segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23665: Notas de leitura (1502): "De África a Timor", uma bibliografia internacional crítica (1995-2011), por René Pélissier; Centro de Estudos Africanos da Universidade de Porto e Edições Húmus, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Pode-se criticar mas não se pode ignorar este maratonista que lê tudo quanto lhe cai às mãos sobre a história do Império Português. Ele lança, a torto e a direito, questões pertinentes. Uma delas: "Quantos livros sobre os PALOP, Timor, a Índia, Macau, aparecem anualmente em todo o mundo? Não existe um recenseamento rigoroso, mas recentemente avaliámo-los em 70 a 120 no que respeita a outras línguas sem ser o português. Quanto mais avançamos, mais nos apercebemos de quanto estamos muito aquém da realidade. Se se incluir o português, os livros novos são, todos os anos, bastante mais de 250, alguns dos quais não chegam ao conhecimento dos bibliógrafos centralizadores, senão depois das edições esgotadas".
Por vezes é pouco ou nada amável com historiadores estrangeiros que falam do nosso Império. Houve um senhor holandês que resolveu estudar os Balanta Brassa, e ele logo comenta, vitriólico: "É uma tese que ignora alegremente os melhores trabalhos de António Carreira sobre a História da Guiné".
Prometo ao leitor grandes surpresas na leitura destas recensões que foram publicadas em diversos periódicos portugueses, este octogenário historiador francês continua sem concorrência à vista, é um maratonista infatigável.

Um abraço do
Mário



René Pélissier, um globetrotter sem rival na historiografia do nosso Império

Mário Beja Santos

É um calhamaço de mais de 650 páginas, intitula-se "De África a Timor", uma bibliografia internacional crítica (1995-2011), por René Pélissier, Centro de Estudos Africanos da Universidade de Porto e Edições Húmus, 2014. Porventura o historiador francês mais dedicado aos estudos do Império Português, René Pélissier publica as suas recensões em periódicos portugueses, coligiu tudo quanto foi dado à estampa ao longo de dezasseis anos, e o resultado é impressionante, assumo que não é possível estudar qualquer parcela do Império sem ler o que ele comenta sobre as obras mais recentes, desde a ficção à historiografia. Obviamente que não há aqui condições para analisar minuciosamente esses comentários, limitamo-nos a relevar um ou outro, para despertar a atenção do leitor, seja na posição de meramente curioso ou de estudioso.

Louvo-me no que ele escreve sobre o trabalho hercúleo e dadivoso de João Loureiro. Como observa Pélissier, este colecionador de postais antigos deixa-nos documentos extraordinários, é mesmo uma coleção iconográfica que não tem concorrentes em qualquer ponto do mundo. A sua coleção de postais ultramarinos (desde os fins do século XIX até 1974-1975) aproximava-se, no dobrar do século, de dez mil exemplares.
Pélissier observa:
“Tudo é fascinante para se poder conhecer a evolução das mentalidades em mundos fechados como eram, por exemplo, as feitorias guineenses, as plantações de São Tomé, as cidades angolanas ou Díli, mesmo nos anos 1920. Que encontrará o leitor nos cinco volumes consagrados às antigas colónias africanas? Quanto a Moçambique: Lourenço Marques, o Sul do Save, a Beira, Vila Pery e Gorongoza, a Zambézia e os distritos do Norte, com tratamento temático: panoramas, edifícios públicos dos princípios do século, as ruas, os portos e os transportes, a vida religiosa e cultural, os hotéis e os entretenimentos (…). Quanto à Guiné, o historiador pode deliciar-se com as imagens de Bissau no início do século, nomeadamente as da guerra de 1908 e as da demolição da velha muralha urbana. Pode encontrar-se a estátua de Teixeira Pinto. As vistas de Bafatá cerca de 1920 permitem avaliar o crescimento da cidade desde os primórdios. Em todos estes volumes o autor dá-nos uma introdução sobre a origem dos postais. É no quinto volume, o respeitante a Angola, que expõe claramente a sua saudada época de 1970-1975, inquestionavelmente o período culminante da colonização europeia e do crescimento do país, apesar ou até por causa da guerra colonial. Refere-nos que, por comparação com o estado dramático no qual o país caiu após 1974, a Angola do fim da era colonial parecia-lhe ter sido um paraíso (…) O trabalho colossal de João Loureiro marca uma viragem capital na recolha da iconografia colonial, não só no antigo império português, mas em todas as restantes colonizações”.

Não deixa de ser perscrutante o seu olhar sobre uma obra muito apreciada nos estudos da guerra colonial, "Contra-subversão em África. Como os portugueses fizeram a guerra em África", por John P. Cann:
“Enquanto oficial superior, a sua aptidão para analisar, do exterior, a organização, a instrução e as técnicas portuguesas da luta contra a subversão (serviços de informação, operações e tropas especiais, logística, emprego das tropas locais, etc.) é incontestável. Ele retira das estatísticas portuguesas e das numerosas entrevistas com oficiais superiores, tanto na reforma como no ativo, uma certeza: tendo em conta as limitações orçamentais e demográficas com as quais se defrontaram, os seus homólogos fizeram tão bem ou melhor do que os americanos no Vietname.

Estou convencido de que este livro é e será o livro de cabeceira dos oficiais de carreira portugueses que conduziram esta guerra e dos que vieram e virão depois desta geração. Do ponto de vista técnico, trata-se de uma reabilitação positiva. O único problema é que Portugal perdeu a sua guerra exótica, tal como os americanos, os franceses e os holandeses perderam as deles, cada um deles encontrando para tal, naturalmente, uma desculpa política ou de outra natureza. Mas o que este livro, noutros domínios muito estimável, não aborda, é o essencial: estas guerras foram largamente impopulares entre os que, na metrópole ou nos Estados Unidos, eram levados, enviados, constrangidos e à força para o terreno. É sintomático que no seu texto Cann não tenha praticamente utilizado um só testemunho de um simples soldado, de suboficiais ou de oficiais subalternos para conhecer, por dentro, o moral das tropas em contato direto com a guerrilha. Ele dá-nos, por isso, uma visão que seria a que podíamos encontrar em todas as escolas dos Estados-maiores do mundo inteiro: uma visão de cima para baixo, que esquece que era em baixo que as coisas importantes se passavam. Existem centenas de artigos e de livros publicados pelos atores, tanto portugueses como africanos, que descrevem o que não encontramos nas instruções dos comandantes superiores. Em todos os exércitos em guerra, podemos constatar o mesmo fenómeno: uma dicotomia entre profissionais, mais ou menos operacionais, e aqueles que matam o tempo a tentar não morrer”
.

Devo a esta leitura de lés a lés vários benefícios, um deles ter descoberto uma comunicação da investigadora Suzanne Daveau sobre os primeiros relatos dos viajantes da África Ocidental, mais tarde falaremos deste belíssimo texto.

Guardo uma observação sobre o trabalho da crítica literária ou científica de Pélissier: “A pior crítica que se pode fazer a um historiador ou a um bibliógrafo não é estar mal informado ou ser incompetente; é ser sectário ou – o que é disso corolário – ser complacente para quem pensa como ele”.

E é bem agradável ver o historiador António Duarte Silva elogiado pelo seu incontornável trabalho "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Edições Almedina, 2010.
A propósito do chamado Massacre do Pidjiquiti, e sobre o que escreve Duarte Silva, destaca Pélissier:
“Parece provável, segundo o autor, que o administrador cabo-verdiano, dirigente do partido único local, a União Nacional, gerente da Casa Gouveia em Bissau, é diretamente responsável, dada a sua intransigência, pelo que se iria tornar o acontecimento fundador do nacionalismo guineense. Enquanto historiador, este administrador redimiu-se mais tarde com a publicação de vários estudos que denunciavam a inanidade da propaganda do Estado Novo; a sua especialidade tornou-se o tráfico negreiro e a resistência anticolonial à implantação portuguesa. Chamava-se António Carreira e terá sido um dos mais fecundos primeiros historiadores cabo-verdianos. Os panteões dos grandes homens locais doravante divergem conforme as origens: pode-se ser um ‘negreiro’, agente do subcolonialismo ou apenas originário do que foi, durante séculos, o terreno de caça destes auxiliares da administração portuguesa no continente. Como é que Amílcar Cabral poderia prever serenamente o futuro de um binómio Cabo Verde – Guiné em que os pastores iriam continuar a comer o seu rebanho continental? A explosão era inevitável, devido ao capital de rancores acumulado”.

Um documento magnífico, não se pode estudar o nosso Império sem conhecer estas notas, por vezes tão assanhadas, de René Pélissier.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23656: Notas de leitura (1501): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"Como é que Amílcar Cabral poderia prever serenamente o futuro de um binómio Cabo Verde – Guiné em que os pastores iriam continuar a comer o seu rebanho continental?"

Deduzo que esta frase será de Beja Santos, mas poderá ser também de Pélissier.

Bem, o que Amílcar podia com dificuldade ter feito, pelo menos para não ser assassinado, era usar o mesmo processo que os fundadores mestiços do MPLA e FRELIMO, todos amigos de Amílcar, aliás, fizeram.

Quem foram esses amigos a imitar? no MPLA Lúcio Lara e na FRELIMO Marcelino dos Santos.

Tanto um como o outro ficaram sempre na sombra a mexer os cordelinhos, ou seja a governar e dirigir sem dar nas vistas.

Se bem que Lúcio Lara provisoriamente na morte de Agostinho Neto ainda o substituiu na Presidência da República.

Isto que estou a dizer sobre estes amigos de Amílcar está tudo divulgadíssimo inclusíve histórias bem negras, mas não deixaram de ser grandes heróis nacionais "vivos".

O Problema para Amílcar era conseguir pôr à sua frente, para ele guiar na sombra, um Agostinho Neto ou um Machel, guineense.

Funcionaria? seria mais complicado para Spínola, disso não tenho dúvida e seria um herói "vivo".