sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P443: As dificuldades e os encantos do crioulo (Mário Dias)

Guiné > S/d > Documento das NT, em português e em crioulo, incentivando os guerrilheiros do PAIGC e a população sob o seu controlo a apresentarem-se às autoridades portuguesas.

© José Teixeira (2006)


Textod o Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)

Caro Luis Graça, caros camardas de tertúlia:

A propósito dos comentários de nosso amigo J. Mussá Biai sobre a forma correcta de escrever o crioulo (criôlo?) é bom que nos vá elucidando. Por mim, que falo razoavelmente bem o criôlo, também se depara a dificuldade de o escrever porque esse dialecto só recentemente tem sido passado à fase de escrita. Pelo menos, que eu saiba, no tempo chamado colonial não existia qualquer gramátia nem textos escritos, com excepção de pequenas frases que alguns estudiosos e pesquisadores transcreviam, cada um o fazendo segundo uma transcrição fonética das palavras tal como elas soavam aos ouvidos. Apenas havia uma tímida tentativa em Cabo Verde, por parte de alguns intelectuais e escritores, de escrever poemas e outros textos -e alguns foram publicados- mas que tinham um forte oposição do regime de então que não admitia o criôlo como língua.

O Mussa Biai que desculpe as nossas deficiências e nos vá elucidando. E aproveito para lhe pedir que me informe onde posso adquirir uma gramática ou compêndio actualizado que me esclarece sobre esta matéria. Sei que recentemente foi publicado um dicionário de português-criolo de Cabo Verde (versão da ilha de Santiago). Iniciativa de louvar, mas que não adianta muito a quem pretende o criôlo (crioulo?) da Guiné, tão diferentes são.

Eu saí da Guiné em 1966. Desde essa altura, muita água correu pelo Pidjiguiti e, sendo as línguas, todas elas, dinâmicas e por isso sujeitas a constantes alterações não só na sua pronúncia como até na semântica, pergunto-lhe se a palavra djila que diz se deve escrever guila deixou de se pronunciar gila passando a guila com o "g" na sua função de consoante gutural.

Também o significado desta palavra era, no meu tempo, tal como diz o José Teixeira, simultaneamente comerciante ambulante e contrabandista, no sentido de que comerciavam produtos que traziam sobretudo do Senegal e passavam a fronteira sem controlo alfandegário. Não havia qualquer espécie de menosprezo nesse julgamente pelo contrário: todos aproveitavamos e apreciavamos os serviços que prestavam.

Recordo-me que, em Farim, todos aguardavamos com alguma ansiedade os djilas que vinham de Kolda e até de Ziguinchor com os seus fornecimentos de artigos franceses (eu era habitual cliente da água de colónia Soir de Paris. Para lá, na volta, levavam tabaco em folha, meadas de algodão e sobretudo nozes de cola produzidas na região de Cacine. Essa actividade era de tal forma importante, que deu origem à expressão djilandade, usada para caracterizar uma acção menos séria.

Como já me alonguei muito, voltarei em breve a este tema que tanto me fascina . Mas antes de terminar atrevo-me a saudar o José Mussa Biai em mandinga, mesmo correndo o risco de não escrever correctamente mas apenas como a frase me soava e soa: Kaera sita?

Um abraço, meus amigos.
Mário Dias


Mais conversas sobre o crioulo

Continuando a divagar sobre o crioulo (criôlo), que tanto me encanta, começo por dizer que não lhe resisto sempre que para tal tenho ocasião. É frequente nas minhas deslocações a Lisboa, ao tomar o barco no Barreiro, ouvir guineenses a falar criôlo. Tenho que meter conversa. É uma surpresa para eles e também motivo de alegria para ambas as partes. E já tem acontecido, durante os nossos diálogos, serem referidas pessoas conhecidas dos participantes na cavaqueira.

O crioulo é uma língua, ou dialecto (deixo a definição para os filólogos) com uma enorme riqueza de expressões idiomáticas que, apenas quem as entenda em toda a sua plenitude e envolvência, consegue captar o seu verdadeiro significado e alcance. Isso só se consegue dominando bem a língua e, sobretudo, conhecendo os hábitos, usos, costumes e filosofia de vida dos naturais da Guiné.

Como exemplo, vou contar uma caso que se passou e que ilustra bem o quanto uma expressão dita em crioulo tem um impacto e uma graça que se perde dita em português.

Aconteceu em Bissau. Na altura, eu trabalhava na NOSOCO, cujo edifício serviu durante a guerra como sede e armazém da Manutenção Militar. Um dos meus colegas, o senhor Martins, respeitável guineense, de veneranda carapinha branca, encarregado do armazém daquela companhia, teve a infelicidade de perder um familiar. Morava no chamado Bissau Velho, próximo da fortaleza da Amura. Eu e mais alguns colegas deslocámo-nos a sua casa a fim de lhe prestarmos a nossa solidariedade. Num dos compartimentos estava a urna do defunto rodeada de muitos familiares e amigos carpindo o infausto acontecimento.

Dirigi-me a ele com as palavras usuais destas ocasiões. Como o vi bastante abatido e ansioso perguntei-lhe como se estava a sentir. Resposta pronta em crioulo que me arrancou uma escandalosa gargalhada que de imediato tentei reprimir, dadas as circunstâncias:
- Casa inchi kum. Nim kau de tira pide ká tem.- Creio que compreendem o significado que é:
- A casa está tão cheia, que nem existe um sítio onde se possa dar um peido.- Esta frase, dita em português, perde todo o impacto que o crioulo lhe dá. É como um poema traduzido para outra língua: esvazia-se grande parte do sentir que o poeta lhe deu.

A tentativa dos ex-militares que serviram na Guiné de usarem o crioulo, só demonstra o quanto foi e é grande a nossa vontade de entender aquele povo. Aliás, isso faz parte da característica dos portugueses que sempre souberem mesclar-se e tenta compreender os povos que foram conhecendo por esse mundo fora.

Essa vontade de comunicar na língua que as populações usavam maioritariamente, ou seja, o crioulo, é disso prova e o prazer que se espelha nas frases que vão partilhando com os restantes tertulianos, mesmo ao fim de todos estes mais de 30 anos (para alguns muito mais), é enternecedora.

Acontece, porém, que a grafia e o próprio significado que pretendem atribuir às palavras não é o mais correcto. Quanto à grafia, nada vou acrescentar pois, também eu, a esse respeito, sou um ignorante. As regras ortográficas, quanto julgo saber, só agora estão a ser objecto de estudo e implementação. Trabalho árduo deverá ser!

No que se refere à semântica, tanto de palavras como de expressões idiomáticas, aí já posso meter a colherada. Constatei ao longo dos anos que os nossos militares foram adulterando o crioulo não só quanto à correcta pronúncia como, até, alterando o real significado das palavras. Muitas vezes acontecia que eram os velhinhos, para alardear a sua sabedoria perante os maçaricos ou periquitos que os iniciavam no conhecimento da língua. O resultado foi que, sendo muitos desses ensinamentos errados, assim permaneceram e se divulgaram criando-se uma variante de crioulo que poderemos chamar crioulo de caserna. Para quem o utiliza, está correcto atendendo a que sabem exactamente o que pretendem dizer; mas, para outros, fora dos meandros desta variante soa estranhamente. Aqui está um tema interessante para estudo dos filólogos. Alguns exemplos:


(i) O José Teixeira, o Pastilhas da CCAÇ 2381, no seu diário que não perco e tanto me encanta - e, por que não confessar?, me comove (parabéns Teixeira, um especial abraço para ti) - usa frequentemente a expressão manga de chocolate. Julgo que ele pretende dizer manga de sakalata que significa muita confusão, muitos sarilhos ou dificuldades. A expressão sakalata é muito utilizada quando se pretende indicar que existe confusão, problemas ou discussão conflituosa. Dessa palavra deriva sakalatado que se aplica a uma coisa esquisita ou insólita.

(ii) Mais exemplos da adulteração do criôlo de caserna: a palavra máfè. E aqui abro um parentesis para dizer que tanto ouvi pronunciar máfe, tónica em e sílaba aberta, como mafé com a tónica em . E porquê? Porque a pronúncia das palavras, tal como acontece em Portugal, varia de região para região. Por exemplo, tchora (chorar) se dita por um manjaco soa com um “x” bem carregado; se for um papel, ouviremos “sora”. Regressando a máfe, que já vi no blogue traduzida como peixe, refere-se a qualquer acompanhamento do arroz (quando cozido toma o nome de bianda). É, comparativamente, aquilo que em Portugal chamamos conduto ou presigo. Claro que, por contingência, a maior parte das vezes o máfé era peixe, sobretudo peixe seco a que chamam kasseké. Quando o arroz cozinhado não tem máfé, diz-se rôz kuntango ou simplesmente kuntango.

(iii) Também é frequente a expressão partir mantenha com o sentido de cumprimentar. Começarei por esclarecer que no crioulo não existe o “r” final no infinito dos verbos. Deve dizer-se parte (dar ou oferecer). Parti´m (dá - me). Partíbu (dou-te). A confusão deve-se, suponho, à tentativa de adaptar a maneira como se fala o português ao crioulo. Claro que não funciona porque, enquanto nós dizemos dar os bons dias (daí o partir, dar) em criou não se utiliza o dar cumprimentos, mas sim falar. Desta forma, o correcto será, fala mantenha.

(iv) palavra que surge com frequência com significado errado é djubi, atribuído a menino ou rapaz. Menino diz-se minino e por vezes, de uma forma mais carinhosa, mininozinho ou rapazinho. Djubi, significa olha, vê e é também utilizado como forma de chamamento substituindo o nome da pessoa chamada. Passa-se o mesmo em português quando pretendendo chamar alguém dizemos: - Olha.

Peço desculpa por esta grande seca. A intenção é boa mas acabo por ser quezilento. Reconheço.

Chega. Tenho de ir ao baú desencantar algumas fotos em que está o Domingos Ramos para enviar brevemente com a pequena história da minha vivência com o que foi um dos primeiros e dos mais importantes chefes da guerrilha do PAIGC.

Guiné 63/74 - P442: O Rali Porto-Bissau (1): Jantar em Moreira de Cónegos (Marques Lopes)


Moreira de Cónegos, Guimarães > Janeiro de 2006 > O grupo jantarista e excursionista que vai fazer o Rali Porto-Bissau, no próximo mês de Abril, confraternizando num restaurante nortenho...

© A. Marques Lopes (2006)


Texto do A. Marques Lopes

Camaradas e amigos:

Para saberem quem são estes alegres convivas:

(i) de pé, a contar da esquerda: Franscisco Allen, M. Lopes, Albano Costa, Casimiro e Hugo Costa;

(ii) assentados (nem se conseguiram levantar!), a contar da esquerda - Manuel Costa e Armindo.
Anteontem, 18 de Janeiro, este belo grupo (perdoem a modéstia) juntou-se num jantar num restaurante em Moreira de Cónegos, mesmo pegado ao estádio do valoroso clube Moreirense. Esta iniciativa, do Allen, teve como objectivo juntar os elementos que vão participar no, já anunciado, Rali Porto-Bissau, a fim de afinar alguns aspectos da sua preparação. E os participantes serão: Allen, M. Lopes, Hugo Costa (filho do Albano), Manuel Costa (primo do mesmo Albano) e Armindo.

A data da partida ficou marcada para 5 de Abril às 07H00. A ideia é chegarmos um dia antes dos participantes no Rali por via aérea, que irão a 14 de Abril (ou para podermos estar nessa data em Bissau, no caso de haver algum atraso pelo caminho), e que são:

(i) Carlos Marques dos Santos, de Coimbra,
(ii) Casimiro e Ernesto, do Porto,
(iii) António Almeida e um camarada DFA, o José Clímaco Saagum, soldado do 1.º Pelotão da Cart 2339 ferido, em 19 de Setembro de 1968 (segundo informação do Carlos Marques dos Santos).

O regresso está previsto para todos a 28 de Abril, de avião.

Foi um bonito convívio de ex-combatentes que mostraram ser um grupo coeso, na solidariedade e amor à Guiné, e à volta do pica-miolos que o Armindo encomendou. O Albano, que mostrou ser um sentimentalão, desabafou:
- Apesar de tudo, se não tivesse havido guerra na Guiné não estávamos aqui todos neste convívio... Era bom que a nossa tertúlia se juntasse um dia.

Já devem ter perguntado por aquela pretinha que aparece do lado direito. É a Kombi, uma guineense de 27 anos, que trabalha no Algarve e que decidiu vir visitar o Porto. Como é conhecida do Manuel Costa, este convidou-a para ir ao pica-miolos também.

No futuro haverá certamente mais notícias.

A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P441: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A escola

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Meu caro Luís:

Estou emocionado!...

Já nem deu para ler o texto do Dr. Paulo Salgado.

As fotos falam por si. Os locais por onde brinquei, onde dei alguns mergulhos... Melhor, ainda as pessoas que me viram nascer, que cuidaram de mim e com quem partilhei refeições, angústias e alegrias. Estou a referir-me aos meus irmaõs mais velhos (sim, meus irmãos de sangue) e de um primo-irmão dos quais lhe falei.

Os meus irmãos são, Fodé Biai, o primeiro a contar da direita para a esquerda e Bacar Biai, o segundo na mesma ordem e Malam Mané, o quarto, dos que estão de pé.

O Fodé e o Malam cumpriram o serviço militar em Farim e depois Bissau, sendo o Malam depois transferido para Bambadinca. O Bacar sempre esteve em Xime.

Guiné-Bissau > Região de Baftá > Xime > 2006 > Antigos combatentes que estiveram ao lado dos tugas... Entre eles, dois irmãos e um primo do José Carlos, membro da nossa tertúlia...

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

O curioso de tudo isso, quem tirou as fotografias é um colega meu, o Domingos Fonseca, trabalhei junto com ele na Escola do Ensino Básico Preparatório Amizade Guiné Bissau - Suécia, em Bissau. Ele leccionava a língua portuguesa e eu matemática, antes de ele ir tirar o curso de engenheiro técnico agrário na Argélia. Estive com ele no ano 2000 em São Domingos onde ele estava como responsável de AD.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A rua principal do Xime...

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Um abraço amigo.

José C. Mussá Biai (1)
Engº Florestal
Instituto Geográfico Português (IGP)
Departamento de Conservação Cadastral (DCC)
Tel. 213819600 Ext. 310
Fax. 213819693
____________

Nota de L.G.

(1) vd posts de 9 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XV: No Xime também havia crianças felizes (1); e de 10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P440: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Chamarra, o guineense, menino no tempo da guerra colonial, entre o Albano (à direita) e o Camilo (à esquerda) levou-nos ao local onde era o posto avançado de Chamarra e havia esta placa guardada religiosamente: indicava Gatos Negros, CART 1612 (?)

© Albano Costa (2006)


Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...

© Albano Costa (2006)

Curta mensagem do Albano Costa:

Caro Luís Graça: Lembrei-me de enviar estas fotos de Chamarra... o José Teixeira merece ver estas fotos foram tiradas num dos postos avançados da Chamarra, em Novembro de 2000. O diário dele está muito interessante.

Um abraço,
Albano Costa.
__________________

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Mampatá, 5 de Janeiro de 1969
Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.

Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.

A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).

A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (1)...


Chamarra, 10 de Janeiro de 1969
Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Balde, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia (2) A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.

Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.


Chamarra, 16 de Janeiro de 1969

Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quárupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...

Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ? (3)


Chamarra, 23 de Janeiro de 1969

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.


Chamarra, 25 de Janeiro de 1969

A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...

Chamarra, 30 de Janeir de 1969

Já segui para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.

_____

Notas de L.G./J.T.

(1) Vd o resto do diário, referente à Maimuna, no post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira) (L.G.)

(2) Soube um ano depois, após a queda de Gandembel, que a situação piorou de tal maneira que foi lá colocada um Companhia (J.T.)

(3) Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem:
- Estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora! -, como tantas vezes ouvi, através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.

Um dia o Raul Fodé de Empada,, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa portuguesa, em Empada, pessoa culta, teólogo muçulmano, disse-me:
- Tixeira nos queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca.- … [Teixeira, queremos que tu fiques aqui. Deixa a tua arma e vem para a nossa tabanca]... Deixa a tua arma, abandona o teu exército!, ele que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...

Guiné 63/74 - P439: A verdade foi a guerra (A. Marques Lopes)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1970 >

A CCAÇ 12 (2º Grupo de Combate) atravessando uma bolanha, perto do Rio Corubal, na região de Mina/Fiofioli (segundo o Humberto Reis) ou na de Baio/Burontoni (segundo a minha interpretação). O ex-furriel mil Humberto Reis, sem quico na cabeça (!), é o primeiro tuga dos três que se vêem na fotografia (os outros dois são cabos).

Esta é uma das espectaculares fotos recuperadas (através de digitalização) de um conjunto inicial de 100 diapositivos (de um lote de mil...), e onde se incluem fotos áreas de diversos aquartelamentos e destacamentos da zona leste. O Humberto Reis, o nosso operações especiais - diga-se, por amor da verdade, que ele tinha o seu feitio mas não os tiques de ranger -, era na época um fã da fotografia, tinha uma excelente máquina e, além disso, sabia criar e manter óptimas relações com a Força Aérea, o que lhe permitia apanhar de vez uma quando umas boleias de heli ou de DO... Os diapostivos eram revelados na Suécia (!), o que explica a qualidade das imagens agora recuperadas, ao fim de 35 anos...

Humberto: Mais uma vez, o meu/nosso muito obrigado por este teu gesto, sem preço, de amigo e camarada de guerra e de tertúlia... Prometo continuar a publicar, com regularidade, uma selecção do teu album de fotografias que me deixou deliciado... L.G.

© Humberto Reis (2006)

Caros camaradas:

O meu grande apreço pelas palavras do Paulo Salgado ontem divulgadas no blogue (1).

As nossas, destes tertulianos, vivências de guerra são a soma das vivências de cada um e a particularidade de cada uma delas, cheias de sentimentos e visões individuais. É isso que tem dado riqueza a todas estas narrativas, é verdade, mas penso que não há que esquecer o que atrás referi.

Em Barro, entrei numa cena idêntica àquela que ele refere, com desencontros de narração e justificações diferentes, de tal modo que, já no aquartelamento, cheguei a estar com a minha G3 apontada para outro alferes, que acusei de me abandonar. Mas deu para reflectir e contive-me.

Aquela noite em que fiquei em Sinchã Jobel (1), teve como consequência, além daquela minha noitada, uma prisão disciplinar, e consequente transferência de companhia, para outro camarada. Mas a este não o acusei de nada nem contribuí pessoal e directamente para a sua prisão.

Porque estou completamente de acordo com o que diz o Paulo Salgado é que não me espalhei em narrativas muito pormenorizadas das minhas situações, daquilo que eu vivi.
Os meus parabéns ao Paulo Salgado. Faço minhas as palavras dele.

Um abraço do
A. Marques Lopes

Coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968)
__________

Notas de L.G.

(1) vd post do Paulo Salgado, de 18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias

(2) Vd. pots de A. Marques Lopes sobre Sinchã Jobel (vd. localização desta antiga tabanca, mais tarde base do PAIGC, no mapa de Bambadinca, junto ao curso do Geba Estreito, entre Bambadinca e Bafatá:

30 de Maio de 2006 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...

30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIX: Sinchã Jobel II e III

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI

5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII

Guiné 63/74 - P438: Cancioneiro de Mansoa (6): O pesadelo das minas (Magalhães Ribeiro)

Guiné > Estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole > 1969 > Efeitos da explosão de uma mina anticarro (I) © Humberto Reis (2006)

Guiné > Estrada Nhabijões-Bambadinca > 1971 > Efeitos da explosão de uma mina anticarro (II)
© Humberto Reis (2006)

Dos cadernos (1) do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974 (2).


POR AÍ NÃO... ESTÁ TUDO MINADO!

A mina era a mãe de todos os pesadelos,
Um temor... quando nos deslocávamos na picada,
Um flagelo constante para a nossa tropa
Qu’assim era traiçoeiramente estropiada.


O progresso na modernidade
Nas sociedades normais e sadias,
Evoluindo em paz e liberdade,
Seria a perfeita das harmonias.

Mas os ódios no mundo radicados,
Racismos, ditaduras, religiões,
Quezílias de terras e políticas
Geram conflitos e confrontações,

Que por vezes degeneram em guerra!
Entram os militares em acção!
Soldados, armas, estratégias...
Até que haja uma rendição!

Por vezes, os fins justificam os meios
E os métodos que são utilizados
Nem sempre respeitam as regras,
Tornando-se mesmo animalizados.

Bem no meio desta salgalhada
Existe uma raça, os guerreiros,
Aqueles que primam pela luta leal
Que no combate são os primeiros.

Formam uma estirpe elitista
A quem dá Honra e Orgulho pertencer
E pautam o seu ser pela divisa…
O firme Antes quebrar que torcer!

Amam a Pátria, a Paz, a Família
E s’algum dos três é posto em perigo
E eles têm que recorrer às armas,
Cuidem-se de tamanho inimigo.

Detestam tudo o que denote
Indícios de cobardia e traição
E esgotam todos os seus recursos
Para atingir a sua supressão.

Uma das traições mais frequentes
Qu’estes audazes querem derrotar
São as armadilhas sujas e desleais!
Das quais as minas são primeiro lugar .

Na Guerra do Ultramar, em África,
De todos os temores, o mais terrível
Era a mina dissimulada no chão,
Traiçoeira... funesta... invisível.

Dizem: - É uma arma de baixo custo!,
Que causava grande devastação
Entre as pessoas e as viaturas,
Podendo ser de sopro ou fragmentação.

Existem no mundo vários modelos
E por todas as Nações são usadas,
Aqui vou falar das antipessoal,
Criminosas e desumanizadas.

Montam-se com bastante facilidade,
Estuda-se no terreno um ponto,
Uma cova... põe-se a mina... tapa-se…
Arma-se o detonador e... pronto!

Disfarça-se a superfície à volta,
Do melhor modo camuflado,
E deixa-se ali ficar, a ratoeira,
Á espera d’um desgraçado.

É que, por incrível que pareça,
O seu objectivo não é matar...
Mas bem mais tenebroso e macabro
Ferir o corpo humano... retalhar!

Assim, a sua face mais infausta
É o medo dos graus de destruição
Tanto físicos como psicológicos
Que nas vítimas provocarão.

Será uma perna atingida... um pé?...
Enfim, que partes do corpo colherá?
Um ou dois olhos... os braços... as mãos?
a sorte ou o azar o dirá!

Basta um pé no sítio errado
E... está accionado o detonador!
Uma explosão, terra e pó no ar...
O resto... são os queixumes de dor.

O sangue na terra, a vida por um fio
Quanto sofrimento e agonia,
Corpo dilacerado... pedaço de vida,
Qu’ali deixa morto, sonhos e alegria.

Uma mina!... É o pânico geral!
Onde está uma, podem estar mais!
Quantas, duas, três?... uma incógnita!
Uma incerteza qu’arrasava os demais!

No cuidadoso planeamento das operações
Era tudo extremamente bem delineado,
Nos mapas evidenciavam-se zonas riscadas,
A vermelho, com avisos: - Local Minado! (3)


Ranger Magalhães Ribeiro

Furriel Mil.º da CCS do Batalhão 4612/74 - Mansoa/Guiné
______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá

7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...

10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'

(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

(3) Alguns dos nossos posts sobre minas e armadilhas:

20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho (Luís Graça)

23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David J. Guimarães)

11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969) (Luís Graça)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P437: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > "É uma casa portuguesa, concerteza...". Uma morança com um homem grande e a sua família...
© José Teixeira (2005)

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > A mulher do régulo e a filha...
© José Teixeira (2005)


Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71):

Companheiro Luís,

Continuo a acompanhar diariamente o teu/nosso blogue, o qual me tem permitido repescar do sótão da memória inúmeros episódios, alguns sofridos e outros intensamente gozados.

Na Guiné, além da guerra real, havia outra mais absurda – a dos papéis. Como Comandante de um Pelotão Independente, era inundado por um vultoso expediente, quer por via postal, quer através da rádio, o qual ia arquivando debaixo da cama.

A estória que hoje envio foi uma das minhas raras respostas às solicitações de Bissau, e ia tendo um péssimo resultado... Remeto, porque também tive momentos de tristeza, dois poemas, um escrito em Fá e outro em Finete, onde passei quinze dias à espera do "IN".

Um Grande Abraço de até Sempre e em Todos os Dias,
Jorge


O Jagudi de Barcelos (1)

Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (2).

Assim, no rescaldo do ataque ao Batalhão (3), lembro o primeiro, à noite, de G3 em bandoleira, pedir-nos:
- Se houver ataque, acordem-me . - Eu, então periquito, fiquei inteirado…

Do substituto deste, recordo o Xime e o Posto de Socorros, no qual ele resolveu tratar uma fístula anal, cena presenciada por toda a tropa que ali se encontrava, para iniciar uma operação. (Estava lá a CCAÇ 12, foi a do dilagrama)(4).

Quanto ao Polidoro, não sei porquê, meteu na cabeça que eu devia ser louvado pelo Com-Chefe, tendo até, para o efeito, ido a Bissau. Afinal estraguei tudo… Em vez de tal louvor, o que o Tenente-Coronel conseguiu, foi livrar-me de uma porrada.

É que, precisamente nessa altura (meados de Julho de 71, muito após ter completado dois anos de mato), recebi uma mensagem, perguntando-me qual o tipo de habitações que se deviam construir para os soldados africanos. Perante o absurdo, não hesitei, e acto continuo respondi:

Uma casa portuguesa, com certeza.
Não há mesa, mas no chão um alguidar com bianda e peixinho da bolanha... fica bem.
Um raminho de capim. E claro, à entrada, de Barcelos, um Jagudi….

Jorge Cabral (2006)


Molhi Daaba

Molhi Daaba no meu lençol
Fecha o seu corpo
Como Flor
Que teme o sol.
Com medo e dó
Não dá - Empresta
E desta noite
Nada me resta.

“Estou só”
Nov. 69, Fá Mandinga

Jorge Cabral


Sala de Operações

Néscio, burro, o Major aponta
No mapa a linha de Água
(Que é um largo rio). Faço de conta
E gozando, mascaro a minha mágoa.

Claro que sim, meu Major
Golpe de pé, Golpe de mão
De Badora ao Cuor
E penso (Que cabrão…)

O major planeia a promoção
Eu nada planeio. Adio a vida
Até poder dizer que não
Quando não for, a Esperança proibida.

Jorge Cabral
Finete, 19/2/71
_____________

Notas de L.G.

(1) Vd posts de 5 de Janeiro de 2006 >

Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas)

Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

Vd. post de 7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: Estórias cabralianas (3): o básico apaixonado

(2) Algumas destes nossos comandantes já aqui foram evocados, por mim e pelo David Guimarães. Vd posts de:

29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)

26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)

(3) Em 28 de Maio de 1969. Vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(4) Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

Guiné 63/74 - P436: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias

Guiné-Bissau > Xime > 2006 > Antigos tropas ao serviço dos tugas... Onde está a verdade do colaboraccionismo dos guinéus ? Onde ficou a mentira da missão civilizacional dos tugas ? Que diria hoje Amílcar Cabral, se fosse vivo, dos seus guerrilheiros que estão no poder ?
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


Texto do Paulo Salgado:


Camaradas e Amigos:

Tenho andado muito ocupado com o trabalho. O meu bombolom ainda não tocou neste ano da graça (ou da desgraça?) de 2006. Há-de tocar e acerca do que está epigrafado.

Quero dizer-vos, companheiros de uma jornada que está gravada nas nossas cabeças (alguns nem sequer querem tocar no assunto, não esqueçais!), que foi a que fizemos durante quase dois anos (alguns mais, pois eram mal comportados), quero dizer-vos - escrevia - duas coisas muito simples e que para mim fazem muito sentido:

Primeira: aquela foi uma guerra feita de retalhos, de bocados, de solavancos, de conhecimentos muito parciais da realidade global, de ignorância do que se passava noutros pontos da retalhada Guiné. Por isso, a História, a fazer ou a construir, tem que basear-se em factos parciais, parcelarmente conhecidos e narrados com fidelidade ao que se passou. E quem a fizer, se não for um profundo admirador da Verdade (como se defende - e bem - nas palavras do Mário Dias), mas antes um oportunista amigo dos tostões que caem de editoras empenhadas em vender milhares de livros, então nunca se fará História. Será uma História inimiga da Verdade.

Guiné-Bissau > Xime > 2006 > Restos do cais por onde se entrava e saía da Zona Leste...
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Guiné-Bissau > Xime > Ponte de Taliuará (?) > 2006 > É que é que esta imagem pode contribuir para a construção da História da Guerra Colonial na Guiné (Paulo Salgado) ?
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Segunda: Pedaços de estórias vividas por nós, em grupo, podem ser contadas de maneira diferente. Por vezes enviezada, não por sobranceria, não por melhor conhecer os factos, mas pela simples razão de que foram observadas em situações algo distintas mesmo que vividas simultaneamente: será aquilo a que poderíamos chamar o engajamento psicológico face a uma determinada situação. Poderia contar um caso que aconteceu com dois grupos de combate em acção conjunta (sob o comamdo do comandante de companhia), um dos quais comandado por mim, e que fazia a protecção ao outro que executou um golpe de mão (não interessa se teve êxito ou não...).

Pois bem: ainda num recente almoço de confraternização, reparei que aguns camaradas (valentes e amigos, claro) acusavam o grupo que eu comandava de que terá havido negligência na cobertura da sua retirada. Eu limitei-me a sorrir, apesar de o MM tentar contar as coisas de outra maneira - afinal aquela que nós pensávamos ser a verdadeira e que parece ainda hoje - porque estávamos em posições diferentes no mato, porque os turras também sabiam actuar, etc.

Na verdade, a acusação era a de que deixámos passar o IN para ir ter com eles e fazer fogo, o que aconteceu, de facto; ao que nós ripostámos: nada disso é verdade, o IN preferiu atacar o grupos que se retirava e ná se mostrou ao grupo que fazia a protecção...coiasas de táctica...que eles conheciam bem...

Como vedes, esta estória pôde ser contada pelo menos de duas maneiras. Por isso, tenho alguma relutância em falar da História, preferindo contar pedaços vividos: nas casernas, nos patrulhamentos, nas emboscadas, nos contactos com a população, na ternura dos olhos sorridentes dos meninos e meninas, no encanto das bajudas, nas conversas com os homens grandes, na chegada do avião com as cartas e aerogramas, nas batucadas, nas fugas para as valas - e no que isso trouxe de engrandecimento ou de empobrecimento, de solidariedade ou de desconfiança, de amizade ou de reacção negativa. Aí, de certeza, que estaremos de acordo.

O que não poderemos nunca, Amigos, é deixar-nos entusiasmar pelos nossos sucessos, nem permitir que construam uma História falsa. Nunca. Por isso, creio bem, só quem estiver preparado cientificamente, e tiver sabido contar o que viveu localmente, ou saber interpretar o que foi contado, merece trabalhar na construção da História da Guerra Colonial na Guiné.

Viva a verdade dos factos.

Bissau, Paulo Salgado

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P435: De Lisboa para o Xitole, com amor (Humberto Reis)

Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole > 2001 > Restos do aquartelamento do Xitole: a a antiga parada e, à direita, a casa dos oficiais.

© David J. Guimarães (2005)

Já aqui evocámos e descrevemos, noutra ocasião, o que era o inferno das colunas logísticas na Guiné, e em particular na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole (1), que muitos de nós conhecemos tão bem (eu, o Humberto Reis, o David J. Guimarães, o Carlos Marques dos Santos, etc.)...

Recorde-se que desde Novembro de 1968 que o itinerário Mansambo-Xitole estava interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.

Nove meses depois, a 4 de Agosto de 1969, a CCAÇ 12 participou na reabertura desse itinerário, que era absolutamente vital para as NT (aquarteladas em Mansambo, Xitole, Saltinho...). Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (o pelotão do Humberto Reis e do Tony Levezinho) com forças da CART 2339 (Mansambo) - a que pertencia o Carlos Marques dos Santos - formando o Destacamento A. Nessa operação, não foram encontradas minas nem abatizes no itinerário mas o IN emboscou 1 Gr Com do Dest B, constituído por forças da CART 2413 do Xitole, na Ponte dos Fulas, quando as NT estavam a reabastecer-se de água.

Hoje relembramos, através de alguns dos cerca de 100 diapostivos do Humberto Reis (em boa hora recuperados e digitalizados), aspectos menos dramáticos, mais triviais, mais humanos, dessas colunas, periódicas, em que levávamos a bianda aos nossos camaradas de Mansambo, Xitole e também Saltinho...

Guiné > Xitole > 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, passa pela Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, a caminho do Xitole (CART 2716, 1970/72)

© Humberto Reis (2006)

Comentário do David J. Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.

" (...) Efectivamente lá ao fundo da fotografia vê-se bem o Fortim, junto à ponte, e em cima dela pelo que vejo é a primeira viatura militar que está na foto.

"Esta fotografia foi tirada do ponto mais alto do destacamento da Ponte dos Fulas. Quem tirou a fotografia [o Humberto Reis] tinha um abrigo à sua esquerda e mais atrás o local onde comíamos, reuníamos, limpávamos armas, conversávamos, etc. E ra um coberto ao ar livre...

"Como se verifica a estrada passava pelo meio deste acampamento onde nós só estávamos para guardar a ponte sobre o rio Pulom (Ponte dos Fulas). Era um local isolado. Tínhamos um bem: não saíamos em patrulhamento.

"Tínhamos montadas duas Metralhadoras Pesadas Bredas .. Um dentro do Fortim e outra bem cá em cima junto ao coberto acima referido ... Essa estava apontada para a zona do Xitole, que distava 3 Km dali....

"Foi aqui que comecei a minha comissão no mato, pois o 3º Grupo de Combate a que eu pertencia, foi por sorteio o que calhou ir para ali ao 3º mês... De notar que os Morteiros do Xitole também protegiam aquela zona, estando perfeitamente com orientações para aquela direcção - bem mas isso era com os tipos das armas pesadas. Nunca tivémos ali nenhum ataque e ainda bem, senão tenho a sensação de que estaria aqui a contar outra história ou como ex-prisioneiro ou então... estaria com o Cunha, agora, no outro mundo...

"As colunas para nós eram um espectáculo mesmo... Não mais que isso, pois nada fazíamos senão vermos a passar os carros todos para um lado e, depois ao fim da tarde, para o outro ... Até ao próximo mês... E lá ficavamos nós na Ponte dos Fulas... No meio do silêncio da savana. A beber uns copos, claro...

"Diariamente do Xitole deslocava-se lá um Pelotão que nos ia levar géneros ao almoço e ao jantar... Note-se que tinhamos a noção exacta de que a área circundante e a zona entre o Xitole e a cerca deste destacamento - eram terra de ninguém onde o IN andaria mais ou menos à vontade...

"O único civil que lá recebíamos era o Mamadu, um pescador, bom homem, bem alto ... e que já morreu".
Guiné > Xitole > 1970 > Vista aérea do Xitole (aquartelamento, posto administrativo e tabanca)

© Humberto Reis (2006)

Comentário do David J. Guimarães:

"Esta foto aérea terá se ser comparada com outras, que eu tirei em 2001, já publicadas na página do Xitole, e que identificam os edifícios que ainda existem (ou exitima). Vamos lá descrever o que vejo, possivelmente a bordo de uma DO - não sei, deverá ser...

"Da direita para a esquerda, os edifícios: em primeiro lugar, a cozinha das praças notando-se na esquina um abrigo subterrâneo - era nesse abrigo que dormia parte do 4º Grupo de Combate... Depois andando mais para a esquerda vemos outro abrigo e depois uma casa civil - era a casa do Chefe de Posto, hoje ainda existente... Continuando, vemos uma casinha pequenina e à frente outro abrigo - aí era o ninho de um dos morteiros 81 e o abrigo da secção de armas pesadas que lá se encontrava...

"Depois mais à frente aparece um grande abrigo - sei que lá se instalava parte do 1º Grupo de Combate... Continuando mais à frente vê-se uma casinha pequenina - era a capela da companhia (tenho eu que enviar uma fotografia onde eu estou na frente) Notem agora uma arvore frondosa - é a árvore grande ainda hoje existente - da parte de vê-se outro abrigo: também ele com o resto do 1º Grupo de Combate... Por detrás da capela e debaixo dessa árvore grande verde, é exactamente o bar do soldado, aquele bar onde o Humberto e o Levezinho se encontram a conversar em fotografia que vem mais abaixo, neste post...

"Mais à esquerda vemos outra árvore de bom porte: é o local da porta de armas... Seguindo agora desse modo no sentido da pista, vemos um edifício escuro: é a Oficina Mecânica, o depósito de armamento, enfermaria etc... Caminhamos mais para a direita e novo edifício e abrigo - messe e abrigo dos oficiais... Antes e bem junto nota-se para lá qualquer coisa: ninho da metralhadora Breda e abrigo... Mais para à direita casa dos oficiais, surge então a sala de operações, a messe dos sargentos, a secretaria etc... Deixamos esse edifício comprido e logo vemos outro: depósito de géneros.... Mais à frente e com árvores notam-se edifícios: são casas de banho... Mais um abrigo voltado para a pista e mais uma arrecadação... Enfim, era por ali que se instalou também e já coberto pelas árvores o ninho do morteiro 10.7 ...

"E estamos muito perto do ponto de partida, a cozinha dos soldados.... Aí existia outro abrigo idêntico àquele que se situa ao lado da cozinha... Bem ao fundo nota-se então a pista dos aviões e um quadrado bem definido que é o heliporto....

"Toda a área circundante ao quartel antes da pista tinha uma vala, como era de esperar.... Ela percorria toda a zona habitável do aquartelamento...

"Agora bem à esquerda do aquartelamento aí está o Xitole civil ... Em frente à pista e do lado do heliporto nota-se um trilho que nos levava à Ponte Marechal Carmona... Pelo fundo da pista nota-se uma estrada que vai dar à que segue para o Saltinho... Pela frente e na zona mais arborizada existe um complexo: era onde havia um poço... Mais à esquerda sim, e quem sai da porta de armas, vê-se uma estrada - bem à esquerda da fotografia... Exactamente era por aí que entravam as colunas logísticas que vinham ao Xitole (1)...

"Ai, Luís e Humberto, ficaria toda a tarde a falar sobre isso - por agora vai isto assim... Descrito com emoção, os locais estão certos, o português está à atirador que era o que eu era"...

Guiné > Xitole > 1970 > "David: Ou a ti, a partir de Junho de 1970, ou à malta da CART 2413, anteriormente, costumávamos a ser nós, CCAÇ 12, a levar a bianda. Cera vez arranjei aí um amigo que me ajudou a comer a ração de combate".

© Humberto Reis (2006)


Guiné > Xitole > 1969/70 > Guiné >Xitole > 1970 > "Zé Vacas de Carvalho (2): Conheces este rapazinho de lencinho ao pescoço no Xitole? À tua direita, estou, e à esquerda - penso eu, se a memória me não falha - o furriel enfermeiro Godinho da CCS do BART 2917 que foi connosco, à turista... À direita, temos o nosso amigo e camarada da CCAÇ 12, o furriel miliciano T. Roda".
© Humberto Reis (2006)
Guiné > Xitole > 1970> Os furriéis milicianos Reis e Levezinho. "Tony: Esta no Xitole também está bem apanhada. Parecemos dois bonecos da bola".

© Humberto Reis (2006)
__________

Notas de L.G.

(1) Vd posts de

20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho

11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969)
(2) O Alf Mil Vacas de Carvalho era o comandante do Pelotão Daimler, estaccionado como nós, CCAÇ 12, em Bambadinca (1969/71).

Guiné 63/74 - P434: Comentário ao Diário de José Teixeira (J.C. Mussá Biai)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972:

Malta da CART 3494, em passeio despreocupado pela tabanca do José Carlos Mussá Biai, que na altura era criança... O segundo, a contar da esquerda, é o ex-1º cabo radiotelegrafista Castro. A CART 3494 (1972/74)esteve aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74). Pertencia ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

© Sousa de Castro (2005)


Meu caro Luís:

Acabo de ler o diário de José Teixeira que acho muito engraçado (no bom sentido) e com um sentido de humanismo raramente visto. Isso só demonstra o sentido de solidariedade e compaixão que une os dois povos.

Cumpre-me fazer algumas correcções:

(i) Aquilo que ele escreve como vianda devia ser bianda;

(ii) Aquilo que ele escreve vem na cume devia ser bim nô cumé;

(iii) O que escreve de gila deve ser guila e o significado não é contrabandista, mas sim, comerciante ambulante;

(iv) E o dialecto que ele identifica como sendo mandinga, não o é, mas sim fula.

O meu muito obrigado. Um abraço, amigo Luís.

José C. Mussá Biai


2. Comentário de L.G.:

Fico muito feliz por reencontrar, agora aqui no bosso blogue, o José Carlos, que faz parte da nossa tertúlia, como guineense, como português e como amigo. Recorde-se a sua história:

Nasceu no Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 2715 (1970/72), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74). O furriel miliciano enfermeiro, da CART 3494, de nome José Luís Carvalhido da Ponte, natural de Viana do Castelo, foi alguém especial na sua vida e na vida de outros meninos, por ter sido seu professor na única escola que lá havia, o Posto Escolar Militar nº 14.

Também teve como professor, depois da CART 3494 ter ido para Mansambo, o furriel Osório, da CCAÇ 12, que dava aulas no Posto Escolar Militar nº 14, juntamente com a esposa. Fez a instrução primária debaixo de fogo. Um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. O seu pai, um homem grande, mandinga, do Xime, o chefe religioso da comunidade islâmica local (um almanu).

A família, de etnia mandinga, teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Teve irmãos que fizeram o serviço militar em Farim e que depois foram presos. O José Carlos, nascido em 1963, foi para Bissau fazer o liceu. Foi cinco anos professor, até vir para Lisboa e obter uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Hoje é formado em engenharia florestal. É casado. A sua mulher é natural do Xitole, filha de um comerciante conhecido dos tugas, o Braima.

Trabalha e vive em Portugal, no Instituto de Geográfico Português. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime. O José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a ele que também pertence.

Guiné 63/74 - P433: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Créditos fotográficos: © José Teixeira (2006)


Mampatá, 29 de Outubro de 1968
Quase seis meses se passaram, já, desde que deixei a Metrópole. Parece que estou a ver à minha frente o cais de embarque e milhares de pessoas que com as lágrimas nos olhos e lenços a esvoaçar diziam adeus aos jovens familiares que se lentamente se afastavam com destino à Guiné.

Este tempo, os primeiros meses da guerra, sempre o mais difícil, tem-me custado imenso a passar. Ambientes diferentes, um clima doentio que me marcará para sempre, a guerra com todos os seus perigos. Até a própria natureza parece diferente. Tudo isto são factores, que a par das saudades da família que ficou preocupada, da namorada que lá longe sofre na incerteza, influem no meu estado de espírito.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > A antiga enfermaria do José Teixeira

Já corri muitos perigos. Balas e estilhaços que mãos criminosas, inconscientes ou talvez conscientes do direito de terem a sua Pátria livre, lançaram sobre mim. Já percorri muitos quilómetros, conheci terras, povos e culturas, paisagens maravilhosas. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a Guiné, a forma natural como os seus povos vivem, a fraternidade que comungam entre si, a sua forma simples de Ser, em que o Ter não é importante, mas o viver cada dia como que o seguinte não existisse.

A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:
- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos.
Guiné-Bissau > Quebo > 2005 > Um hospital (?)...

A refeição animada com a conversa sobre a forma de viver em Lisboa, quando chega um estranho elemento, carregado de panos e bujigangas, era um gila (contrabandista oriundo da Guiné Conacri). Começou o diálogo em Mandiga:
- Na pinda . .. Jame tum … - . O homem sentou-se e começou a comer connosco. O ditado Português diz “para mais um chega sempre”, agora para mais dois… mas chegou.

Após ter comido connosco a pouca vianda que havia tentou vender os panos que trazia, depois foi-se embora, com muitas saudações e com um Djarama nani ( muito obrigado) no final
Quem é? - perguntei.
- Ká sibi - É Gila vem de Conacri, tinha fome. Quando pessoal tem fome …


Mampatá, 1 de Novembro de 1968
Comemoro seis meses que saí da Mãe Pátria. O "Bandido" quis entrar na festa e veio fazer uma visita a Mampatá. Ontem cerca das 20 horas, com seis canhões sem recuo e um morteiro, fez um belo festival nocturno enviando-nos 112 canhoadas que não causaram danos físicos nem materiais. Ripostamos com o 81 e mal o inimigo cessou o fogo, os meus colegas e alguns soldados da Milícia saíram na sua perseguição, sem resultado porque o IN pôs- se de imediato em fuga.

Note-se a diferença de capacidade bélica. Eles trazem todo este material às costas. Isto é demais…
Gui Guiné-Bissau > 2005 > Uma campanha sanitária, tendo em vista a prevenção do paludismo...

Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha Paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem. Os que conseguem escapar na sua fase mais aguda. A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.
Todos os dias de manhã tinha sua visita.
- Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa
Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra! Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.

Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé. Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um antipalúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reacção negativa do coração. Então pensei que, injectando na bebé umas milésimas destes dois produtos, talvez salvasse a criança.

Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar. A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelerado do coração e um avermelhamento da face. Depois a aceleração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas. Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia:
- Tu mataste minina! -. Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a aceleração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.

Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria. Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro, já não vomitou a mamada (2).

Trazia-me água fresca numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa). Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas ... à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava:
- Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !
Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.

Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé. Fámara, Binta Auá e Answar. A mãe era uma velhinha que só falava o seu dialeto e o pai tinha-as abandonado suponho que era gila ( contrabandista) ou IN.


Mampatá, 3 de Novembro de 1968

O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá" pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa para buscar na cozinha alimentação, para tentar entrar em Mampatá.

De algum modo eu fui o responsável pela situação criada, pois incentivei um sentinela durante a noite a mandar um tiro na direcção de uma vaca que estava entre as duas faixas de arame farpado e tocava neste, provocando o tilintar das garrafas que lá tínhamos colocado para não sermos surpreendidos pelo IN a tentar entrar pela calada da noite cortando o arame. Esta minha atitude passou-se durante a minha hora de ronda e o sentinela assim fez pouco depois, aparecendo de manhã uma vaca com um buraco numa coxa. Claro que o proprietário, o Régulo Alfero Aliu (Alferes da Milícia) vendeu a vaca à tropa.

Há mais de um mês que não comemos carne, porque os Africanos se recusam a vender qualquer animal. Assim foi fácil convencer o proprietário a vender a vaca ferida, mas ficou-nos cara.

Praticamente todos os postos de sentinela ficaram abandonados à hora do almoço o que não é habitual, mas o estranho foi o turra saber exactamente o que se estava a passar e atacou.

Quase todos os soldados tiveram de correr para as suas posições debaixo de fogo e durante quinze minutos a luta foi terrível com "eles" junto ao arame com fogo cerrado. Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa capacidade de resistência e por sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva Algarvio que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar. Aliás foi ele que deu o sinal. Ao ver um grupo de africanos com armas que não eram a velha mauser a tentarem forçarem a porta em rede de arame farpado, estranhou e abriu fogo, depois… foi, cantinas de comida pelo ar e umas loucas correrias para os abrigos de protecção. Segui-se o “chocolate” do costume. Os assaltantes recuaram para selva e o fogo continuou.

Onze moranças ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN contava ter muito que fazer com os feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém contava com tal surpresa e os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro ( apenas 2 sacos de soro).

Ainda debaixo de fogo saí do abrigo onde me protegera e corri pela tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.

Pergunto-me como que a população não foi atingida e as suas casas foram queimadas ? Ataque combinado ? Notámos que o “catequista” muçulmano saiu de manhã cedo para a bolanha, o que é estranho pois costuma estar sempre na tabanca a ensinar os putos e só voltou muito depois do ataque. Temos de o trazer debaixo de olho, como disse o Alferes Belo depois de saber a sua ausência.

Novo ataque de. . . formigas. Dormia a bom dormir depois de uma ronda de duas horas pelos postos de sentinela. Um colega dá um grito: Aiiiiiiiii. Logo de seguida, eu, e os outros dois colegas saltamos da cama pensando que era mais uma visita do IN. Aconteceu-nos exactamente o mesmo que aos colegas do posto do morteiro. Estávamos todos cravados de formigas e o chão era um autêntico tapete preto. Iniciamos logo o combate dirigido por mim pois já tinha experiência da sessão anterior com o Rio Maior.

Quem não gostou foi Djaló, pois a palhota dele sofreu um ataque di branco e ficou sem palha. Foi a única maneira de matarmos as formigas e podermos continuar a dormir descansados.

Foi aqui que pude apreciar a sua capacidade organizativa. Com a bota esmagava um grupo delas e logo as mais fortes se dirigiam para o local fazendo como que um cerco de protecção. Mais tarde nas minhas experiências pude verificar que ao interromper uma a fila de formigas, todo o grupo parava até vinte / trinta metros à frente e rectaguarda e iniciavam de imediato o envolvimento à zona afectada seguindo à frente as mais fortes.


Mampatá, 5 de Novembro de 1968

Atacaram Gandembel com o Morteiro 120 e às 3 horas da matina, Ponte Balana acordou debaixo de manga de chocolate (fogo intenso). Não sabemos se houve acidentes pessoais.

Parece incrível que a zona do Corubal que, segundo dizem é das mais lindas e mais ricas da Guiné, se encontre mal defendida. Há lá uma tabanca onde só existem três armas antigas, canhangulos. Da última vez que o IN a visitou, a população fugiu para o mato e eles entraram à vontade, roubaram o gado e incendiaram as tabancas.


Mampatá , 29 de Dezembro de 1968
Há uns tempos que não pego no Diário. Senti-me por uns tempos desorientado, mas agora estou melhor. Habituei-me ao ambiente e às situações que tenho de viver - estou em guerra - e tudo se tornou mais fácil, apesar de começar a não entender a razão desta guerra. A população quer paz para viver e nós, ao estarmos cá, trazemos-lhe a guerra. E de facto a guerra continua, mas a situação nesta área está mais calma e a relação com os povos locais - Fulas Mandingas, Fula Futas e Balantas - é excelente. Estou a gostar de viver aqui.

A bajuda Jobo Ansato (Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas. Com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu, embora notasse essa mudança, não conseguia compreender a sua razão de ser.

Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer:
- No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.- Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa !

A minha fama de curandeiro depois da recuperação da Binta, assim se chama a bebé que curei, fez-me passar por outra aventura do género. Apareceu-me na Enfermaria improvisada, ao ar livre, uma mulher que não era da localidade a pedir-me para ir ver o seu minino que ramassa (vomita) e tem corpo quente, manga d'ele (temperatura).

O menino estava numa cubata perto da Enfermaria, deitado numa esteira no chão e apresentava os mesmos sintomas da Binta, muito magro, alta temperatura, sem forças nos braços. Era um pouco mais velho, mas estava esquelético

Hesitei, tal fora o susto que tinha passado e insisti para o levar a Aldeia Formosa e daí para Bissau na avioneta que viria dois dias depois trazer o correio para os militares, dado que não havia médico nesta localidade.

Numa mistura de Português, crioulo e dialecto da etnia, a mãe só me pedia:
- Cura minino. Dá quinino para minino ficar bom.

Preparei o medicamento servindo-me do mesmo sistema que utilizei na Binta, apenas em menor quantidade e dei a injecção ao miúdo, cujo nome não cheguei a saber.

As reacções foram as mesmas, só que desta vez a recuperação foi mais lenta. O coração parecia um cavalo, embora o corpo estivesse como que paralisado, apenas mexia os olhos dilatados.

Para meu azar, a mãe e a proprietária da cubata entraram em pânico, mais que eu próprio e começaram a ameaçar-me que se o menino morresse o marido me matava a mim, cortava-me o pescoço. Faziam o gesto com uma catana que sempre usam.

Eu só pedia calma e acompanhava o estado do bébé. Tal como da outra vez, ao fim de umas horas a temperatura baixou, a face deixou de estar avermelhada e os olhos perderam a dilatação.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > O ex-1º cabo enfermeiro Teixeira da CCAÇ 2381 encontra o seu antigo ajudante de enfermagem, Braima, 36 anos depois...

Deixei a criança entregue à mãe, recomendando que lhe desse uma pequena mamada e fosse aumentando a dose conforme ele fosse reagindo. Se a temperatura subisse ou vomitasse devia chamar-me de imediato. Se não houvesse nenhuma situação anormal, eu voltaria no dia seguinte para ver o menino.

À noite rondei a casa para ver se havia alguma anormalidade e no dia seguinte dirigi-me para lá, ainda cedo, para ver o estado do bébé, mas não consegui voltar a vê-lo porque a mãe, de manhã cedo abandonou Mampatá, pelos vistos, feliz porque o seu minino já comia e não tinha o corpo quente.

De onde veio, quem era, nunca chegarei a saber, pois a dona da tabanca diz que não conhece a mudjer que esteve lá em casa com o menino, apenas lhe deu hospedagem por uma noite.
__________

(1) Em 2005 procurei o Hamadu. Sei que foi viver para Buba, sendo actualmente quem dirige as orações na Mesquita local. Não consegui encontra-me com ele, apenas conheci uma neta, por quem deixei uma mensagem.

(2) A recuperação foi de cerca de oito dias. Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina: - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar).

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P432: O Hotel de Bambadinca (Carlos Marques Santos)

Bambadinca. Março de 1969. O furriel miliciano Marques dos Santos, da CART 2339 (Mansambo), aguarda transporte, de Bambadinca para Bissau, para gozo da sua licença de férias na Metrópole (vd fotos a seguir).

Um felizardo do mato, com direito a férias (nem que fosse em Bissau, também conhecida por guerra do ar condicionado), ia de barco, civil, a partir de Bambadinca, ou apanhava uma LDG no Xime ou, ainda, uma boleia, de helicóptero ou de Dornier (o que era mais difícil, por causas das prioridades, do elevado custo do transporte aéreo e sobretudo do factor C - a cunha).

A sede da CCS (Companhia de Comando e Serviços) do BCAÇ 2852, em Bambadinca, funcionava como hotel para os militares em trânsito, oriundos dos aquartelamentos e destacamentos do sector (em especial, Xime, Mansambo, Xitole, Missirá e Fá Mandinga) ou até de outros sectores da Zona Leste (Bafatá, Gabu, Galomaro...).

Comparadas com as do Xime, Mansambo ou Xitole, as instalações para oficiais e sargentos em Bambadinca eram as de um hotel de cinco estrelas... Daqui que a malta de Bambadinca (CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras unidades) arranjasse sempre poiso para os alferes e furriéis milicianos em trânsito... Mais do que cumplicidade, havia solidariedade para com os camaradas que viviam em piores condições do que nós... De resto, havia sempre camas vazias, nomeadamente da malta operacional que frequentemente dormia no mato (como era o caso da CCAÇ 12)


Foto nº 1 > "A foto foi tirada pelo Furriel Rei (Cart2339), meu inseparável companheiro de férias - diz o Carlos Marques dos Santos. - No interregno das nossas férias aconteceu o desastre do Cheche – Madina do Boé, onde também a CART 2339 esteve envolvida com material auto e apoio logístico (1).

"Na primeira fila, vêem-se os Furriéis Oliveira e Soares. Na 2.ª fila, eu (Marques dos Santos) mais o furriel Carlos Pinto".

O Humberto Reis confirma que o Soares que aparece na foto é o José Manuel Amaral Soares, ex-furriel miliciano sapador de minas e armadilhas, pertencente à Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do BCAÇ 2852. Foi um dos co-organizadores do convívio anual da malta de Bambadinca (1968/71) que se realizou em 2004, em Faro (2).

Em 1999, realizou-se outro convívio, já aqui relembrado (3), na Quinta da Graça, em Riade, Resende, junto ao Rio Douro. A Quinta da Graça é propriedade de outro camarada do nosso tempo, e da mesma unidade (CCS do BCAÇ 2852), o Pinto dos Santos, que era furriel de operações e informações (se não me engano).

Foto nº 2 > "Aqui, já com o Furriel Rei na 1.ª fila"... Como se pode ver pelas fotografias, não se passava sede no Hotel de Bambadinca e, a avaliar pela decoração das paredes dos quartos, os seus hóspedes tinham uma permanente ligação (espiritual, estética, mágica, poética, erótica...) com o mundo dos vivos (ou, melhor, das vivas...).
 
Foto nº 3 > "Eu, Marques dos Santos, no Hotel de Bambadinca"...
Manda dizer o Humberto Reis, a propósito destas fotos:

Carlos Marques, acertaste em cheio. É ele mesmo, o Soares, sapador, que mora aqui na zona de Lisboa (mais concretamente, em Caneças, concelho de Loures).
"Fotos 1 e 2: O que está na 1ª fila do lado esquerdo é o Ranger Fernando Jorge da Cruz Oliveira, de quem sou visita habitual lá de casa. Temos dado uns belos passeios juntos com as nossas Marias (também mora aqui na região de Lisboa, em Fernão Ferro, cocnelho do Seixãl). O que está ao teu lado é o radiomontador Carlos de Oliveira Pinto que mora no Porto, aliás o Sr. Engº Pinto....
"Na foto 3 pode ver-se um frigorífico que eu comprei quando os velhinhos da CCS do BCAÇ 2852 se vieram embora e ficou para a malta da CCAÇ 12 que depois mudou para o meu quarto". Um frigorífico (eléctrico), naquelas paragens e naquele contexto, era um verdadeiro luxo! O nosso só funcionava à hora do almoço e à noite, quando estava ligado o gerdaor... Foi depois revendido aos periquitos que nos vieam render, em finais de Fevereiro de 1971. E julgo que terá chegado, heroicamente, até à hora da partida do último soldado português na Guiné. Provavelmente terá sido oferecido a um camarada do PAIGC. Por falta de energia eléctrica, terá morrido ingloriamente no montão de lixo que deixámos em Bambadinca, a começar pela tralha da guerra...
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(1) Notas de L.G.:

Vd post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

(2) Vd post de 20 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 - V: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca

(3) Vd post de 23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVII: Convívios do pessoal do BCAÇ 2852 e da CCAÇ 12: Resende (1999)

domingo, 15 de janeiro de 2006

Guíné 63/74 - P431: Tio (Albano) e sobrinha (Sandra) 'apanhados pelo clima' (Albano Costa)

Mensagem do Albano Costa (ex-combatente da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74>)

Caros amigos tertulianos e demais bloguistas em geral, eu ao tomar esta iniciativa de escrever estas letrinhas gostaria de deixar bem claro que é a minha e só a minha opinião.

Quando eu resolvi ir à Guiné em Novembro de 2000 não foi fácil a minha decisão!...
Pedi opinião a pessoas que já lá tinha ido, porque a ideia que eu tinha era sempre a mesma!... A zona onde a minha CCAÇ 4150 esteve era uma zona muito complicada, assim como todas, mal se saía fora do arame farpada era logo porrada!...

Guiné-Bissau > Novembro de 2000 > Albano Costa, reodeado de novos amigos, fazendo um pausa, a caminho do Chugué...
© Albano Costa (2006)

E eu vivi muitos anos com esse pensamento, e actualmente continuo a sentir que a grande maioria dos ex-combatente ainda pensa como eu pensava!... Eu compreendo, não é fácil esquecer!... Aliás, nunca mais esquece!... E ao ler estes testemunhos, aqui reproduzidos no blogue, dá para uma pessoa entender como ao fim de 30/40 anos - o tempo que vai da nossa passagem pela Guiné - , os relatos são como tudo isso ainda se tivesse passado hoje!...

Guiné-Bissau > Novembro de 2000 > Os novos expedicionários, a caminho de Bedanda... Como podem ver, as picadas não mudaram muito... © Albano Costa (2006)

Ainda dá para imaginar que os ex-combatentes julgam a Guiné na mesma. Mas, não!... Não está na mesma, a Guiné é um país realmente muito pobre, mas tem toda a segurança para quem o quiser visitar e há uma coisa que tem e que é muito rica, as pessoas, essas que na altura nós chamava-mos turras e eles a nós tugas, hoje chamam-nos como muitos guineenses me chamaram:
- Somos irmãos, a diferença é só na pele, o sangue é o mesmo. - Afinal foram 500 anos de história.

Gostaria de ver a Guiné mais desenvolvida e esse mesmo desenvolvimento é pena que não se esteja a ser feito através do turismo, esse turismo que tinha nos ex-combatentes uma grande massa humana, era só o governo pensar um pouco mais no investimento, mas não demorar muito tempo porque se não os ex-combatentes vão envelhecendo e então aí torna-se mais difícil. Como alguém bem recentemente escrevia no blogue aquilo que eu digo neste momento:
- Julgei que ia à Guiné e esquecia, mas teve o efeito contrário, ficou a vontade de lá voltar sempre. - É o que acontece comigo.

Em 2004, uma minha sobrinha que faz parte um grupo de jovens universitários que fazem voluntariado social e se dedicam a missões humanitárias (GASPorto -Grupo Acção Social do Porto) veio-me perguntar se conhecia alguma missão na Guiné. Eles queriam fazer acção social naquele país durante dois meses. Prontifiquei-me logo a ajudar, eles lá foram, alguns com mais coragem que outros e algumas famílias um pouco na expectativa... Mas lá foram e o que fizeram foi muito bonito. Adoraram principalmente aquele povo. Eu vou transcrever as cartas que a Sónia me escreveu, com a devida autorização da autora:

Primeira carta, em 25 Agosto 2004

Oi familiazinha, isto aqui é mesmo um sonho, Moçambique é bonito, tem uma beleza mágica, mas a Guiné não fica nada atrás. A verdura é magnífica, as paisagens são uma coisa que só visto. O tio tinha razão, é um país com uma beleza enorme.

Bissau é esta confusão, parece o Porto, sempre com muito pessoal, até trânsito temos, o que torna tudo engraçado. O mercado de Bandim é aquela coisa cheia de pessoas, passando na rua só se vê cabeças.
Guiné-Bissau > 2004 > A Sónia e o Nuno num toca-toca (táxi colectivo)... Uma experiência que os jovens em Portugal não podem ter... © Albano Costa (2006)

Os toca-toca são muito porreiros, há sempre lugar para mais dois, cabe sempre mais alguém.

As pessoas são muito simpáticas, sempre com um sorriso nos lábios e as crianças, essas são um doce com o seu sorriso.

O ano passado gostei muito de estar em Macia (Moçambique) e tive pena de não ir para lá este ano, mas agora que cá estou também estou a adorar.

O nosso trabalho, apostamos muito na educação, as crianças estão de férias nesta altura do ano, mas nós criamos aulas de recuperação e elas aparecem, damos a primária do 5.º ano ao 8.º ano, isto em Nhoma e em Nhacra [a nordeste de Bissau]. Temos muitos miúdos, principalmente na escola primária.

A nossa grande dificuldade é o crioulo, os mais pequenos não entendem o português. Apenas se fala português dentro da sala de aula e só quando vão para a escola, mas aos poucos vamos conseguindo.

A nível de saúde o projecto é mais para realizar em Portugal, vamos ver se o Hospital Santos Silva [, de Gaia, ]nos quer ajudar com algum material básico.

Locais que já conheço, fomos este fim-de-semana a Varela, não sei se o tio conhece, é na região da beira mar, perto de Cabo Roxo, quase a chegar ao Senegal. A praia é uma praia selvagem, sem qualquer mão do homem, é natural. A viagem de lá foi um sonho, é um bocado longe mas valeu a pena. O Padre Eugénio levou-nos de carro até Safim e depois fomos com um casal português que o Nuno conhece. Fomos de carro até lá, passámos por Buba e fomos até Cacheu, lá atravessamos de jangada até ao outro lado e aí passámos 7 horas de picada pelo meio da natureza.

Os buracos, os saltinhos e toda a paisagem tem um encanto magnífico. Quando chegámos já era noite, pelo caminho o senhor Fernando foi a caçar uns pássaros e pelo caminho o jipe dele teve um furo no pneu, e rapidamente do meio do nada apareceu logo quem nos ajudasse. A casa era um filme, não tínhamos luz, a casa tinha alguns bichinhos, na jardim tínhamos que ter cuidado porque às vezes há cobras, mas tudo isto faz parte da Guiné e sem estes bichinhos não era a Guiné.

O tempo é muito quente, é mesmo muito quente. Há dias em que o calor é mesmo insuportável, mas aos poucos nós habituamo-nos.

Mais novidades tenho mas não posso escrever tudo só na primeira carta, vou escrevendo para a família e assim vão sabendo como estão as coisas por aqui.
Obrigado por todo o apoio que me deram e por me terem ajudado.

Beijinhos para todos, e só mais uma coisa, as mangas são uma delícia, é um fruto mesmo bom. Sabe tão bem comer uma manga e saborear aquele paladar. Quando for para Portugal vão deixar muitas saudades.

Agora despeço-me mesmo, as prximas aventuras seram escritas futuramente.Beijinho grande para todos.

Sandra Neves - a guineense 2004.



Segunda carta, em 18 de Setembro 2004

Olá,tio.

Imagine onde estou? Vou descrever para ver se consegue adivinhar.

Tenho umas casinhas redondas, umas palhotas onde vou dormir esta noite. Neste momento estou sentada numa cadeira de palha, ao ar livre debaixo de um telhado de palha a ouvir a natureza. Da parte da tarde tive a tomar banho numa água límpida e quente, no final da tarde não havia água, podiamos atravessar a pé para o outro lado. Ah, e estou na companhia de um senhor muito simpático. Já sabe aonde estou, sim no clube Fo noya, em Buba. Isto aqui é muito bonito, esta natureza que transmite tanta paz, uma beleza pura, sem a mão do homem.

Antes de cá chegarmos passamos pelo Saltinho, parámos na ponte onde estivémos a ouvir e ver aquela queda de água, onde a água tem aquela força e beleza que só quem vê sabe do que estou a falar. O Sr. Baldé disse que o tio esteve lá quando aqui esteve, tirei fotos e quando chegar vamos ter muito que falar.

Ontem ficámos a dormir em Gabu [antiga Nova Lamego, no nordeste], e fomos jantar a um restaurante onde cantámos, dançámos e as pessoas foram tão queridas que hoje famos lá tomar o pequeno almoço. Como é possível alguém dar tanto carinho a um grupo de jovens portugueses que nunca viu!... Sentimo-nos em casa. Quando saimos de lá, o Nuno canta uma canção à Dona do restaurante e ela até ficou com os olhos com água, são tão queridos. O tio tinha razão, este povo é muito acolhedor e aqui nada nos falta porque as pessoas fazem por isso, o carinho que nos dão faz esquecer muitas coisas.

Hoje passamos por Bafatá, Bambadinca e apesar de muitas casas estarem destruidas e de as coisas precisarem de uma mãozinha há sempre aquela beleza.

Vou contar um segredo: quando se levantou a ideia na direcção do GASPorto em eu vir para a Guiné, tive pena de não ir novamente para Macia - Moçambique, mas não estou nem um bocadinho arrependida, a nossa família deixou de ter dois apaixonados pela Guiné e passou a ter três apaixonados pela Guiné.

E quando chegar quero contar-lhe o nosso trabalho aqui e os nossos projectos de futuro, e no que estiver dependente de nós temos muitos projectos e ideias para o futuro e apostamos num projecto para continuar. Não sei se os meus pais já comentaram mas um dos nossos projectos são os pais adoptivos à distância e já levamos connosco algumas crianças que precisam de pais, elas são tão queridas e merecem ser felizes.

Tio, agora compreendo o seu brilho nos olhos quando fala da Guiné, deste povo, destas crianças. Vamos ter mesmo muito que falar.
Guiné-Bissau > Guidaje > Novembro de 2000 > O Hugo Costa, o repórter de serviço, filho do Albano, na hora da despedida... © Albano Costa (2005)

Estou a 5 semanas de trabalho, e já dói cá dentro pensar na despedida: com estes quase dois meses com este povo, a despedida custa muito.

Na última semana vou às ilhas e depois e depois relato como é a sua beleza.

Beijinhos para todos. Gosto muito de todos vocês. Obrigado por todo o apoio que me deram. Até breve

Sandra Neves
(a menina apaixonada pela Guiné).


Isto é mais um testemunho do que é a Guiné dos tempos modernos. Que pena eu tenho de os seus governantes não olharem um pouco mais para a parte turística, que ajudava a desenvolver mais a nossa Guiné-Bissau.

Albano Costa
(... com um brilhozinho nos olhos. LG)

Comentário de L.G.:

Albano: Bonito texto este!... Temos que convidar a Sandra, que é enfermeira (e que até gostaria de trabalhar, uns tempos, no Hospital Nacional Simão Mendes - atenção, Paulo Salgado, aí em Bissau!) para entrar para a nossa tertúlia... Uma moça de grande sensibilidade e generosidade. Parabéns, tio!