Jorge Cabral (1944-2021)
Capa do livro de Jorge Cabral, "Histórias de um professor de Direito: colectânea de testes da cadeira de Direito da Família e Direito de Menores (Lisboa: APSS - Associação de Profissionais de Serviço Social; Alfredo Henriques, 2007, 71 pp. ; ISBN; Alfredo Henriques - 972-98840-05 | APSS - 972 - 95805-1-0)
Dedicatória manuscrita para o edit0or do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné:
“Para o Luís, camarada, companheiro e amigo, um conjunto de testes, frequências e exames que até parecem ‘estórias'.
Lx, , Fev 2007, Jorge Cabral."
Ultimamente tenho andado a reler o exemplar autografado, que me ofereceu em 2006, das suas "Histórias de um Professor de Direito" (publicado em 2002)...
Eu tinha muita estima e afeto por ele, embora privássemos pouco. De vez em quando eu telefonava-lhe. (A iniciativa era sempre minha. Em geral, por causa do blogue. E, nos seus últimos meses de vida, por causa da maldita doença que o iria matar.)
E encontrávamo-nos, pelo menos anualmente, nos encontros da Tabanca Grande, em Monte Real. (Tenho pena de nunca ter bebido um copo com ele na noite de Lisboa; tinha-lhe sugerido que o lançamento do I volume das "estórias cabralianas" fosse num bar do Cais do Sodré, mas infelizmente sobreveio a pandemia.)
Era sobretudo por email que íamos pondo a conversa em dia... Ele sempre muito lacónico, eu mais palavroso...
Em homenagem ao nosso "alfero Cabral" (1944-2021), de quem publicámos na íntegra as "estórias cabralianas", aqui fica então mais uma das provas (sob a forma de casos) a que ele submetia os seus alunos (na sua grande maioria, alunas) da licenciatura em serviço social, para efeitos de avaliação de conhecimentos da cadeira de Direito da Família e Direito de Menores.
Reconhecemos, na sua "casoteca", nestas três dezenas e meia de "Histórias de um Professor de Direito", a mesma verve, o mesmo estilo narrativo, o mesmo poder de observação, a mesma imaginação criativa, a mesma brejeirice, o mesmo humor negro, etc., das "estórias cabralianas"... Mas agora também com um registo mais forte de inquietação, compaixão e empatia, para com aqueles e aquelas que vivem paredes meias com a marginalidade social, a exclusão, a pobreza, a discriminação, a transgressão, a violencia, o álcool, a droga...
Destaque para o contexto pungente desta "conversa" entre dois homens à procura da paternidade perdida...
(...) Era um tristíssimo bar de bairro, frequentado por uma clientela anos sessenta. Homens que tinham feito a guerra sem amor e o amor sem guerra. Mulheres à volta com o croché da rotina, a malha do cansaço e a renda da chatice. Elas já falavam dos seus úteros elas como quem fala dos parentes, enquanto eles bebiam, bebiam sempre copos atrás de copos, com o ar enfastiado de quem cumpria quem cumpre um ritual.(...)
2. Histórias de um Professor de Direito > III. Dos Filhos (nascidos de encontros, desencontros, equívocos e mentiras)
32. No bar
por Jorge Cabral (pp. 65/67)
Era um tristíssimo bar de bairro, frequentado por uma
clientela anos sessenta. Homens que tinham feito a guerra sem amor e o amor sem
guerra. Mulheres à volta com o croché da rotina, a malha do cansaço e a renda
da chatice. Elas já falavam dos seus úteros como quem fala dos parentes, enquanto
eles bebiam, bebiam sempre copos atrás de copos, com o ar enfastiado de quem cumpria um ritual.
Apetecia fugir. Desfraldar um bandeira. Gritar um ipiranga.
Mas não. Já não podia deixar aquela mesa onde também bebia um xarope para a
tosse que o empregado garantia ser whisky, puríssimo e importado. À minha mesa, dois parceiros, de
ocasião, desafinavam um diálogo absurdo e incoerente. Cláudio estava suavemente
bêbado, e sofria. Porque não queria sofrer só, convidava-nos a sofrer
com ele, e por isso nos contava todas
aquelas desgraças. Claudino ouvia, comentava e, às vezes perguntava. Mas sempre a
despropósito.
Não cheguei a perceber se o fazia intencionalmente. Ou era
muito estúpido ou muito inteligente, o que, aliás, acontece a todos nós. Tudo
depende das circunstâncias, do tempo e do lugar.
Vou tentar reproduzir o que lhes ouvi dizer, tentando ser
fiel neste relato.
Cláudio (quase a chorar) – Hoje deixei de ser pai. Fui
inibido.
Claudino − Também já
fui assim. Passou-me com a idade.
Cláudio − Diz a sentença que bebo. Que não ligo às crianças.
Claudino − O meu
primo Gustavo também pagou uma multa por causa do balão.
Cláudio − O advogado
diz que pode ser levantada.
Claudino − Quem?
Cláudio − A inibição.
Claudino – Ah! Essa!
Cláudio − E tudo por
causa dela. Que me trocou pelo carteiro.
Claudino − Se calhar, precisava de óculos.
Cláudio − Apanhei-os na
cama, na minha cama. E ele ia lá todos
os dias.
Claudino − O carteiro toca sempre duas vezes.
Cláudio − Ele tinha a chave. Aliás já os tinha visto no elétrico dos Prazeres.
Claudino − Isso é cinema pornográfico. Não gosto. Prazeres elétricos, que estupidez!
Cláudio − Foi por isso que comecei a beber e deixei de lá
morar. Mas ela também abandonou as crianças. Até fomos suspensos os dois do
poder paternal.
Claudino − E não
caíram?
Cláudio − Os miúdos
forem internados no lar de São Teotónio. Ainda lá estão. Parece que vão ser
adotados.
Claudino (distraído)
− A droga é um verdadeiro flagelo.
Cláudio − Se eu conseguisse que ela fosse também inibida, ficávamos
empatados.
Claudino − Os inibidos empatam sempre. É preciso
descontração.
Cláudio − Eu não
consinto. Não assino nada. Mas o advogado diz que eles podem ser confiados.
Claudino − Sempre há gente muito desconfiada.
Cláudio − E nem eu
sei quem os quer adotar. É segredo. Dizem que vão para o estrangeiro.
Claudina − A poluição tem muitas culpas.
Cláudio − O meu mais
velho já tem doze anos. Não sei se com essa idade ele já tem opção.
Claudino − Depende do
contrato. O Oceano vai para o Benfica.
Cláudio− Ah! Se eu acabasse com a inibição e ganhasse o divórcio, resolvia tudo, anulava as adoções e voltava a ser pai.
Coitado do Cláudio!
Comente, clarifique, descreva, interrogue e solucione.
(Transcrição e revisão / fixação de texto: LG)
Último poste da série > 31 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25125: Jorge Cabral (1944-2021): Histórias de um Professor de Direito: Antologia - Parte I: "25. No Regimento de cavalaria"...
(...) Comentário de Tabanca Grande Luís Grça:
Tristeza, "alfero Cabral", nem um único comentário ao teu "amoroso" livrinho!...
Como é que tu estás? "Minimamente confortável" no pedacinho de universo que te coube em sorte, "post-mortem", "lá na tua estrelinha"? É para onde vão as "alminhas" (como tu gostavas de chamar às tuas alunas) que desaparecem, e que nós amamos, como eu explico à minha neta que tem pouco mais de 4 anos... E o teu neto, "tens falado com ele"?... Mantenhas, saudades das bajudas de Fá Mandinga, Fá Balanta, Missirá, Bambadinca e Bafatá...
2 de fevereiro de 2024 às 12:37 (...)
1 comentário:
Quem não se sente inibido para comentar os escritos do ilustre "alfero Cabral"?
Eu não me afoito a tal proeza! Não tenho estudos e disposição de humor para isso. A minha formação foi mais na base do duro sacrifício do aldeão, do que na prazenteira e folgada vida citadina.
Que a alma do distinto camarada Jorge Cabral descanse em paz.
Abraços
JLFernandes
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