". Como aquele "médico combatente" empunhando uma G-3 (porque a "guerra" dele não foi no Posto Médico ou Posto de Socorros...), coisa que ninguém viu nem nos enfermeiros operacionais que nos acompanhavam nas acções militares pelas entranhas da Guiné. (Quando muito, levavam uma pistola Walter no cinto).
MAS o triste, tristíssimo destas coisas, é que são elas que vão transmitir no futuro a
"VERDADEIRA" imagem de um passado...
Alberto Branquinho
Tens razão Branquinho!
Mas, que se há-de fazer?
Eles é que têm a força e a capacidade para publicar e divulgar.
Os que passaram pelas situações escrevem uma coisas chatas e que não dão para causar granel nos filmes que vão aos festivais.
É a Vida! Ukék çade fazer?
Um ab.
António J. P. Costa
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