quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23680: Blogoterapia (303): A maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 5 de Outubro de 2022:

Olá companheiros de jornada.

Há já alguns anos que não vamos dando notícias, no entanto, sempre estiveram no nosso coração, porque foram vocês que nos ouviram e compreenderam em determinado momento da nossa vida quando tentámos tirar de cima de nós o peso de todas aquelas recordações da maldita guerra colonial que todos nós vivemos nas savanas e pântanos da então província da Guiné.

O dedicado companheiro Carlos Vinhal, sempre lembrou o dia do nosso nascimento e no último, agradecemos lembrando que naquela época andávamos por lá confusos, não sabendo se o o “oceano estava longe do mar”. Era verdade, porque infelizmente saímos da nossa aldeia do interior para ir participar nesta horrível guerra com a cultura dos livros aos quadradinhos que líamos, e que eram os únicos a que tínhamos acesso e eram as tais histórias do Mandrake, do Kit Carson, do Robin dos Bosques ou do Tarzan.

Esta era a nossa cultura até entrarmos no mercado da emigração. Depois, felizmente tivémos ascesso a outras escolas onde tivémos conhecimento da realidade do que foi a História de Portugal com a então África Portuguesa, não ficando lá muito espantados com que íamos aprendendo, como por exemplo o relacionamento e o porquê da presença de Portugal em África.

E as coisas começaram a clarificar-se. Assim compreendemos hoje o País Portugal estar a ser em parte colonizado por pessoas que antes foram colonizadas. É a vida, dizem alguns. Mas talvez seja a história a repetir-se agora em sentido inverso. É a tal frase onde dizíamos que o “oceano estava longe do mar”.

Sabiam que o comércio transatlântico de escravos guardava os segredos mais sombrios que, o para nós herói Infante D. Henrique, o Navegador de Portugal, ajudou a tornar o país Portugal em líder do comércio e na exploração, inclusive em África?

Que a escravidão entre as nações e tribos africanas existia muito antes de Colombo chegar ao Novo Mundo? E que África tinha uma robusta economia escravagista, sendo os escravos capturados e negociados por várias tribos e governantes africanos? E que foram vendidos a comerciantes oriundos de Portugal nos portos africanos, em troca de mercadorias que incluíam tecidos tingidos, armas de fogo, ferramentas e, às vezes, ouro?

Que Portugal se tornou no líder europeu no tráfico de escravos? Os seus navios e comerciantes aliaram-se ao Reino Africano do Kongo no século quinze, permitindo-lhes controlar a maior parte da costa de África e que o comércio entre europeus e africanos foi imposto aos últimos, com condições vantajosas para os primeiros?

Embora hoje as evidências sugiram o contrário, dizendo que várias tribos africanas ditavam os termos de comércio para os europeus, reforçados por combates armados ocasionais, tudo isto à medida que Portugal começou a explorar a sua então colónia do Brasil no tal Novo Mundo e onde precisava de uma força de trabalho.

Assim, o comércio tornou-se bastante lucrativo para os comerciantes e carregadores portugueses, financiados por um consórcio bancário que nem era português, tinha a sua origem em Génova. E mais, tinham as suas fortalezas e os seus portos estabelecidos na África, onde observavam os escravos capturados por seus parceiros africanos e, muitas vezes, os africanos estavam presos há meses, pois queriam garantir uma carga pronta quando os navios chegassem. Isso porque nenhum comerciante queria uma estadia prolongada na costa de África, numa época repleta de doenças.
Hoje tudo isto é história, no entanto naquela época, Portugal era dono de quase toda a costa de África e, o governo colonizador de Portugal de quando éramos jovens, queria continuar a sê-lo, obrigando-nos a ir combater, vendendo a “alma ao diabo”.

E nós, jovens oriundos da Europa, com uma educação de aldeia, onde os princípios honestos de família vinham de há séculos, fomos combater num horrível cenário, onde muitas vezes a angústia, o desespero e o medo, nos colocava numa situação horrível, onde entre outras coisas o álcool nos aliviava a mente, pelo menos por momentos, pois este cenário estava lá, estava sempre presente, era a cara da guerra, com feridos e mortos em combate para ambos os lados, incluindo a população civil desarmada.

E tudo isto para quê? Naquela época os famintos, os doentes, os analfabetos e a miséria eram constantes e, infelizmente continuaram, mesmo depois, quando parecia que já havia paz, fazendo-nos lembrar que de facto saímos de África físicamente, mas possívelmente não trouxémos as armas, as bombas e as balas, deixando lá apenas, como seria nossa inteira obrigação, todas as maravilhosas armas da paz do século XX.

E como o destino não perdoa, os antes colonizados estão agora aí a colonizarem um país que foi colonizador, e nós, antigos combatentes, que lutámos em outro continente, num cenário horrível e miserável, estamos a ser constantemente vítimas dessa nova colonização.

Para todos, queridos companheiros combatentes, desejo que continuemos muitos e muitos anos por cá, e com saúde, porque infelizmente, devido à idade avançada, vamos desaparecendo, todavia o corpo e a mente de um veterano de guerra, reage automáticamente aos disparos da memória, sentindo de novo em certos momentos, as feridas, o medo e o horror que por si passaram, enquanto presente num cenário de combate.

Porque a maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece. Contudo, já o dissemos em algumas vezes, o medo ou talvez coragem, que nos ajudou a sobreviver num campo de batalha, não funciona muito bem agora, nesta avançada idade, mas ainda vai sendo possível assumir o control dessa horrível vivência e, vamos continuando a expulsar alguma energia positiva que nos resta, daquela que nos foi roubada, pelo desastre da Guerra Colonial Portuguesa em África.

Tony Borie
Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23393: Blogoterapia (302): Uma história verídica com o seu quê de humano (José Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557)

8 comentários:

paulo santiago disse...

Olá Tony
Gostei de te ler.
Há muito que não aparecias no blogue.
Quando fazes uma visita ao teu e meu Concelho?
Grande abraço

P.Santiago

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não há maldição, memória é sinal de vida... Mal de nós quando a perdermos... Vejo, pela tua magnífica "prova de vida", que continuas em boa forma. Obrigado. Um alfabravo, Luís.

Anónimo disse...

Não podemos esquecer que a própria republica defendia então as nossas colónias, que ao acabar com a monarquia estavam em causa essas mesmas colónias.Razão essa que nos levou -mal preparados e mal equipados para a primeira guerra mundial e o mesmo aconteceu em áfrica frente aos alemães- a entrar em guerra contra os alemães.
Já dizia o Camões "mudam os ventos mudam as vontades".E a prova da mudança dos ventos, é vermos a mobilização de tropas deste pequeno rectângulo para teatros de operações em áfrica.Bem sei que as remunerações são outras e sempre há a possibilidade de um negocio de diamantes pelo meio.

Quanto ás memórias Tony concordo com o Luis Graça,e mais é o que nos permite lembrar e conviver relembrando o que de melhor tinhamos na nossa juventude.

Um abraço Carlos Gaspar

Valdemar Silva disse...

Carlos Gaspar
Que grande confusão, explica melhor essa de "...ao acabar com a monarquia estavam em causa essas mesmas colónias...".
Os monárquicos queriam lá saber de quem eram as colónias, ou a que coroa pertenciam, quanto muito desde que houvesse "alguma coisa" para dotes de princesas.
Tens que ler melhor, p.ex., os vários posts de Beja Santos e vês que o empenho de manter as colónias foi dos republicanos, desde logo com a fundação da Sociedade de Geografia.
E desde que as colónias passassem para a coroa inglesa, era como "ficar em casa" para a nossa monarquia.
Provavelmente se em 1914-1918 não tivesse havido o 5 de Outubro de 1910, não teríamos entrada na Grande Guerra, isso é que seria verdade.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Ramiro Jesus disse...

Boa-tarde.
Talvez vá ser "politicamente incorreto", mas, faz-me muita confusão que, passados mais de cinquenta anos (neste como noutros casos), as pessoas se "martirizem" com as questões colonialista e esclavagista, comentando a História à luz dos conceitos actuais. É, como há dias li (num comentário ao livro Orgulhosamente Sós, do embaixador Bernardo F. Pereira) escrito por um professor de história da Universidade de Évora, em que este historiador lamenta ou até critica, o facto de o autor "relatar" a tal História, não como verdadeiramente aconteceu, mas como gostaria ou ache hoje, que devia ter acontecido. Ora, isto não é história, é opinião.
Neste caso, o nosso companheiro Tony, vem agora "condenar" os nossos antepassados e outros europeus, à luz dos tais conceitos actuais das relações internacionais. Mas não se interroga acerca dos "donos da mercadoria" que estes transacionavam e que não eram senão os antepassados dos que nos substituíram e que, no caso da Guiné, têm (infelizmente) feito pouco (ou nada) melhor do que os "chefes de tabanca" daquele tempo, para os quais o povo continua a ser pouco mais do que mercadoria.
Daí, talvez, a origem de outra parte - quanto a mim contraditória - da mensagem, em que lamenta que «estejamos a ser colonizados» pelos descendentes dos que colonizámos.
E faz-me confusão também que estejamos a tornar-nos uns complexados e venhamos agora com a desculpa dos "ignorantes da aldeia", como faz este nosso camarada.
É que, até a propósito disto, eu sempre tive a impressão de que quem era operador cripto - como foi o caso - não era assim um "borra-botas" qualquer, acabado de ser resgatado de uma aldeia perdida na encosta de uma serra, onde não "passava cristo". Para mim, tinha, pelo menos, de conhecer alguém com uma patente bem acima do mais graduado que eu conhecia, que também era cabo.
Talvez por isso é que eu tenha sido daqueles que foram mesmo «lançados para aquelas horríveis condições», onde nunca encontrei um operador cripto.
Felizmente, depois de muitos sustos e algum sofrimento, escapei, não me lamento e também não me envergonho. Mas também não me vanglorio.

Um abraço!
R.Jesus






Anónimo disse...

Olá Valdemar, comigo não há nenhuma confusão nem preciso de ler o que outros esvrevem, salvo o devido respeito.Pois ainda conheço a história.O que eu quis dizer foi exactamente que os republicanos acabaram com a monarquia porque defendiam na altura que Portugal devia manter as os territórios em àfrica.Coisa que efectivamente não estava a acontecer com a monarquia, como é sabido.De resto a monarquia também era um "saco de gatos" a avaliar pelas traições ao D.Manuel II.Quanto à republica era e é como eu digo(eu não, dizia o Luis Vaz de Camões) mudam os tempos mudam as vontades.O que era válido ontem não é valido amanhã.Portanto o pensamento sobre àfrica mudou.Penso que o último a advogar o pensamento republicano sobre a manutenção das, então colónias foi o Norton de Matos.
Um abraço
Carlos Gaspar

Anónimo disse...

Em relação ao R.Jesus, estou inteiramente de acordo.Não conheço nenhum país que tenha tantos complexos com o passado como os portugueses.Isto talvez se deva aos governantes e aos papagaios da comunicação social que lançam estes complexos. ampliam e fazem propaganda e que nos tratam a nós combatentes com bastante negatividade.São os tempos, mas nós não deviamos deixarmo-nos influenciar.
Todos os combatentes de outros paises fazem jus e respeitam os seus mortos e inválidos, independentemente da justeza ou falta dela em relação às guerras que travaram.
Por exemplo; os Franceses apesar da derrota e da aberração de Dien Bien Phu na indochina, honram e prestam homenagem aos seus mortos e aos poucos que ainda restam vivam.E lá está o exército marinha e aviação.Marinha sim, porque a aviação da marinha também actuou neste teatro de operações.
Um abraço para todos
Carlos Gaspar


Valdemar Silva disse...

Carlos Gaspar, isso do esquecimento não será bem assim.
Em quase todas as localidades do país temos Ruas, Avenidas, Largos e Praças dos Combatentes do Ultramar. O que também acontece é ainda cá estarmos para lembrar e para que ninguém se esqueça dos milhares de jovens que tinham de ir para a guerra que nunca mais acabava.
A guerra da Indochina com os franceses que resolveram ocupar a Cochinchina em 18etal a não quererem perder a "minas" da borracha para os chanatos michelin.
Na guerra da Indochina 1946 a 1954, contra os países da região que queriam ser independentes, forças da União Francesa incluíam tropas coloniais do antigo império (marroquinas, argelinas, tunisinas, do Laos, cambodjanas e minorias étnicas vietnamitas), tropas profissionais francesas e unidades da Legião Estrangeira Francesa. A utilização de recrutas metropolitanos foi proibida pelo governo para não tornar a guerra mais impopular em França.
A França perdeu a guerra e teve de abandonar o território.
Nós não perdemos, propriamente, a guerra, nós acabamos com a razão de haver guerra: independência das antigas colónias ou províncias ultramarinas.
Os republicanos chamavam províncias ultramarinas e resto chamavam colónias praticamente até 1960 depois mudou o tratamento para a ONU ver.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz