quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23678: In Memoriam (454): Jorge da Cunha Fernandes (23/4/1942 - 02/10/2022), ex-Alf Mil Paraquedista da CCP 121/BCP 12 (Guiné, 1966/68) (Mário Beja Santos)

I N  M E M O R I A M

Jorge da Cunha Fernandes (23/04/1942 - 02/10/2022)
Ex-Alf Mil Paraquedista da CCP 121/BCP 12, Guiné, Dezembro de 1966 – Maio de 1968 

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1.
Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
É mais uma perda de um peso pesado do meu coração. Enquanto folheava esta história de paraquedistas e da atividade operacional que experienciou o Jorge da Cunha Fernandes pensava nos disparates sistemáticos que impunemente se escrevem sobre as atividades desenvolvidas durante o período da governação de Schulz, ainda recentemente Bernardo Futscher Pereira no seu importante ensaio sobre a política diplomática do Estado Novo, Orgulhosamente Sós, voltou a referir que este Comandante-Chefe se limitou a atividades defensivas, recorrendo a bombardeamentos aéreos, olha-se só para o que fizeram os paraquedistas e questiona-se que investigação se fez ou anda a fazer.
E abraço o meu querido Jota que partiu para as nuvens, e que tanto bem me fez e aos meus.

Um abraço do
Mário



In memoriam:
Jorge da Cunha Fernandes (23/04/1942 - 02/10/2022), Alferes Miliciano Paraquedista, CCP 121/BCP 12, Guiné, Dezembro de 1966 - Maio de 1968


Mário Beja Santos

Foi através de um dos irmãos que me chegou a nefasta notícia de mais uma perda: o Jota, que estava numa unidade de cuidados paliativos, morrera serenamente ao amanhecer daquele dia. De imediato contactei os irmãos, pedindo-lhes encarecidamente que se acaso aparecesse o seu processo militar me autorizassem a consulta para honrar este bravo paraquedista. Como convivi desde criança com os sete filhos dos meus padrinhos de batismo, recebi do Jota, ao longo da vida, provas de imenso carinho e solicitude. Tive mesmo o privilégio de usar as suas roupas até a adolescência, não mais se puderam aproveitar os sapatos, ele quedou-se nos 42 e eu disparei para o 45, acresce que subi mais uns centímetros, os suficientes para que nenhuma costureira pudesse fazer o milagre da multiplicação da roupa. Com elevado sentido prático, tinha dedo para canalizador, eletricista, reparador de miudezas domésticas, uma forte atração por carros, que montava e desmanchava sistematicamente. Foi-se tornando um tanto bizarro, deixou crescer as barbas como se fosse um missionário (era impressionante a parecença dele com um tio da minha madrinha, Monsenhor Alves da Cunha, ainda hoje figura grada na memória dos angolanos), tornou-se acumulador compulsivo, como eu comprovei. Andava a preparar o segundo volume do meu Diário da Guiné, apareceu-me uma folha, no meio da papelada de antanho, em que lera um livro de William Faulkner e um livro de poesia de Jorge de Sena, oferta do meu padrinho, com envio para a Guiné, livros devorados pelo fogo numa flagelação, telefonei ao Jota, prontamente me respondeu que os tinha e que me os oferecia, marcou o dia e hora no seu apartamento em Benfica, por ali andei espavorido por carreirinhos, havia tralha até ao cimo das paredes, e pela primeira vez vi na vida um chassi na mesa de cozinha… era assim o meu saudoso Jota.

Não descansei enquanto não encontrei algo para aqui o homenagear. Fui até à Biblioteca da Liga dos Combatentes e o Dr. João Horta obsequiou-me com pesquisas, encontrou a "História das Tropas Paraquedistas Portuguesas", Volume da Guiné, agora é mais fácil mostrar-vos o Jota, como ele é merecedor de lembrança (consta que só morremos definitivamente quando ninguém fala de nós).

Temos aqui uma fotografia dele a bordo do "Manuel Alfredo", estamos em dezembro de 1966, o BCP 12 vai entrar em funções, tem duas companhias operacionais, a CCP 121 e a CCP 122. O Jota faz parte da 121, comandada por Nuno Mira Vaz. Chegam e ficam grandemente dependentes da Base Aérea n.º 12. Escreve-se neste documento que as instalações eram precárias, a cozinha improvisada sob a capa de um vetusto de poilão, com algumas tábuas e ramos de palmeira, construiu-se um refeitório conjunto para oficiais, sargentos e praças. Este documento dá-nos uma síntese da atividade operacional das CCP121 e 122. O BCP 12 fazia parte das forças de reserva à ordem do Comandante-Chefe. Logo no treino operacional houve captura de armamento. A primeira operação digna de registo é a "Barracuda", decorreu em 3 de fevereiro de 1967, houve captura de civis e armamento; seguiu-se a "Piranha I", na área de Bigine, andaram pelo leito do rio Fulacunda, caíram no lodo, ficaram encurralados, foram recuperados por LDP’s que estavam ancoradas em Bolama. Até meados de 1968, estas unidades de paraquedistas foram utilizadas em ações de helitransporte de assalto, emboscadas e batidas de curta duração. Realizaram também ações conjuntas com militares de outros ramos das Forças Armadas, são disto exemplo as operações "Parafuso" e "Bom Sucesso". Intensificaram o seu ritmo operacional ao longo de 1967, a obra releva duas operações classificando-as como notáveis, a "Phoenix I" e a "Trovão", a primeira na região de Paiunco e a segunda na região de Bedanda, aqui o carregamento de material capturado em vários helicópteros demorou mais de quatro horas. Terá sido em fevereiro de 1968 que os militares do BCP 12 irão travar o mais violento dos combates, em Cafal e Cafine.

O comandante do BCP 12, Tenente-Coronel Costa Campos, acompanha sempre estas operações e, no caso da operação de fevereiro de 1968, destroçou-se o bigrupo que atuava naquela região do Cantanhez. A última operação de combate foi a "Barracuda III", que se realizou em 13 de maio de 1968, numa base na região de Quínara. Pelos seus atos de destemor, solicitude e abnegação foi condecorado com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe.

Preferia não acrescentar nada mais sobre o afeto que sempre guardei a alguém com quem convivi por tanto tempo e de quem beneficiei da sua estima. Não resisto a contar que estando em férias na Foz do Arelho (onde o Jota passou a viver em permanência depois de fechar a baiuca em Lisboa) com a família, telefonou-me eufórico, encontrar uma caixa com latas de sardinha do Algarve Exportador, íamos preparar uma comezaina, perguntei-lhe como é que era possível as sardinhas ainda estarem boas várias décadas depois de embaladas, eu que não me preocupasse, haveria pitéu. Como houve, guardámos fotografia desse dia, lá estamos todos sorridentes, o Jota olhando-nos fixamente com as suas barbas de missionário.

Fica-me a recordação de alguém que serviu denodadamente a Pátria, desapareceu mais um herói, fica no altar supremo das minhas saudades. Jota, que tudo te corra bem por esse mar de nuvens onde seguramente contemplas Deus.
O Jota é o primeiro à direita de cócoras, terá medo de apanhar lêndeas e piolhos na Guiné, grande é a carecada, não sorri para nós, sorri para os camaradas
O Jota é o primeiro à esquerda, de cócoras, seguramente deixou de ter receio das lêndeas e piolhos, deixou crescer o cabelo, a gente pergunta-se se todos estes homens viveram passados 365 dias de vida operacional na Guiné

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23660: In Memoriam (453): Júlio Martins Pereira (1944-2022), ex-sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá e Porto Gole, 1965/67)... Natural de Paredes, vivia em Valongo... Nosso grã-tabanqueiro nº 653... Nascemos no mesmo dia, 12/6/1944 e conhecemos as mesmas estações do inferno (João Crisóstomo, Nova Iorque)

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