1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2020:
Queridos amigos,
Manuel Arouca, moçambicano de Porto Amélia, que diz ter tido uma adolescência rebelde, e que descreve cenas moçambicanas neste seu romance, procurou criar uma fantasia digna de um melodrama e ficcionou um palco dos mais duros que se possa imaginar para pôr o personagem, Rodrigo Pereira dos Santos, um menino fino, dado à boa libertinagem, e que no meio daquele arrebol de afetos se mantém fiel à Isabel, noiva de um bom sacana, que na Manutenção Militar de Bissau tudo faz para denegrir Rodrigo que anda em Guileje a tirar fotografias espantosas de peito feito, quase indiferente aos morteiros 120.
Se algo de muito bizarro se procurasse na literatura da guerra colonial passa pela inacreditável viagem de uma dama grada do Movimento Nacional Feminino até Guileje e de uma fuga de Rodrigo com Isabel pelo meio das matas para assistir a um bombardeamento de Fiats, no meio do delírio até uma cobra venenosa foge de Isabel, como se esta tivesse dotada de poderes sobrenaturais. Assim concebeu Manuel Arouca o amor em tempos de guerra, veremos para a semana que o melodrama até tem ingredientes para acabar bem.
Um abraço do
Mário
Deixei o meu coração em África, por Manuel Arouca (1)
Mário Beja Santos
Manuel Arouca [foto à direita] é nome conhecido não só da literatura de entretenimento como autor de argumentos de telenovelas e séries televisivas e mesmo argumentos de cinema. A recensão desta obra justifica-se porque o personagem, Rodrigo Pereira dos Santos, foi furriel em Guileje, estamos em 1968 e 1969, o primeiro período da sua comissão. Chancelado por uma arquitetura muito comum à chamada literatura de aeroporto, não falta na obra a tentativa de caraterização da atmosfera da vida das classes altas da linha da Costa do Sol, de Sintra e Lisboa, há para ali bastante volúpia, sexo e desejo de aventuras. Para o leitor mais interessado sobre os aspetos capitais da trama, avança-se com o que vem escrito na badana da capa:
Um abraço do
Mário
Deixei o meu coração em África, por Manuel Arouca (1)
Mário Beja Santos
Manuel Arouca [foto à direita] é nome conhecido não só da literatura de entretenimento como autor de argumentos de telenovelas e séries televisivas e mesmo argumentos de cinema. A recensão desta obra justifica-se porque o personagem, Rodrigo Pereira dos Santos, foi furriel em Guileje, estamos em 1968 e 1969, o primeiro período da sua comissão. Chancelado por uma arquitetura muito comum à chamada literatura de aeroporto, não falta na obra a tentativa de caraterização da atmosfera da vida das classes altas da linha da Costa do Sol, de Sintra e Lisboa, há para ali bastante volúpia, sexo e desejo de aventuras. Para o leitor mais interessado sobre os aspetos capitais da trama, avança-se com o que vem escrito na badana da capa:
“Isabel recebe um manuscrito em condições inesperadas e misteriosas. O seu autor, Rodrigo, desaparecido há seis anos e dado como morto, relata as experiências e as vivências, os factos e as emoções, os encontros e os desencontros que marcaram a sua vida. O leitor é levado numa viagem que, por um lado, o transporta aos loucos anos 60 na alta sociedade lisboeta; e, por outro, à sedução de África. Se encontramos a guerra de guerrilha, difícil e intensa, deparamo-nos também com o glamour de uma vida aventureira, célebre pelos safaris, helicópteros e pela ousadia do quotidiano das fazendas. Uma história que reflete tanto os avatares da guerra como as encruzilhadas do amor de uma sociedade representativa de um Portugal esquecido por alguns e inesquecível para muitos”.
Tudo começa no Estoril, Isabel atropela uma africana que era portadora de uma boa resma de papel A4, a sinistrada é hospitalizada e Isabel vai ler todos aqueles papéis que trazem o nome de Rodrigo, trata-se de um relato autobiográfico em que Isabel está no seu pódio de afetos. Este Rodrigo, que levou uma adolescência em libertinagem, tinha como referência modelar o seu tio Rodrigo, herói da I Guerra Mundial, condecorado pelo Presidente dos Estados Unidos. A narrativa está toda intercalada entre vários tempos e ambientes, Rodrigo já está em Castelo Branco, a Guiné à vista, regressamos ao ambiente familiar, às festas em Cascais, fala-se mesmo muito naquele conjunto de festas emblemáticas coincidentes com a morte política de Salazar, tudo portanto em 1968, Rodrigo é doido por sexo e duas jovens, mesmo em hesitação emocional, têm papel preponderante no seu coração, Leonor e Isabel.
Tudo se passa em atmosferas seletas, há ministros de Salazar e senhoras muito ativas no Movimento Nacional Feminino. Numa lubricidade bem temperada, Rodrigo quer ir às de facto com Leonor, esta troca-lhe as voltas. E Rodrigo parte para a Guiné, no Uíge, vai-nos apresentando outros participantes. Cita-se Fernando Pessoa, ficamos a saber alguma coisa de quem é o Bastos, nascido em Moscavide, que foi preparado para a vida por uma prostituta profissional, a Fernandinha, e Jaime, nascido em Penacova, licenciado em Direito, fez a recruta em Mafra e conseguiu a extraordinária proeza de ser despromovido por inépcia, manda o bom senso que já estamos no inacreditável.
Entrámos em plena intriga romanesca, o rival de Rodrigo chama-se Armando, é oficial da Manutenção Militar em Bissau, um bajulador de primeira, escrevia ao ministro de Salazar e pai de Isabel cartas contando coisas sobre Amílcar Cabral que vêm em centenas de livros e faz uma apologia do General Spínola, assim:
Entrámos em plena intriga romanesca, o rival de Rodrigo chama-se Armando, é oficial da Manutenção Militar em Bissau, um bajulador de primeira, escrevia ao ministro de Salazar e pai de Isabel cartas contando coisas sobre Amílcar Cabral que vêm em centenas de livros e faz uma apologia do General Spínola, assim:
“O General Spínola não transpira, o que é um fenómeno com este clima. É um homem extremamente metódico. Toma o pequeno-almoço cedo, come sobretudo fruta, especialmente papaias. Não bebe café, bebe sempre um copo de água morna a seguir à refeição porque ajuda à digestão. De seguida, visita as unidades. Ao meio-dia, impreterivelmente, está de volta ao Palácio do Governador. À uma hora, almoça. Uma refeição sóbria, até porque tem problemas de rins”.
E por adiante, até chegarmos ao polo da admiração:
"O General Spínola, e isso é unânime entre os oficiais que com ele contactam mais diretamente, inverteu a filosofia da guerra implantada por Schulz, posicionava as tropas num sistema clássico de quadrícula e corria atrás dos acontecimentos. Éramos arrastados pelas atividades do inimigo. Spínola traz um conceito novo, e cria uma estratégia própria, a de ter iniciativa. Não há dúvidas de que com Spínola temos uma nova Guiné. Até no que concerne aos transportes das tropas que chegam da metrópole e são, depois, enviadas para os respetivos quartéis. No tempo do General Schulz, eram na maior parte das vezes enviadas em lanchas pelos braços do mar, sem qualquer proteção, alvo fácil de ataques que poderiam facilmente derivar numa tragédia de grandes proporções. O Comando-Chefe classifica esta forma de colocar as tropas no seu destino de total irresponsabilidade”.
Se até este momento a narrativa é de uma piroseira minimamente cuidada, chegámos ao descaro de quem não estudou e atira umas bojardas apimentadas de santificação.
Estamos agora em casa de Isabel, que lê embevecidamente o manuscrito, ela está na companhia de Chico, presume-se que é o marido, há lá uma criança com seis anos que fala só e constantemente com a mãe. Rodrigo conta a viagem para Cacine numa LDG, aqui houve separação de tropas, seguiram para Gadamael Porto, e no dia seguinte, às revoadas, eram largados de avioneta em Guileje. O Comandante da Companhia é o Capitão Ivo Ferreira, cabo-verdiano altamente patriota, leva o obus até perto da fronteira e larga umas boas ameixas em bases onde se acantonam gente do PAIGC. Rodrigo fotografa tudo, o capitão açambarca o material fotográfico, dá-o como confiscado. O médico, o Dr. Branco, é um alcoólico incorrigível. Guileje é flagelada com morteiros 120, Rodrigo, impávido e sereno, tira fotografias a esmo no meio da algazarra. Começam as baixas, morreu o Santos, alguém que esperava o fim da comissão para entrar num seminário. As cartas de Rodrigo para Isabel são incandescentes, não faltam saudades e pedidos de companhia.
Estamos agora em janeiro de 1969, os amigos e a família chique de Cascais e arredores encontram-se, a guerra colonial é coisa que não existe nas suas vidas. Mas algo de extraordinário vai acontecer, a mulher do ministro de Salazar, uma alta graduada do Movimento Nacional Feminino, vai a Bissau levar uma oferta de vulto, faz-se acompanhar de Isabel. Quem vai a Bissau também vai a Guileje, as senhoras são recebidas com pompa e circunstância, no meio da receção calorosa estoira um foguetório, a gente do PAIGC não perdia oportunidade de indispor as visitantes. Decorre a flagelação informal e desta vez Rodrigo sai do quartel na companhia de Isabel, embrenham-se na mata, vai tirar fotografias ao ataque aéreo, saiu de Bissalanca uma parelha de Fiats G-91 que destroem a força atacante, fica tudo esturricado. Um dos amigos de Rodrigo naquele grupo de alta sociedade era Ricardo, filho de um dos milionários moçambicanos, um jovem que só vestia no Pestana e Brito, está numa Companhia de Comandos que parte para Moçambique. Vamos assistir à descrição da vida da gente fina em Lourenço Marques e até a um encontro com Jorge Jardim. Armando, em Bissau, destila mentiras e informa o ministro de Salazar que a guerra na Guiné estava praticamente ganha.
“As visitas do General Spínola aos nossos aquartelamentos são momentos épicos. Nas tabancas próximas, antes das visitas, estas são aliciadas com ofertas, como aguardente de cana e folhas de tabaco. Depois, as bases inimigas que se encontram mais próximas das nossas posições são bombardeadas impiedosamente. No seio dos terroristas instala-se o medo e a discórdia. Já não falta muito para que eles icem a bandeira branca, implorando tréguas, pois dificilmente aguentarão por muito mais tempo a nossa pressão e a das próprias populações da Guiné”.
(continua)
Carlos Santos, da Companhia de Cavalaria 8350 ‘Os Piratas de Guileje’. Imagem retirada do jornal Correio da Manhã, com a devida vénia
___________
Nota do editor
Último poste da série de 3 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23665: Notas de leitura (1502): "De África a Timor", uma bibliografia internacional crítica (1995-2011), por René Pélissier; Centro de Estudos Africanos da Universidade de Porto e Edições Húmus, 2014 (Mário Beja Santos)
(continua)
Carlos Santos, da Companhia de Cavalaria 8350 ‘Os Piratas de Guileje’. Imagem retirada do jornal Correio da Manhã, com a devida vénia
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Nota do editor
Último poste da série de 3 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23665: Notas de leitura (1502): "De África a Timor", uma bibliografia internacional crítica (1995-2011), por René Pélissier; Centro de Estudos Africanos da Universidade de Porto e Edições Húmus, 2014 (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Ao que parece, a foto no final do texto poderia ilustrar o livro: fantasias surrealistas como esta de colocar soldados padeiros e auxiliares de cozinha, em pleno dia, a empunhar armas dentro de valas de um quartel, olhando o fotógrafo, fazendo fogo anti-aéreo, "defendendo o quartel de um ataque dos terroristas".
Assim se ilustrava a realidade horrível da "guerra que Portugal teve que enfrentar em África".
E, para muita boa gente, foi isto e outras coisas assim que aconteceram...
Alberto Branquinho
Tem entrada na Wikipédia... Nasceu em 1955. Não fez, e ainda bem, a guerra de África / guerra do Ultramar / guerra colonial... Tem o pleníssimo direito de escrever sobre estas coisas... O nosso blogue é "inspirador"...
Oxalá / Enxalé / Inshallah apareçam muito mais obras, de preferência de qualidade, sobre a África onde, de uma maneira ou doutra, muitos de nós, antigos combatentes, lá deixámos o coração... E outros, muito mais do que isso, lá deixaram... a vida. Um abraço, Alberto. LG
https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Arouca
Olá Camarada
Este é dos tais que, se estivesse calado ajudava imenso.
Como não se calou, preparem-se que, um dia destes surgirá um "filme de autor" a denunciar a guerra colonial, o racismo, a escravatura e mais qualquer coisa que agora não me ocorre.
Um Ab.
António J: P. Costa
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