Polónia > Zgierz > s/d , c. > "Retrato de família. O meu bisavô Isuchaar [Schwarz ] está centrado ao centro, o Samuel [, pai de Clara e avô do Carlos] está na ponta esquerda e o meu avô Marek está de pé, à direita" (In: Mikael Levin - Cristina's History. Cherbourg-Octeville: Le Point du Jour; Lisboa: Museu: Colecção Berardo, 2009, p. 29) (Com a devida vénia). [Mikael Levine é primo do Carlos Schwarz, os seus avós eram irmãos. ]
Polónia > Zgierz > Manufacturas de lanifícios > Foto da histórica cidade industrial de Zgierz, no Séc. XIX. Colecção do Museu Histórico de Zgierz. A população de origem judia foi dizimada na sequência da ocupação nazi e da II Guerra Mundial (Fonte: Mikael Levin, 2009, op. cit, p. 39). (Com a devida vénia).
Lisboa > Chiado > c. 1940 > "Álbum de família. Foto de Artur e Clara" (Fonte: Mikael Levin, 2009, op,. cit., p. 65). Clara era filha do Engenheiro e empresário de minas, de origem judia e polaca, Samuel Schwarz, o filho mais velho de Isuchaar Szwarc, que de se dedicou também à redescoberta e dignificação da comunidade marrana em Portugal. Chegou a Portugal antes da I Guerra Mundial. Nasceu em 1880 e morreu em 1953.
Era um homem cultíssimo, que falava nove línguas, incluindo o hebreu. (Foi ele que decifrou várias lápides funerárias e outras inscrições judias, em Belmonte, Lisboa, Monchique, Porto, Tomar, etc. ). Foi um estudioso e um divulgador da comunidade cripto-judaica de Belmonte através da obra "Cristãos-Novos em Portugal no Século XX", publicada em 1925 (como separata da revista "Arqueologia e História", da Associação dos Arqueólogos Portugueses, de que era membro). Esta publicação ainda hoje é uma referência obrigatória para os investigadores da história dos cripto-judeus em Portugal. Foi também ele quem identificou, adquiriu a suas expensas e depois doou ao Estado Português o edifício da antiga sinagoga de Tomar, cuja origem remonta ao Séc. XV. (*)
Artur Augusto Silva, por sua vez, nasceu em Cabo Verde, em 1912, viveu os primeiros anos em Farim, na Guiné, e depois em Lisboa onde se licenciou em Direito e conheceu Clara (n. em Lisboa, em 1915). Teve uma vida intelectual intensa enquanto estudante, frequentando as tertúlias literárias da Baixa. Ainda conheceu Fernando Pessoa (que morreu em Novembro de 1935), e privou com intelectuais com o poeta António Botto, o romancista Ferreira de Castro, o músico Luís Freitas Branco, o pintor Eduardo Malta...
De 1938 a 1941 trabalhou em Angola como secretário do governador-geral. De regresso a Lisboa, dedicou-se à advocacia em Alcobaça e Porto de Mós (O pai da Clara tinha comprado a casa de praia, em São Martinho do Porto, onde ainda hoje a família passa férias de verão, em Agosto).
O casal partiu para a Guiné em 1949, um e outra, por certo, desgostosos com o clima intelectual e político,deprimente, então reinante em Lisboa. Clara e Artur estiveran entre os fundadores do Liceu de Bissau. Clara foi professora de muitos futuros dirigentes e militantes. Dedicou-se ao estudo etnojurídico de vários grupos sociais da Guiné, como os fulas (1958), os felupes (1960) e os mandingas (1969). Foi advogado de defesa de 61 presos políticos (só dois dos quais foram condenados em Tribunal Plenário). Foi impedido pela PIDE de regressar a Bissau, em 1966. Esteve preso em Caxias cinco meses, sem culpa formada. Foi libertado por acção de amigos influentes (entre eles, diz-se, Marcelo Caetano, seu antigo professor). Foi-lhe fixada residência no Continente. Só depois da independência, é que regressou à Guiné-Bissau, onde foi Juiz do Supremo Tribunal de Justiça e professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau. Morreu em Bissau em 1983. É um excelente contista e ensaísta.
Lisboa > São Sebastião da Pedreira (ou S. Martinho do Porto?) > Em primeiro plano, o Carlos, ainda bebé, mais os irmãos Henrique (Iko) e João. Foto: © António Lopes (2009). Direitos reservados.
Guiné-Bissau > Guerrilheiros do PAIGC em movimento em mata (Foto do PAIGC, s/d, reproduzido em Mikael Levin - Cristina's History. Cherbourg-Octeville: Le Point du Jour; Lisboa: Museu: Colecção Berardo, 2009, p. 91) (Com a devida vénia).
Guiné- Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > Antigo Centro Nacional para a Experimentação e Multiplicação de Arroz, uma iniciativa pioneira do jovem engenheiro agrónomo Carlos Schwarz da Silva logo em 1977, à revelia dos comissários e demais burocratas que tomaram conta do poder. (Fonte: Mikael Levin - Cristina's History. Cherbourg-Octeville: Le Point du Jour; Lisboa: Museu: Colecção Berardo, 2009, p. 99) (Com a devida vénia)
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Edifício do Museu "Memória de Guiledje", uma iniciativa da AD - Acção para o Desenvolvimento, a ser inaugurado no dia 20 de Janeiro de 2010, juntamente com a capelinha, reconstruída, do tempo da CART 1613 (1967/68).
Foto: © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2009). Direitos reservados
Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1 de Março de 2008 > Visita ao antigo aquartelamento e tabanca de Guileje, no âmbito do Seminário Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) > Pepito, um dos fundadores e actual director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. É membro do nosso blogue desde finais de 2005. É o único dos três irmãos que ficou a trabalhar em Bissau. Tem a nacionalidade guineense. Vem regularmente a Lisboa.
Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.
1. Mensagem de
António Lopes, amigo da família do nosso Pepito, com data de 6 do corrente:
Assunto - Pedido de contacto - Pepito ou Ica
Caro Senhor
Os meus cumprimentos
Não nos conhecemos, mas através do Blogue [...], consegui algumas notas sobre amigos que há muitos anos não tenho contacto.
Tive a felicidade de conhecer pessoalmente o Eng. Samuel Schwarz, [pai da Dra Clara Schwarz] , pessoa que recordo pela sua imagem e personalidade. Como criança que era, marcou-me profundamente, falava muito comigo e dava-me muitos conselhos.
Era muito amigo do Henrique (Ica), do João e do Carlos (Pepito), que ainda era muito pequeno. Vivemos muito perto durante vários anos, em S. Sebastião da Pedreira [no sítio que é hoje o Corte Inglês].
Tive também a felicidade de passar férias em S. Martinho do Porto no ano de, penso, 1950.
Tenho várias fotos - velhas recordações - , fotos que me foram oferecidas, já lá vão talvez 60 anos, e também fotos tiradas em S. Martinho do Porto, que também guardo com muito carinho.
Isto tudo para enquadrar o meu pedido. Como administrador do blogue e amigo da família talvez me possa dar algum contacto. Depois de tantos anos perdi-lhes o rasto, e nunca mais soube deles. Por isso peço desculpa pelo incómodo, algum endereço electrónico que seja acessível a algum deles.
Com os meus cumprimentos,
António José Almeida Lopes
P.S. Mando algumas fotos, velhas recordações.
2. Comentário de L.G.:
Meu querido amigo e irmão Pepito:
O abraço de parabéns já foi dado hoje de manhã, pelo telefone. Estavas a trabalhar, que em Bissau não é feriado... O meu abraço e o da Alice. A Joana está fora de Lisboa, em trabalho, mas manda-te também um chicoração apertado. O João está de banco, no Hospital Francisco Xavier. Mas sexta-feira próxima, ou já no sábado (em rigor), ele vai cantar-te, de viva voz, na tua casa do Bairro do Quelelé, em Bissau, os "parabéns a você", dele, nossos, e dos teus amigos do blogue (que já são muitos). Vou-lhe pedir mais este favor.
Já sei que uma semana das suas férias de quinze dias vai a ser a trabalhar, como médico, voluntário, no Quelelé, a ver o teu pessoal da AD, e depois no Cantanhez, em Iemberém, ao serviço da gentílíssima e adorável população local, de quem a Alice ficou apaixonada, nos dias que lá passámos, de 1 a 3 de Março de 2008. Vais naturalmente mostrar-lhe as obras, em fase de acabamento, do Museu "Memória de Guiledje" e da Capela. Já sei que lhe vais mostrar também Bambadinca, Bafatá e Contuboel, que tanto me dizem, lá passei quse dois anos da minha juventude... Não o estragues com mimos, e aproveita a presença do jovem médico, já que um médico, mesmo jovem, é sempre um luxo, na tua terra...
Espero sobretudo que reforces a ideia que ele tem de ti, que temos de ti, de um homem de grande coragem física e moral, de um cidadão de princípios e de valores, de um intelectual de fina inteligência e sensibilidade sócio-cultural, de um engenheiro agrónomo e gestor com uma espantosa capacidade de trabalho, organização, determinação e liderança, de um dirigente de arguta visão, de um abnegado patriota, de um bom pai e melhor avô, e sobretudo, de um bom gigante com um coração de ouro... Enfim, um homem que sabe que "desistir é perder, recomeçar é vencer"...A foto do António Lopes já não é surpresa para ti mas permite-me que a divulgue no nosso blogue... (Há outras duas, mas sem resolução). O menino Carlos hoje entra para o clube dos SEXAS (Suas Excelências...) e nada mais ternurento do que o retrato do artista quando "baby"...
Há dias o João esteve com a senhora tua mãe, Clara, que lhe ofereceu um exemplar, com dedicatória, do livro de poemas do teu pai Artur, um homem de letras e de causas, tão injustamente esquecido hoje em dia no mundo da cultura lusófona... Fiquei siderado com o seu conhecimento da cultura e da idiossincracia dos fulas, com quem terá convivido muito, para além dos felupes.
Deixa-me, com a autorização expressa da tua mãe, que reproduza aqui um dos mais belos e tocantes poemas do livro do teu pai. Em homenagem a ele, em homenagem a ti, que tanto o admiras, e que infelizmente a morte levou cedo de mais, aos 71 anos (ainda há dias o nosso comum amigo, Luís Lopes - actualmente dirigente da ACT - Autoridade para as Condições de Trabalho - me contou a tua aflição e da dele, quando o teu pai teve o AVC que o matou, em Bissau, sem recursos médico-hospitalares dignos de registo... E com a tua mãe em Lisboa... O poema intitula-se
Terra Negra, e deve ter sido escrito na primeira metade da década de 1960, já em plena guerra, antes da prisão e do exílio em Portugal, em 1966 (**).
TERRA NEGRAAo Fernando Pessoa,Poeta de PortugalTerra negra que tremes em convulsões de parto,
Terra negra que a guerra devasta,
Terra negra que os ódios revolvem,
Terra negra que o Luar acaricia.
Oh terra negra da minha infância,
onde uma negra ama me aleitou,
com cuidados maternais
e um amor que vinha do íntimo dos séculos.
Oh terra negra da minha infância,
onde brinquei com meus irmãos negros,
onde nadei no rio com meus irmãos negros,
onde cresci de mãos dadas com meus irmãos negros.
Oh terra negra dos mais saborosos frutos do mundo:
do ananás, do caju, da papaia, do mango;
Oh terra negra dos maravilhosos contos infantis
que a minha ama negra me contava para adormecer.
Ali, naquela enorme árvore, estava o irã,
terrível espírito da floresta que metia medo aos meninos
e nos fazia fugir para longe.
Mais para lá, era o poilão de Santa Luzia
que vomitava fogo quando a santa queria orações;
e o terreiro onde o cumpô dançava
e os meninos se extasiavam,
era cova do lagarto onde ninguém ia,
era a mata do fanado
com os seus mistérios terríveis.
Era a minha vida,
a vida dos homens simples
que amavam os seus semelhantes
e veneravam os velhos.
Agora, oh terra verde e vermelha da Guiné,
só te peço que todas as noites
deixes baixar sobre meu coração
o silêncio que cura os males da alma
e que quando os dias nascerem húmidos e tenros
como o barro das tuas bolanhas,
deixes o meu corpo
receber esse afago matinal
que foi o meu primeiro baptismo
e te peço seja a minha absolvição.
In: Artur Augusto da Silva -
E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu POEMAS.
Bissau: Instituto Camões, Centro Cultural Português de Bissau.
1997. pp. 23-25.
__________
Notas de L.G.:
(*) Tem 13 registos na nossa
Biblioteca Nacional:
1. Histórias da moderna Comunidade Israelita de Lisboa / Samuel Schwarz. Lisboa : [s.n.], 1959.
2. Os cristãos novos em Portugal no século XX= 20 / Samuel Schwarz ; com um pref. pró Israel do Dr. Ricardo Jorge. Lisboa : [s.n.], 1925.
3. Anti semitismo / Leon Litwinski, Samuel Schwarz. Lisboa : [Soc. Ind. de Tipografia], 1944.
4. Os cristãos novos em Portugal no século XX / Samuel Schwarz. Lisboa : Inst. de Sociologia e Etnologia das Religiões, 1993.
5. Cântico dos cânticos / Salomão ; pref. e versão do original por Samuel Schwarz ; des. e nota final de João Carlos. Lisboa : [s.n.], 1942.
6. Anti-semitismo : conferências(...) / Léon Litwinski, Samuel Schwarz. [S.l. : s.n.], 1944.
7. Os cristãos novos em Portugal no século XX / Samuel Schwarz. Lisboa : S. Schwarz, 1925.
8. Arqueologia mineira : extrato dum relatório acerca de pesquisas de ouro, apresentado em Março de 1933 pela Empresa Mineira-Metalúrgica, Limitada / Samuel Schwarz. [S.l. : s.n.], 1936.
9. A tomada de Lisboa : conforme documento coevo de um códice hebraico da Biblioteca Nacional / Samuel Schwarz. Lisboa : [s.n.], 1953.
10. Projecto de organização de um Museu Luso-Hebraico na antiga sinagoga de Tomar / Samuel Schwarz. Lisboa : [s.n.], 1939.
11. Cântico dos cânticos / Salomão ; versão portuguesa do original hebraico e introdução Samuel Schwarz. [S.l. : s.n.], 1946.
12. Os cristãos-novos em Portugal no século XX / Samuel Schwarz. Lisboa : Universidade Nova, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiöes, 1993.
13. Inscrições hebraícas em Portugal / Samuel Schwarz. Lisboa : Tip. do Comércio, 1923.
(**) Vd. postes de:
26 de Agosto de 2009 >
Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)
31 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)
Excertos de
A Sombra do Pau Torto, por Carlos Schwarz
[Texto de leitura integral, obriagtória...](...) Às 2 horas da tarde daquele dia 26 de Maio de 1975, aterrávamos em Bissau. A Isabel e eu, pais da nossa ainda única filha, Cristina, aproveitávamos a boleia do último avião militar português que se deslocava ao jovem país independente para transportar, de regresso à ex-metrópole colonial, o resto de quase 500 anos de presença portuguesa na costa da Guiné. (...)
(...) Como agrónomos entrámos no Ministério da Agricultura, na altura designado por Comissariado. Passámos os primeiros dias sentados num gabinete à espera que a direcção do Ministério decidisse onde iríamos ser “colocados” e o que iríamos fazer. Com o início da campanha agrícola, começou a distribuição de sementes de arroz e mancarra aos agricultores que tinham regressado ao país depois da guerra, vindos dos países vizinhos, e que precisavam delas para a produção alimentar.
Ofereci-me para essa missão e é assim que, após uma primeira paragem em Bafatá para distribuir sementes de arroz, carrego 20 toneladas de mancarra com destino a Catió, sul da Guiné-Bissau. Ao chegar a Bambadinca, o condutor do camião redobra de cuidados e atenções. É que, na mesma estrada que ligava a Xitole e depois a Saltinho, tinham “saltado” poucos dias antes, 2 camiões dos “Armazéns do Povo” que se desviaram ligeiramente das bermas da estrada e pisado uma mina. (...)
(...) É nessa altura que conheço Djibril Aw, agrónomo maliano e especialista de arroz na ADRAO, que marcou decisivamente a minha concepção e atitude profissional. Com um profundo conhecimento da orizicultura africana, uma argumentação técnica clara e convicta, um notável sentido organizativo e uma prática baseada na percepção que os agricultores tinham da sua actividade e das condições em que trabalhavam, não centrada nos “gabinetes de trabalho” [onde], afirmava, se devia passar apenas o mínimo tempo necessário.
Foi ele que me conduziu à paixão pela orizicultura e seus sistemas de cultura, pela história do arroz africano, pela pesquisa e experimentação varietal, pelo estudo e compreensão do conhecimento ancestral dos povos guineenses que o praticam. Ensinou-me a exigência de nós, técnicos, sermos pragmáticos e concretos nas propostas que fazemos aos agricultores. (...)
(...) O que aprendi com Djibril Aw foi determinante para a criação do primeiro departamento técnico do então Comissariado, o DEPA.
Percebendo que se ficasse à espera de directivas dos dirigentes, nunca sairia do ciclo de actividades avulsas e ocasionais prevalecentes, decidi iniciar em Dezembro de 1975, um programa de ensaios de arroz, a partir de 15 variedades fornecidas pela ADRAO. Negociei com a Central Eléctrica de Bissau, a título de empréstimo, um pequeno terreno e água desperdiçada. Era a primeira vez na minha vida que semeava qualquer coisa. Como técnico recém-formado estava em pânico, oscilando entre a falta de confiança no resultado e a expectativa de vir a ser um sucesso.
Já com a totalidade das variedades em plena floração, convido o Sub-Comissário para visitar o campo de ensaios. À entrada do campo uma tabuleta dizia DEPA. Ele não olhou para o ensaio, fixou-se na tabuleta.
- O que é isto? - perguntou.
- É o Departamento de Experimentação e Produção de Arroz que criámos - respondi eu.
- E quem é que deu autorização para este nome?
- Escolha então você um outro - concluí eu.
Foi a partir daí que me comecei a aperceber do crime que havia sido cometido com a formação de quadros nos países do bloco soviético. Não do ponto de vista técnico, mas da cultura de passividade que “inculcava” ou “impunha” aos seus formandos. Saía-se de lá com o espírito de obediência passiva aos chefes, esperando sempre “directivas” vindas do alto sem nunca se estimular a capacidade criadora e inventiva dos técnicos, sob pena da mesma poder ser considerada um atentado à autoridade dos chefes e no interesse em substituí-los.
Os primeiros anos foram vividos neste clima, tendo mesmo um grupo destes técnicos, acabado por escrever um opúsculo intitulado “Os bem e os mal servidos do Ministério da Agricultura”. Aqui os técnicos eram divididos entre “socialistas”, os que estudaram nos países de Leste, e “capitalistas”, os que vinham de Lisboa.
Sucede que logo a seguir ao DEPA outros departamentos foram sendo criados, todos eles por técnicos que estudaram em Portugal e que traziam consigo a prática do “desenrascanso”, isto é, de não ficarem à espera que lhes dessem condições, mas serem eles próprios a criá-las. (...)
(...) É assim que, sem consultar nenhum dirigente superior do Ministério, não por querer pôr em causa a sua autoridade, mas apenas para evitar os bloqueios burocráticos que certamente seriam colocados, o DEPA cria em Janeiro de 1977 o Centro Nacional de Experimentação e Multiplicação de Arroz de Contuboel, junto ao rio Geba no Leste do País, e a Estação Orizícola de Caboxanque, em Maio de 1977, no Sul.
Era a primeira vez na história da Guiné-Bissau que se criavam dois centros de pesquisa vocacionados, numa primeira fase para a cultura de arroz e numa segunda para as outras espécies alimentares (feijão, mandioca, milho, sorgo, milheto, etc.). (...).
(...) Quando chego a Bissau em 1975, trazia comigo uma carta de apresentação de militante do PAIGC da célula de Lisboa, assinada pelo seu responsável, o caboverdiano Santana. Guardei-a sempre comigo. Apenas via nela um certificado da minha militância e não um atestado para ascender às instâncias superiores do Partido. Perdi-a em 1998 no conflito político-militar. (...)
(... ) A minha maior desilusão partidária acontece com o Golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. Aos 30 anos de idade, da ideia que fazia do PAIGC, não cabia a resolução interna de problemas políticos de forma violenta. O debate devia sempre prevalecer. Neste caso, era o Primeiro Ministro [, João Bernardo 'Nino' Vieira, ] que dava um golpe ao Presidente [ Luís Cabral,] que o havia escolhido, sem nunca o contestar abertamente ou nas instâncias do Partido. (...)
(...) Com o Golpe de 14 de Novembro de 1980 reintroduziu-se na história da Guiné a divisão étnica: no início a divisão era entre caboverdianos, apelidados de cavaleiros, e guineenses, chamados de cavalos. Esquecendo-se os seus promotores que uma vez estabelecida a primeira divisão étnica, outras se lhe seguiriam, surge a estigmatização dos balantas, tanto mística com o fenómeno iang-iang, como política com o caso Paulo Correia, prosseguindo com a divisão entre muçulmanos e animistas, e mais recentemente entre os naturais da cidade e os da tabanca. Tudo isto em função da conveniência e interesse da estratégia do líder político da ocasião.
Kumba Ialá, que viria a ser mais tarde Presidente, revelou-se neste domínio o maior, indo buscar algumas das carecterísticas menos ricas da idiossincrasia balanta, unificou-os à volta de conceitos demagógicos e populistas (....).
(...) A partir dos anos 2000 assistiu-se à mais louca gestão de um Estado, de que há memória. No fundo até durou pouco tempo… porque, entretanto, o Estado desapareceu!
Foi nesse período em que tudo valia, que um dia, deixaram “cair” perto do meu local de trabalho um bilhete anónimo que dizia: ”neste fim de semana vais sofrer um atentado para te matarem”. Entendi isso apenas como uma tentativa de intimidação. Todavia, às 3 horas da madrugada desse dia, três ninjas (polícia especial armada), acorrentavam o velho guarda da casa e iniciam a tentativa de demolição das janelas. Só a intervenção determinante do nosso vizinho, Nelson Dias, nos salvou, a mim e à Isabel, perante o completo desinteresse da polícia que se escusara a prestar socorro. Os assaltantes, esses, nunca foram punidos, embora saiba que a polícia os identificou. (...)
(...) Em 1991, incluído num grupo de guineenses do qual faziam parte José Filipe Fonseca, Nelson Dias, Isabel Miranda, Roberto Quessangue e Rui Miranda, entre outros, criámos uma organização não-governamental, a Acção para o Desenvolvimento (AD), que pretendia promover uma ética de desenvolvimento local centrada no homem e não no crescimento económico. A AD surgia assim para dar continuidade e potenciar de forma mais aberta as actividades de vulgarização do DEPA.
Num país de cerca de um milhão e meio de almas, onde coabitam 32 etnias, cada uma delas com as suas próprias culturas, organização social e sistemas de produção específicos, é entusiasmante ir descobrindo as suas diferentes lógicas de desenvolvimento e ao mesmo tempo participar com elas na procura de novos caminhos para o seu progresso. (...)
(...) Alguns diletantes das questões do desenvolvimento partem do pressuposto que os agricultores tudo sabem e que as tabancas são um mar calmo sem conflitos e contradições internas, que os técnicos vêm subverter e perturbar com modernices. Em 1963, meu pai, Artur Augusto da Silva, no seu texto Pequena viagem através de África, já se referia a este tipo de pessoas que, com uma visão falsa e deformada, mal aportam à Guiné-Bissau ou a África em geral, começam logo a perorar e a fazer afirmações definitivas de quem já tudo aprendeu e tudo sabe.
Contava ele que “… ainda há poucos anos corriam na África Ocidental Francesa, umas notas de mil francos onde se via, em atitude de herói cinematográfico, um europeu, de largo chapeleirão colonial, camisa folgada, calções curtos e umas imponentes botas altas, empunhando uma arma e, arrogantemente, pisando um leão morto. Podemos dizer: a verdade da imagem correspondia ao exíguo valor da nota”. (...)
(...) O desenvolvimento implica ousar trilhar caminhos novos porque, no dizer do poeta, ao andar-se por caminhos já abertos e conhecidos não se perde nenhuma guerra, mas também não se ganha nada. É gratificante ter-se sido contemporâneo de um grupo de excelentes quadros que contribuíram para o surgimento e sucesso das primeiras vinte e cinco rádios e três televisões comunitárias da Guiné-Bissau que representam hoje a vanguarda neste domínio nos países africanos de expressão portuguesa; para a criação de escolas de tipo novo, designadas de verificação ambiental (EVA) em que é introduzido o princípio da prestação de serviços da escola à comunidade, a capacitação dos professores em ecopedagogia e a sua apropriação pelas populações rurais; o surgimento das primeiras associação de moradores dos bairros populares de Bissau. (...)
Em 1948, um ano antes de eu nascer o meu pai regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e, onde tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.
Com a minha mãe Clara e meus irmãos Henrique e João volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.
Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.
No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.
Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha e logo a seguir com o Ivan nascido em 1975 e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.
Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer. (...)Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5342: Parabéns a você (45): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil da CART 2412 (Editores)