quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5387: Parabéns a você (47): Herlânder Simões, ex-Fur Mil At (Nova Sintra, Nhacra e Guileje, 1972/74) (Editores)

»»»»»»» F E L I Z ****A N I V E R S Á R I O «««««««


1. Completa hoje mais um aniversário, o nosso Camarada Herlander Simões, ex-Fur Mil (MAI72 a JAN74), foi destinado à CCAÇ 16 sem chegar a ser colocado, seguindo para a CART 2771 os "Duros" de Nova Sintra e, posteriormente, para os "Gringos" de Guileje (CCAÇ 3477 - 1971/73), que inicialmente se encontrava sedeada em Nhacra.




2. O Herlander foi apresentado à nossa Tabanca Grande, em 10 de Maio de 2007, no poste P1747, assim:


Caro camarada Luís Graça:


Tomei conhecimento do teu Blogue, durante uma das minhas buscas na Net, procurando notícias dos meus antigos camaradas de armas.

Sou o ex-Furriel Miliciano Herlander Simões e estive na Guiné entre Maio de 72 e Janeiro de 74.

Fui com destino à CCAÇ 16 onde nunca cheguei a ser colocado. Fui primeiro para os Duros de Nova Sintra e depois para os Gringos de Guileje [CCAÇ 3477], entretanto já sediados em Nhacra.

Espero, através deste nosso sítio, conseguir algumas notícias dos meus antigos camaradas, colocando-me desde já totalmente disponível para dar o meu modesto contributo a esta nobre causa.

Vou tentar enviar algumas fotos tiradas com os Gringos nas proximidades de Nhacra. Um abraço! Herlander Simões

Guiné > Região de Bissau > Nhacra > CCAÇ 3477 (1971/73)
O Fur Mil Herlander Simões
Em patrulha nas imediações de Nhacra.


3. Independentemente dos comentários que os nossos Camaradas colocarão no local reservado aos mesmos, quero em nome do Luís Graça, Carlos Vinhal, Virgínio Briote, Magalhães Ribeiro e demais Camaradas da Grande Tabanca, desejar-te o seguinte:



Os nossos maiores desejos neste teu aniversário, é que junto da tua querida família sejas muito feliz e que esta data se repita por muitos, bons e férteis anos, plenos de saúde, felicidade e alegria.

Que por muitos mais e boas décadas, este "aquartelamento" de Camaradas & Amigos te possa enviar mensagens idênticas, às que hoje lerás no cantinho reservado aos comentários.

Estes são os nossos sinceros e melhores desejos destes teus Amigos e Camaradas.

Com um grande abraço fraterno,

__________
Nota de M.R.:



Vd. primeiro poste sobre o aniversariante de hoje em:

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5386: Parabéns a você (46): Carlos Schwarz Silva, simplesmente Pepito, para os felupes, os nalus, os fulas, os companheiros da AD e os tugas... do nosso blogue (Luís Graça)



Polónia > Zgierz > s/d , c. > "Retrato de família. O meu bisavô Isuchaar [Schwarz ] está centrado ao centro, o Samuel [, pai de Clara e avô do Carlos] está na ponta esquerda e o meu avô Marek está de pé, à direita" (In: Mikael Levin - Cristina's History. Cherbourg-Octeville: Le Point du Jour; Lisboa: Museu: Colecção Berardo, 2009, p. 29) (Com a devida vénia). [Mikael Levine é primo do Carlos Schwarz, os seus avós eram irmãos. ]


Polónia > Zgierz > Manufacturas de lanifícios > Foto da histórica cidade industrial de Zgierz, no Séc. XIX. Colecção do Museu Histórico de Zgierz. A população de origem judia foi dizimada na sequência da ocupação nazi e da II Guerra Mundial (Fonte: Mikael Levin, 2009, op. cit, p. 39). (Com a devida vénia).


Lisboa > Chiado > c. 1940 > "Álbum de família. Foto de Artur e Clara" (Fonte: Mikael Levin, 2009, op,. cit., p. 65). Clara era filha do Engenheiro e empresário de minas, de origem judia e polaca, Samuel Schwarz, o filho mais velho de Isuchaar Szwarc, que de se dedicou também à redescoberta e dignificação da comunidade marrana em Portugal. Chegou a Portugal antes da I Guerra Mundial. Nasceu em 1880 e morreu em 1953.

Era um homem cultíssimo, que falava nove línguas, incluindo o hebreu. (Foi ele que decifrou várias lápides funerárias e outras inscrições judias, em Belmonte, Lisboa, Monchique, Porto, Tomar, etc. ). Foi um estudioso e um divulgador da comunidade cripto-judaica de Belmonte através da obra "Cristãos-Novos em Portugal no Século XX", publicada em 1925 (como separata da revista "Arqueologia e História", da Associação dos Arqueólogos Portugueses, de que era membro). Esta publicação ainda hoje é uma referência obrigatória para os investigadores da história dos cripto-judeus em Portugal. Foi também ele quem identificou, adquiriu a suas expensas e depois doou ao Estado Português o edifício da antiga sinagoga de Tomar, cuja origem remonta ao Séc. XV. (*)

Artur Augusto Silva, por sua vez, nasceu em Cabo Verde, em 1912, viveu os primeiros anos em Farim, na Guiné, e depois em Lisboa onde se licenciou em Direito e conheceu Clara (n. em Lisboa, em 1915). Teve uma vida intelectual intensa enquanto estudante, frequentando as tertúlias literárias da Baixa. Ainda conheceu Fernando Pessoa (que morreu em Novembro de 1935), e privou com intelectuais com o poeta António Botto, o romancista Ferreira de Castro, o músico Luís Freitas Branco, o pintor Eduardo Malta...

De 1938 a 1941 trabalhou em Angola como secretário do governador-geral. De regresso a Lisboa, dedicou-se à advocacia em Alcobaça e Porto de Mós (O pai da Clara tinha comprado a casa de praia, em São Martinho do Porto, onde ainda hoje a família passa férias de verão, em Agosto).

O casal partiu para a Guiné em 1949, um e outra, por certo, desgostosos com o clima intelectual e político,deprimente, então reinante em Lisboa. Clara e Artur estiveran entre os fundadores do Liceu de Bissau. Clara foi professora de muitos futuros dirigentes e militantes. Dedicou-se ao estudo etnojurídico de vários grupos sociais da Guiné, como os fulas (1958), os felupes (1960) e os mandingas (1969). Foi advogado de defesa de 61 presos políticos (só dois dos quais foram condenados em Tribunal Plenário). Foi impedido pela PIDE de regressar a Bissau, em 1966. Esteve preso em Caxias cinco meses, sem culpa formada. Foi libertado por acção de amigos influentes (entre eles, diz-se, Marcelo Caetano, seu antigo professor). Foi-lhe fixada residência no Continente. Só depois da independência, é que regressou à Guiné-Bissau, onde foi Juiz do Supremo Tribunal de Justiça e professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau. Morreu em Bissau em 1983. É um excelente contista e ensaísta.



Lisboa > São Sebastião da Pedreira (ou S. Martinho do Porto?) > Em primeiro plano, o Carlos, ainda bebé, mais os irmãos Henrique (Iko) e João. Foto: © António Lopes (2009). Direitos reservados.


Guiné-Bissau > Guerrilheiros do PAIGC em movimento em mata (Foto do PAIGC, s/d, reproduzido em Mikael Levin - Cristina's History. Cherbourg-Octeville: Le Point du Jour; Lisboa: Museu: Colecção Berardo, 2009, p. 91) (Com a devida vénia).


Guiné- Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > Antigo Centro Nacional para a Experimentação e Multiplicação de Arroz, uma iniciativa pioneira do jovem engenheiro agrónomo Carlos Schwarz da Silva logo em 1977, à revelia dos comissários e demais burocratas que tomaram conta do poder. (Fonte: Mikael Levin - Cristina's History. Cherbourg-Octeville: Le Point du Jour; Lisboa: Museu: Colecção Berardo, 2009, p. 99) (Com a devida vénia)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Edifício do Museu "Memória de Guiledje", uma iniciativa da AD - Acção para o Desenvolvimento, a ser inaugurado no dia 20 de Janeiro de 2010, juntamente com a capelinha, reconstruída, do tempo da CART 1613 (1967/68).

Foto: © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2009). Direitos reservados




Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1 de Março de 2008 > Visita ao antigo aquartelamento e tabanca de Guileje, no âmbito do Seminário Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) > Pepito, um dos fundadores e actual director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. É membro do nosso blogue desde finais de 2005. É o único dos três irmãos que ficou a trabalhar em Bissau. Tem a nacionalidade guineense. Vem regularmente a Lisboa.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem de António Lopes, amigo da família do nosso Pepito, com data de 6 do corrente:

Assunto - Pedido de contacto - Pepito ou Ica

Caro Senhor

Os meus cumprimentos

Não nos conhecemos, mas através do Blogue [...], consegui algumas notas sobre amigos que há muitos anos não tenho contacto.

Tive a felicidade de conhecer pessoalmente o Eng. Samuel Schwarz, [pai da Dra Clara Schwarz] , pessoa que recordo pela sua imagem e personalidade. Como criança que era, marcou-me profundamente, falava muito comigo e dava-me muitos conselhos.

Era muito amigo do Henrique (Ica), do João e do Carlos (Pepito), que ainda era muito pequeno. Vivemos muito perto durante vários anos, em S. Sebastião da Pedreira [no sítio que é hoje o Corte Inglês].

Tive também a felicidade de passar férias em S. Martinho do Porto no ano de, penso, 1950.

Tenho várias fotos - velhas recordações - , fotos que me foram oferecidas, já lá vão talvez 60 anos, e também fotos tiradas em S. Martinho do Porto, que também guardo com muito carinho.

Isto tudo para enquadrar o meu pedido. Como administrador do blogue e amigo da família talvez me possa dar algum contacto. Depois de tantos anos perdi-lhes o rasto, e nunca mais soube deles. Por isso peço desculpa pelo incómodo, algum endereço electrónico que seja acessível a algum deles.

Com os meus cumprimentos,
António José Almeida Lopes

P.S. Mando algumas fotos, velhas recordações.

2. Comentário de L.G.:

Meu querido amigo e irmão Pepito:

O abraço de parabéns já foi dado hoje de manhã, pelo telefone. Estavas a trabalhar, que em Bissau não é feriado... O meu abraço e o da Alice. A Joana está fora de Lisboa, em trabalho, mas manda-te também um chicoração apertado. O João está de banco, no Hospital Francisco Xavier. Mas sexta-feira próxima, ou já no sábado (em rigor), ele vai cantar-te, de viva voz, na tua casa do Bairro do Quelelé, em Bissau, os "parabéns a você", dele, nossos, e dos teus amigos do blogue (que já são muitos). Vou-lhe pedir mais este favor.

Já sei que uma semana das suas férias de quinze dias vai a ser a trabalhar, como médico, voluntário, no Quelelé, a ver o teu pessoal da AD, e depois no Cantanhez, em Iemberém, ao serviço da gentílíssima e adorável população local, de quem a Alice ficou apaixonada, nos dias que lá passámos, de 1 a 3 de Março de 2008. Vais naturalmente mostrar-lhe as obras, em fase de acabamento, do Museu "Memória de Guiledje" e da Capela. Já sei que lhe vais mostrar também Bambadinca, Bafatá e Contuboel, que tanto me dizem, lá passei quse dois anos da minha juventude... Não o estragues com mimos, e aproveita a presença do jovem médico, já que um médico, mesmo jovem, é sempre um luxo, na tua terra...

Espero sobretudo que reforces a ideia que ele tem de ti, que temos de ti, de um homem de grande coragem física e moral, de um cidadão de princípios e de valores, de um intelectual de fina inteligência e sensibilidade sócio-cultural, de um engenheiro agrónomo e gestor com uma espantosa capacidade de trabalho, organização, determinação e liderança, de um dirigente de arguta visão, de um abnegado patriota, de um bom pai e melhor avô, e sobretudo, de um bom gigante com um coração de ouro... Enfim, um homem que sabe que "desistir é perder, recomeçar é vencer"...

A foto do António Lopes já não é surpresa para ti mas permite-me que a divulgue no nosso blogue... (Há outras duas, mas sem resolução). O menino Carlos hoje entra para o clube dos SEXAS (Suas Excelências...) e nada mais ternurento do que o retrato do artista quando "baby"...

Há dias o João esteve com a senhora tua mãe, Clara, que lhe ofereceu um exemplar, com dedicatória, do livro de poemas do teu pai Artur, um homem de letras e de causas, tão injustamente esquecido hoje em dia no mundo da cultura lusófona... Fiquei siderado com o seu conhecimento da cultura e da idiossincracia dos fulas, com quem terá convivido muito, para além dos felupes.

Deixa-me, com a autorização expressa da tua mãe, que reproduza aqui um dos mais belos e tocantes poemas do livro do teu pai. Em homenagem a ele, em homenagem a ti, que tanto o admiras, e que infelizmente a morte levou cedo de mais, aos 71 anos (ainda há dias o nosso comum amigo, Luís Lopes - actualmente dirigente da ACT - Autoridade para as Condições de Trabalho - me contou a tua aflição e da dele, quando o teu pai teve o AVC que o matou, em Bissau, sem recursos médico-hospitalares dignos de registo... E com a tua mãe em Lisboa... O poema intitula-se Terra Negra, e deve ter sido escrito na primeira metade da década de 1960, já em plena guerra, antes da prisão e do exílio em Portugal, em 1966 (**).

TERRA NEGRA

Ao Fernando Pessoa,
Poeta de Portugal

Terra negra que tremes em convulsões de parto,
Terra negra que a guerra devasta,
Terra negra que os ódios revolvem,
Terra negra que o Luar acaricia.

Oh terra negra da minha infância,
onde uma negra ama me aleitou,
com cuidados maternais
e um amor que vinha do íntimo dos séculos.

Oh terra negra da minha infância,
onde brinquei com meus irmãos negros,
onde nadei no rio com meus irmãos negros,
onde cresci de mãos dadas com meus irmãos negros.

Oh terra negra dos mais saborosos frutos do mundo:
do ananás, do caju, da papaia, do mango;
Oh terra negra dos maravilhosos contos infantis
que a minha ama negra me contava para adormecer.

Ali, naquela enorme árvore, estava o irã,
terrível espírito da floresta que metia medo aos meninos
e nos fazia fugir para longe.
Mais para lá, era o poilão de Santa Luzia
que vomitava fogo quando a santa queria orações;
e o terreiro onde o cumpô dançava
e os meninos se extasiavam,
era cova do lagarto onde ninguém ia,
era a mata do fanado
com os seus mistérios terríveis.

Era a minha vida,
a vida dos homens simples
que amavam os seus semelhantes
e veneravam os velhos.
Agora, oh terra verde e vermelha da Guiné,
só te peço que todas as noites
deixes baixar sobre meu coração
o silêncio que cura os males da alma
e que quando os dias nascerem húmidos e tenros
como o barro das tuas bolanhas,
deixes o meu corpo
receber esse afago matinal
que foi o meu primeiro baptismo
e te peço seja a minha absolvição.

In: Artur Augusto da Silva - E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu POEMAS.
Bissau: Instituto Camões, Centro Cultural Português de Bissau.
1997. pp. 23-25.
__________

Notas de L.G.:

(*) Tem 13 registos na nossa Biblioteca Nacional:

1. Histórias da moderna Comunidade Israelita de Lisboa / Samuel Schwarz. Lisboa : [s.n.], 1959.
2. Os cristãos novos em Portugal no século XX= 20 / Samuel Schwarz ; com um pref. pró Israel do Dr. Ricardo Jorge. Lisboa : [s.n.], 1925.
3. Anti semitismo / Leon Litwinski, Samuel Schwarz. Lisboa : [Soc. Ind. de Tipografia], 1944.
4. Os cristãos novos em Portugal no século XX / Samuel Schwarz. Lisboa : Inst. de Sociologia e Etnologia das Religiões, 1993.
5. Cântico dos cânticos / Salomão ; pref. e versão do original por Samuel Schwarz ; des. e nota final de João Carlos. Lisboa : [s.n.], 1942.
6. Anti-semitismo : conferências(...) / Léon Litwinski, Samuel Schwarz. [S.l. : s.n.], 1944.
7. Os cristãos novos em Portugal no século XX / Samuel Schwarz. Lisboa : S. Schwarz, 1925.
8. Arqueologia mineira : extrato dum relatório acerca de pesquisas de ouro, apresentado em Março de 1933 pela Empresa Mineira-Metalúrgica, Limitada / Samuel Schwarz. [S.l. : s.n.], 1936.
9. A tomada de Lisboa : conforme documento coevo de um códice hebraico da Biblioteca Nacional / Samuel Schwarz. Lisboa : [s.n.], 1953.
10. Projecto de organização de um Museu Luso-Hebraico na antiga sinagoga de Tomar / Samuel Schwarz. Lisboa : [s.n.], 1939.
11. Cântico dos cânticos / Salomão ; versão portuguesa do original hebraico e introdução Samuel Schwarz. [S.l. : s.n.], 1946.
12. Os cristãos-novos em Portugal no século XX / Samuel Schwarz. Lisboa : Universidade Nova, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiöes, 1993.

13. Inscrições hebraícas em Portugal / Samuel Schwarz. Lisboa : Tip. do Comércio, 1923.

(**) Vd. postes de:

26 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

Excertos de A Sombra do Pau Torto, por Carlos Schwarz [Texto de leitura integral, obriagtória...]

(...) Às 2 horas da tarde daquele dia 26 de Maio de 1975, aterrávamos em Bissau. A Isabel e eu, pais da nossa ainda única filha, Cristina, aproveitávamos a boleia do último avião militar português que se deslocava ao jovem país independente para transportar, de regresso à ex-metrópole colonial, o resto de quase 500 anos de presença portuguesa na costa da Guiné. (...)

(...) Como agrónomos entrámos no Ministério da Agricultura, na altura designado por Comissariado. Passámos os primeiros dias sentados num gabinete à espera que a direcção do Ministério decidisse onde iríamos ser “colocados” e o que iríamos fazer. Com o início da campanha agrícola, começou a distribuição de sementes de arroz e mancarra aos agricultores que tinham regressado ao país depois da guerra, vindos dos países vizinhos, e que precisavam delas para a produção alimentar.

Ofereci-me para essa missão e é assim que, após uma primeira paragem em Bafatá para distribuir sementes de arroz, carrego 20 toneladas de mancarra com destino a Catió, sul da Guiné-Bissau. Ao chegar a Bambadinca, o condutor do camião redobra de cuidados e atenções. É que, na mesma estrada que ligava a Xitole e depois a Saltinho, tinham “saltado” poucos dias antes, 2 camiões dos “Armazéns do Povo” que se desviaram ligeiramente das bermas da estrada e pisado uma mina. (...)

(...) É nessa altura que conheço Djibril Aw, agrónomo maliano e especialista de arroz na ADRAO, que marcou decisivamente a minha concepção e atitude profissional. Com um profundo conhecimento da orizicultura africana, uma argumentação técnica clara e convicta, um notável sentido organizativo e uma prática baseada na percepção que os agricultores tinham da sua actividade e das condições em que trabalhavam, não centrada nos “gabinetes de trabalho” [onde], afirmava, se devia passar apenas o mínimo tempo necessário.

Foi ele que me conduziu à paixão pela orizicultura e seus sistemas de cultura, pela história do arroz africano, pela pesquisa e experimentação varietal, pelo estudo e compreensão do conhecimento ancestral dos povos guineenses que o praticam. Ensinou-me a exigência de nós, técnicos, sermos pragmáticos e concretos nas propostas que fazemos aos agricultores. (...)

(...) O que aprendi com Djibril Aw foi determinante para a criação do primeiro departamento técnico do então Comissariado, o DEPA.

Percebendo que se ficasse à espera de directivas dos dirigentes, nunca sairia do ciclo de actividades avulsas e ocasionais prevalecentes, decidi iniciar em Dezembro de 1975, um programa de ensaios de arroz, a partir de 15 variedades fornecidas pela ADRAO. Negociei com a Central Eléctrica de Bissau, a título de empréstimo, um pequeno terreno e água desperdiçada. Era a primeira vez na minha vida que semeava qualquer coisa. Como técnico recém-formado estava em pânico, oscilando entre a falta de confiança no resultado e a expectativa de vir a ser um sucesso.

Já com a totalidade das variedades em plena floração, convido o Sub-Comissário para visitar o campo de ensaios. À entrada do campo uma tabuleta dizia DEPA. Ele não olhou para o ensaio, fixou-se na tabuleta.
- O que é isto? - perguntou.
- É o Departamento de Experimentação e Produção de Arroz que criámos - respondi eu.
- E quem é que deu autorização para este nome?
- Escolha então você um outro - concluí eu.

Foi a partir daí que me comecei a aperceber do crime que havia sido cometido com a formação de quadros nos países do bloco soviético. Não do ponto de vista técnico, mas da cultura de passividade que “inculcava” ou “impunha” aos seus formandos. Saía-se de lá com o espírito de obediência passiva aos chefes, esperando sempre “directivas” vindas do alto sem nunca se estimular a capacidade criadora e inventiva dos técnicos, sob pena da mesma poder ser considerada um atentado à autoridade dos chefes e no interesse em substituí-los.

Os primeiros anos foram vividos neste clima, tendo mesmo um grupo destes técnicos, acabado por escrever um opúsculo intitulado “Os bem e os mal servidos do Ministério da Agricultura”. Aqui os técnicos eram divididos entre “socialistas”, os que estudaram nos países de Leste, e “capitalistas”, os que vinham de Lisboa.

Sucede que logo a seguir ao DEPA outros departamentos foram sendo criados, todos eles por técnicos que estudaram em Portugal e que traziam consigo a prática do “desenrascanso”, isto é, de não ficarem à espera que lhes dessem condições, mas serem eles próprios a criá-las. (...)

(...) É assim que, sem consultar nenhum dirigente superior do Ministério, não por querer pôr em causa a sua autoridade, mas apenas para evitar os bloqueios burocráticos que certamente seriam colocados, o DEPA cria em Janeiro de 1977 o Centro Nacional de Experimentação e Multiplicação de Arroz de Contuboel, junto ao rio Geba no Leste do País, e a Estação Orizícola de Caboxanque, em Maio de 1977, no Sul.

Era a primeira vez na história da Guiné-Bissau que se criavam dois centros de pesquisa vocacionados, numa primeira fase para a cultura de arroz e numa segunda para as outras espécies alimentares (feijão, mandioca, milho, sorgo, milheto, etc.). (...).

(...) Quando chego a Bissau em 1975, trazia comigo uma carta de apresentação de militante do PAIGC da célula de Lisboa, assinada pelo seu responsável, o caboverdiano Santana. Guardei-a sempre comigo. Apenas via nela um certificado da minha militância e não um atestado para ascender às instâncias superiores do Partido. Perdi-a em 1998 no conflito político-militar. (...)

(... ) A minha maior desilusão partidária acontece com o Golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. Aos 30 anos de idade, da ideia que fazia do PAIGC, não cabia a resolução interna de problemas políticos de forma violenta. O debate devia sempre prevalecer. Neste caso, era o Primeiro Ministro [, João Bernardo 'Nino' Vieira, ] que dava um golpe ao Presidente [ Luís Cabral,] que o havia escolhido, sem nunca o contestar abertamente ou nas instâncias do Partido. (...)

(...) Com o Golpe de 14 de Novembro de 1980 reintroduziu-se na história da Guiné a divisão étnica: no início a divisão era entre caboverdianos, apelidados de cavaleiros, e guineenses, chamados de cavalos. Esquecendo-se os seus promotores que uma vez estabelecida a primeira divisão étnica, outras se lhe seguiriam, surge a estigmatização dos balantas, tanto mística com o fenómeno iang-iang, como política com o caso Paulo Correia, prosseguindo com a divisão entre muçulmanos e animistas, e mais recentemente entre os naturais da cidade e os da tabanca. Tudo isto em função da conveniência e interesse da estratégia do líder político da ocasião.

Kumba Ialá, que viria a ser mais tarde Presidente, revelou-se neste domínio o maior, indo buscar algumas das carecterísticas menos ricas da idiossincrasia balanta, unificou-os à volta de conceitos demagógicos e populistas (....).

(...) A partir dos anos 2000 assistiu-se à mais louca gestão de um Estado, de que há memória. No fundo até durou pouco tempo… porque, entretanto, o Estado desapareceu!

Foi nesse período em que tudo valia, que um dia, deixaram “cair” perto do meu local de trabalho um bilhete anónimo que dizia: ”neste fim de semana vais sofrer um atentado para te matarem”. Entendi isso apenas como uma tentativa de intimidação. Todavia, às 3 horas da madrugada desse dia, três ninjas (polícia especial armada), acorrentavam o velho guarda da casa e iniciam a tentativa de demolição das janelas. Só a intervenção determinante do nosso vizinho, Nelson Dias, nos salvou, a mim e à Isabel, perante o completo desinteresse da polícia que se escusara a prestar socorro. Os assaltantes, esses, nunca foram punidos, embora saiba que a polícia os identificou. (...)

(...) Em 1991, incluído num grupo de guineenses do qual faziam parte José Filipe Fonseca, Nelson Dias, Isabel Miranda, Roberto Quessangue e Rui Miranda, entre outros, criámos uma organização não-governamental, a Acção para o Desenvolvimento (AD), que pretendia promover uma ética de desenvolvimento local centrada no homem e não no crescimento económico. A AD surgia assim para dar continuidade e potenciar de forma mais aberta as actividades de vulgarização do DEPA.

Num país de cerca de um milhão e meio de almas, onde coabitam 32 etnias, cada uma delas com as suas próprias culturas, organização social e sistemas de produção específicos, é entusiasmante ir descobrindo as suas diferentes lógicas de desenvolvimento e ao mesmo tempo participar com elas na procura de novos caminhos para o seu progresso. (...)

(...) Alguns diletantes das questões do desenvolvimento partem do pressuposto que os agricultores tudo sabem e que as tabancas são um mar calmo sem conflitos e contradições internas, que os técnicos vêm subverter e perturbar com modernices. Em 1963, meu pai, Artur Augusto da Silva, no seu texto Pequena viagem através de África, já se referia a este tipo de pessoas que, com uma visão falsa e deformada, mal aportam à Guiné-Bissau ou a África em geral, começam logo a perorar e a fazer afirmações definitivas de quem já tudo aprendeu e tudo sabe.

Contava ele que “… ainda há poucos anos corriam na África Ocidental Francesa, umas notas de mil francos onde se via, em atitude de herói cinematográfico, um europeu, de largo chapeleirão colonial, camisa folgada, calções curtos e umas imponentes botas altas, empunhando uma arma e, arrogantemente, pisando um leão morto. Podemos dizer: a verdade da imagem correspondia ao exíguo valor da nota”. (...)

(...) O desenvolvimento implica ousar trilhar caminhos novos porque, no dizer do poeta, ao andar-se por caminhos já abertos e conhecidos não se perde nenhuma guerra, mas também não se ganha nada. É gratificante ter-se sido contemporâneo de um grupo de excelentes quadros que contribuíram para o surgimento e sucesso das primeiras vinte e cinco rádios e três televisões comunitárias da Guiné-Bissau que representam hoje a vanguarda neste domínio nos países africanos de expressão portuguesa; para a criação de escolas de tipo novo, designadas de verificação ambiental (EVA) em que é introduzido o princípio da prestação de serviços da escola à comunidade, a capacitação dos professores em ecopedagogia e a sua apropriação pelas populações rurais; o surgimento das primeiras associação de moradores dos bairros populares de Bissau. (...)

Em 1948, um ano antes de eu nascer o meu pai regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e, onde tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.


Com a minha mãe Clara e meus irmãos Henrique e João volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.

Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.

No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.

Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha e logo a seguir com o Ivan nascido em 1975 e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.

Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer. (...)

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5342: Parabéns a você (45): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil da CART 2412 (Editores)

Guiné 63/74 - P5385: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (13): O primeiro ataque a Pirada e a morte do Gila

1. Mensagem de Carlos Geraldes* (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), com data de 28 de Novembro de 2009:

Caro amigo:
Envio agora, integrado nas memórias que vou retirando das gavetas, um relato que há muito estava para ser feito, cansado de ver tanta gente a gabar-se de ter ido à guerra, como se tivesse assistido a um magnífico jogo de futebol, decisivo para as cores do seu clube.

A guerra onde participámos como protagonistas não foi só regada com o sangue dos nossos soldados, mas sim com a de muitas vítimas inocentes. Cujo destino aliás, foi sempre esse ao longo dos séculos, nunca tendo conhecido ouro. Quando penso nisso vem-me automáticamente à lembrança o rosto daquela jovem mãe que fugindo desvairada quando nos viu chegar de surpresa à tabanca, foi logo varada por uma bala assassina que logo ali lhe ceifou a vida atravessando também o crâneo do bébe que transportava às costas. O autor do disparo ainda se riu da proeza.

Um grande abraço, amigo Carlos Vinhal e preparemo-nos calmamente para mais um Natal.


O Primeiro Ataque a Pirada (A Morte do Gila)

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade. Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M. Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

- Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.

Segundo depois me contou o M. Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M.Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Konakri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá, Mansoa, Bissorã. Na verdade a imunidade de M.Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Planta de Pirada

Messe dos Oficiais

Com o raiar do dia já depois de as armas se terem silenciado é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres espalhas pelo chão. Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal. Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que inocentemente tinha carregado na sua bicicleta, vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e no meio de insultos e pancadaria acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer!

Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.

Mas, o gila teria deixado família? Mulher, filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paúnca logo que pude, para tentar esquecer.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5340: Blogpoesia (59): Guiné: A Face Oculta (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel

Guiné 63/74 - P5384: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (18): Referências de Bafatá - Figuras típicas

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2009, com mais um capítulo para a sua série A guerra vista de Bafatá.


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

18 - Referências de Bafatá – Figuras Típicas


Depois do comentário à minha estória anterior, feito pelo nosso camarada Maltez da Costa:

…Reviver Bafatá, passados 40 anos, dá-me uma angústia enorme, porque tu consegues trazer-nos à memória coisas e factos, que parece que se passaram há 40 dias…

espero dar mais um contributo para esse reviver.

Bafatá era a segunda cidade da Guiné, muito menor que Bissau e de cariz perfeitamente provinciano. Toda a gente se conhecia. Passados quarenta anos recordo algumas figuras, bem conhecidas dos camaradas que por lá andaram nessa época.


O senhor Humberto, meu senhorio

Talvez menos conhecido que os demais de quem vou falar. Era um metropolitano proprietário da única oficina de automóveis lá existente. A tropa a ele recorria quando tinha alguma viatura de conserto inviável pelos meios militares. Para além disso era investidor imobiliário.

Eu próprio, em 1969 fui inaugurar uma das duas casas por ele mandadas construir, na tabanca da Rocha em frente ao restaurante do Sr. Teófilo. Em 1970 quando vim embora já estava a construir outras duas. Talvez por deformação inerente às minhas funções (informações) achava esquisito um metropolitano não guardar todo o dinheirinho para trazer para a metrópole …


O Chefe Religioso Muçulmano

Nunca soube o seu nome. No último almoço na Ortigosa mostrei uma foto dele ao Amadu Djaló e ao reconhecê-lo pronunciou o seu nome mas eu não o fixei. Tal como cá, os Bispos estão sempre presentes em actos oficiais relevantes, também lá isso acontecia com este chefe religioso. Costumava vê-lo nas cerimónias do Ramadão, sempre vestido a rigor, bem como em recepções, despedida do Cor. Hélio Felgas, etc.

O Chefe Religioso Muçulmano em dia de Ramadão, junto da mesquita de Bafatá.

O chefe Religioso Muçulmano discursando na despedida do Cor. Hélio Felgas. 04 de Outubro de1969



O Administrador

Era outra figura omnipresente nas cerimónias oficiais. Não sei o seu destino depois da guerra, mas lá não deve ter ficado, pois creio que não era muito estimado pelas populações nativas. Penso que não gostariam muito que o Administrador as obrigasse a andar calçadas. Como já referi noutra estória, presenciei várias vezes os nativos que vinham das tabancas próximas, ao entrarem na cidade, calçarem as sandálias que traziam ao ombro. Também não permitia que as mulheres andassem com os seios nus. Em determinada altura era preciso capinar as partes laterais da pista. Os militares eram insuficientes para executar esse serviço; tentou-se contratar pessoal nativo, o que não foi conseguido. Recorreu-se então ao Administrador. Dum momento para o outro apareceu uma camioneta com trinta ou quarenta nativos. Nitidamente foram obrigados a trabalhar, embora se lhes pagasse o salário praticado naquela altura.

O Administrador, com o seu bigodinho, junto do Cor. Neves Cardoso, numa qualquer festividade.


O Ourives de Bafatá

De seu nome Chame (não sei se é assim que se escreve o nome), era conhecido em toda a Guiné pelo seu trabalho de ourives. Executava peças de prata e de ouro como qualquer oficina de ourivesaria de Gondomar e digo isto porque o género de trabalho mais praticado por ele era muito semelhante à nossa filigrana. Por mais que uma vez estive na sua oficina, uma pequena palhota na tabanca da Ponte Nova. No chão uma pequena fogueira ladeada por duas pedras onde eram colocados os cadinhos para derreter os metais e onde, soprando com o auxílio de um maçarico de boca, se iam soldando os fios dos metais preciosos. Completava a oficina, uma pequena mesa com ferramentas rudimentares. Lamento não ter tirado uma foto das instalações, mas não tinha flash. Numa das vezes fui lá com a minha mulher e comprámos-lhe uma pulseira (ver foto). Mas talvez o mais espectacular é que era o artífice das coroas de ouro dos seus próprios dentes, serviço que não fazia a mais ninguém.

O Chame, Ourives de Bafatá, em dia de Ramadão frente à Mesquita, com os seus dentes de ouro.

Uma pulseira por ele executada, que adquiri numa das vezes que visitei a sua oficina.


O senhor Camilo

Tal como eu, oriundo do Nordeste Transmontano, suponho que de Mirandela, era muito sui generis. Nunca soube muito bem o que ele fazia em Bafatá e especialmente do que vivia. Que era endinheirado, isso era. Regularmente dava uns lautos jantares em sua casa (junto à sede do Batalhão), para os quais convidava todos os oficiais (do Agrupamento, do Esquadrão e do Batalhão). Várias vezes recebi esse convite mas nunca fui a casa do Sr. Camilo, essencialmente por duas razões. Primeiro porque ele só me convidava por eu ser oficial e, segundo, ironizando, não queria que, no caso de um atentado durante o jantar, todos os comandos de Bafatá fossem decapitados.


O senhor Teófilo

Figura controversa. Já foi dito por alguns que seria informador da PIDE, por outros que sempre por essa polícia política teria sido perseguido. Eu fiquei com uma terceira ideia dele. A casa que aluguei ao Sr. Humberto, na tabanca da Rocha, era em frente ao seu restaurante e por isso muitas conversas mantive com ele. Era muito agradável estar na sua esplanada, local estratégico, cruzamento de caminhos. Ali confluíam as estradas que vinham do centro da cidade, do Batalhão, do Agrupamento e do Esquadrão, de Bambadinca, de Nova Lamego (Gabu). Muitas nativas (e nativos claro) por ali passavam com as suas vestes coloridas. Para mim era pura distracção, para ele talvez não fosse só isso. Devo referir que principalmente pelas minhas funções (Oficial de Informações) nunca nas nossas conversas abordei qualquer assunto militar. Ele, no entanto, fê-lo por duas vezes, o que deu origem às duas únicas informações (creio que B2) que produzi no âmbito das minhas funções.

Uma vez, mal me sentei na sua esplanada, logo me interpelou:

- Então senhor Alferes, vão fazer uma grande Operação lá para o Gabu? Claro que eu sabia que se ia fazer um grande bombardeamento e arrasar a tabanca (da República da Guiné) frente a Buruntuma. Como sempre, não lhe adiantei nada. Do seu posto deve ter assistido à passagem de todo o material bélico deslocado para a Operação. Diga-se que, por essas e por outras, a referida tabanca foi completamente destruída e nem sequer um ferido houve…

Doutra vez, já quase no fim da comissão, sem que eu lhe desse azo a isso, disse-me:

- Sabe, senhor Alferes, ouvi dizer que andaram aqui perto, nas tabancas a Norte da pista, elementos IN a contactar as populações. Ouvi, calei, fiz a respectiva informação B2 e continuei a minha vida com uma única alteração: Nunca mais fui à caça à noite e de dia ia sempre acompanhado.

O senhor Teófilo e a esposa contribuíram em muito para amenizar a minha (e da minha mulher) estadia na Guiné. Recordo que aprendi com o senhor Teófilo a forma de fazer secar uma verruga com o auxílio de uma crina de cavalo. Também aprendemos com a esposa, a confeccionar a cachupa e o chabéu e que este melhorava quando o óleo era extraído do coconote na altura. Foi também com o casal que ficámos a saber que as chocas (perdizes) só ficavam tenras se se lhes tirasse a pele.

Várias vezes me falou do Amílcar Cabral, com quem trabalhou, em Fá, antes da guerra, classificando-o como um homem fora de série. Chegou a indicar-me uma irmãzinha (meia irmã) do Amílcar Cabral e que penso (passaram 40 anos) ser a que reproduzo na foto, que tirei precisamente da esplanada do seu Restaurante.

A irmãzinha (meia irmã) de Amílcar Cabral. Bafatá, 1970.

Mais algumas figuras poderiam ser relembradas: A Dona Rosa e as suas filhas, o empregado do Transmontana, Infali e as suas quatro mulheres, mas como na próxima estória irei tratar o tema “Alguns Lugares de Bafatá” aí referirei essas pessoas.

Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia

Fotos e legendas: Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5327: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (17): Apanhado pelo clima

Guiné 63/74 - P5383: Patronos e Padroeiros (José Martins) (6): Serviço de Saúde - S. João de Deus



1. Mais um poste da série Patronos e Padroeiros das Armas do Exército Português, um trabalho de pesquisa do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70).






PATRONOS E PADROEIROS - VI

SERVIÇO DE SAUDE – SÃO JOÃO DE DEUS



João Cidade nasceu em Montemor-o-Novo em 8 de Março de 1495. Ainda novo, com cerca de oito anos, deslocou-se para a cidade de Oropesa, em Castela, onde se tornou pastor de gado.

Mais tarde alistou-se no exército, tomando parte na conquista da cidade de Fuentebaria, que se encontrava ocupada pela França. Terminado o serviço militar, voltou a ser pastor, tendo estado em Oropesa, Sevilha, Ceuta e Granada.
Foi nesta cidade que despertou o seu espírito religioso, contagiado pelos sermões do Padre José Ávila. Resolve confessar publicamente os seus erros do passado e, como demonstração de arrependimento, percorria a cidade flagelando-se e sujando-se com lama. Perante estas atitudes foi dado como louco e internado durante alguns anos num hospício.

Com o espírito mais sereno, quando deixou o hospício, foi visitar o Mosteiro da Guadalupe, regressando posteriormente a Granada.

Em 1539 funda um hospital para doenças contagiosas e incuráveis, dedicando inteiramente ao serviço do hospital, fundando, assim, a Ordem dos Hospitaleiros, que seguia a Regra de Santo Agostinho, vindo esta Ordem a ser reconhecida pelo Papa Pio V, em 1 de Janeiro de 1571. Entretanto João Cidade faleceu em 8 de Março de 1550 em Granada, Espanha.

O Papa Urbano VIII beatifica João Cidade, com o nome de S. João de Deus, em 28 de Outubro de 1630. O Papa Alexandre VIII canoniza S. João de Deus em 16 de Outubro de 1690, mas a Bula só é assinada pelo seu sucessor o Papa Inocêncio XII.

São João de Deus, é o padroeiro dos hospitais, dos doentes e dos enfermeiros. A sua memória litúrgica é celebrada a 8 de Março.

Foi proclamado Patrono do Serviço de Saúde por Despacho n.º 14/86, de 07 de Março de 1986 e Ordem do Exército n.º 3 (1.ª Série), de 31 de Março de 1986.

José Marcelino Martins – 24 de Novembro de 2009
[Organizado a partir de imagens e textos da Wikipédia]

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Nota de CV:

Vd. todos os postes da série de:

26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5347: Patronos e Padroeiros (José Martins) (1): Exército - Arma de Infantaria - D. Nuno Álvares Pereira

27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5352: Patronos e Padroeiros (José Martins) (2): Exército - Arma de Artilharia - Santa Bárbara

28 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5362: Patronos e Padroeiros (José Martins) (3): Exército - Arma de Cavalaria - Mouzinho de Albuquerque

29 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5371: Patronos e Padroeiros (José Martins) (4): Exército - Arma de Engenharia - Nossa Senhora da Conceição

30 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5375: Patronos e Padroeiros (José Martins) (5): Serviço de Administração Militar - Rainha Santa Isabel

Guiné 63/74 - P5382: Efemérides (39): 1 de Dezembro de 1640, evocado pelo nosso bardo, Manuel Maia


Com a devida vénia, aqui ficam algumas estrofes do nosso poeta épico, o Manuel Maia (*), alusivas ao dia de hoje que a generalidade dos portugueses, sobretudo os mais novos, só sabe que é feriado... O nosso poeta do Cantanhez trouxe, à Tabanca Grande, o gosto pela poesia épica e a paixão da História pátria. Bem hajas, camarada! (LG)


História de Portugal em Sextilhas
por Manuel Maia

(...) 160-A saga filipina avançará:
terceiro aqui, é já o quarto lá,
mais opressor ainda que anteriores.
Impostos são garrote asfixiante,
vexame cada vez mais ultrajante,
havia que expulsar os invasores...





161-Se na primeira fase houve acalmia,
pois nobres têm sempre a tença em dia...
segunda etapa é fogo de vulcão.
Agravo tributário é uma constante,
o povo abomina o ocupante,
no sul, Manuelinho entra em acção...

162-Prisões são arbitrárias, quais insultos,
gerando mil protestos e tumultos,
no ar pairava a sede de vingança...
Mil seis quarenta estava no final,
Dezembro em pleno dia inaugural,
foi marco, para a Casa de Bragança...



"Armas da Monarquia Ibérica
após a integração da Coroa de Portugal
nos Estados de Filipe II; o brasão português
em ponto de honra, no abismo do chefe"
Fonte: Wikipédia (Imagem do domínio público)


163-A vida alentejana de acalmia
que o duque para sempre pretendia,
forçada a corte abrupto, teve um fim.
P´ra trás ficou de vez Vila Viçosa,
que a Pátria está de si esperançosa,
fidalgos receberam o seu sim...

164-Sucesso da revolta determina
que seja um sucessor de Catarina,
duquesa de Bragança, a governar.
João Pinto Ribeiro e sublevados,
quarenta atacam paço esperançados
da honra, então, poderem reganhar...




D. João IV, o Restaurador (1640-1656),
o 22º monarca de Portugal, o 1º da IV Dinastia.
Nasceu em 1604, morreu aos 52 anos.
Fonte: Wikipédia (Imagem do domínio público)


165- ‘stratégia tem João Pinto Ribeiro
a dirigir o acto aventureiro
que D. João iria sancionar.
O povo só mais tarde é informado
e logo adere assaz entusiasmado,
saindo à rua p´ro rei aclamar...






166-Tal como a foice corta a erva ruim,
também a Vasconcelos se deu fim
na lâmina afiada de uma espada,
que vai trazer, de volta, a dignidade
a um povo que vivia a adversidade,
sentindo ocupada a Pátria amada...

167-Sessenta anos tempo deste jugo,
que teve o castelhano por verdugo
e apoio vil, de, poucos, nobres lusos.
Renasce a fé e a esp´rança de vivência,
agora retomada a independência,
punidas as traições e os abusos...

In: Manuel Maia - História de Portugal em Sextilhas (*)
a ser lançada no dia 9 do corrente, na Tabanca de Matosinhos, ao preço de 12,5€.
Uma primeira tiragem de 80 exemplares está já praticamente esgotada.
______________

Nota de L.G.:

(*) 3 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4456: Blogpoesia (48): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (V Parte): III Dinastia (Filipina)

Vd. também:

27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5353: Notas de leitura (38): Prefácio ao livro do Manuel Maia, História de Portugal em Sextilhas, a ser lançado na Tabanca de Matosinhos, em 9/12/09 (Luís Graça)

25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5335: Agenda Cultural (47): Lançamento do livro do Manuel Maia, dia 9 de Dezembro, em Matosinhos (José Manuel Dinis)

Guiné 63/74 - P5381: Histórias de José Marques Ferreira (11): 111 – O Têmpera de aço



1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 30 de Novembro de 2009, a seguinte mensagem:


A todos os camaradas desta tertúlia;

Votos de boa saúde.

Como estava "quase" a falhar, envio a minha modesta colaboração para o blogue. Recordo que socorri-me de um «periódico» que naquele tempo servia para distrair e «gastar» umas horas, ou dias, na sua elaboração. Como sabemos os computadores daquele tempo, era a máquina de escrever. Havia necessidade de utilizar um material, que já não sei como era conhecido, mas a que chamávamos "stencyl" (é assim que se escreve?). Depois era dar a manivela no “chapilógrafo”, borrar as mãos em tinta. E lá saía qualquer coisa.

Estou numa fase em que aproveito para dar a conhecer, conforme sabemos, o estilo de escrita, a maneira de expressar ideias, frases... enfim, palavras.

A de hoje, como outras, é da autoria de Ramiro Fernandes Figueiredo que, como tenho dito, era o Alferes Médico da Companhia, Utilizava, quando lhe dava na bolha, alguns pseudónimos. Não sei porquê, não me lembro e, quase tenho a certeza, nunca lhe perguntei. Estas últimas estórias um tanto ficcionadas, mas, mesmo assim, mais próximo possível de realidades, muitas realidades.Deixo-vos mais esta, com renovados desejos de felicidades, que, muitos, bem precisam.

Um abraço a estes editores que trabalham até mais não e com o meu muito obrigado pelas simpatias demonstradas e por me aturarem.

111 – O «TÊMPERA DE AÇO»

A coluna auto seguia pelo caminho previsto pelo oficial de operações. Eram oito viaturas.

Precisamente antes do pontão como marco acutilante nas recordações de hoje, o 111 sente-se impulsionado pelos ares por abalo seguido de um estampido infernal. Neste salto de acrobacia imprevisto não tem tempo para pensar um vislumbrar o que se passara.

Sente-se aparado pela terra amolecida e lamacenta da bolanha ao lado. Olhando a custo, um tanto contundido e abalado, tem um movimento instintivo de apalpar os ossos das pernas e braço e passar as mãos borradas de lema pela cara.

À massa plúmbea daquela argamassa mole e pegajosa não adere sangue. Não está ferido, pode mesmo movimentar os membros a custo. Procura pôr-se de pé, mas não consegue. Vê somente no caminho uma nuvem poeirenta e gritos de desespero, de lamentações e palavras raivosas do comandante que impávido e não muito sereno, ditava ordens.

Sente-se sem forças e desanimar. Mas não podia ser; o 111 é de fibra de aço e tem sete fôlegos. Cerra os dentes e põe-se com dificuldade a rastejar em direcção ao mato limítrofe da bolanha.

A arma desaparecera-lhe das mãos no meio da confusão e explosão que estalara, mas coladas ao seu peito estão duas granadas de mão e no cinto uma sua faca de mato para o que desse e viesse. Respira fundo, arranja novas forças, finca os cotovelos na lama e vai-se arrastando.

A sua atenção é sacudida pela troca inesperada de tiroteio que se travava entre os colegas das viaturas e o inimigo emboscado na berma do mato – e soberbamente instalado. Sentia o metralhar de uma arma que pelo som não era dos seus camaradas. Espevita o ouvido e vê que é do monte de baga-baga a uns cinquenta metros.

Apalpa as granadas e contorcendo-se em dores, com as bátegas de suor a pingarem-lhe da cara, arrasta-se penosamente naquela direcção. Pára um instante – é impossível continuar… - mas a metralhadora inimiga flagela impiedosamente os seus camaradas. Sente as balas que choviam das viaturas sibilarem-lhe sobre a cabeça empada em lama. Quase que não podia abrir os olhos – a lama começava a secar.

Arrasta-se mais, as lágrimas correm-lhe pela cara, talvez de dor e de emoção… nunca se sabe. Está a vinte metros do inimigo e distingue quatro vultos atrás da baga-baga. São negros e rebeldes. Cerra os dentes e com os mesmos arranca a cavilha de segurança duma granada.

Aperta a paleta, mas sente que não tem forças para a lançar a vinte metros. Rasteja… e está a 10 metros. Ninguém no meio da barafunda mortífera o notara. Abriga-se atrás de uma árvore, arranja novas forças e aí vai a granada pelo ar. Caiu a uns cinco metros do objectivo e a arma cala-se. Na fuga, dois do grupo dos quatro emboscados vêm o nosso camarada e dirigem-se para ele, mas antes que o atinja com a pistola que lhe vai ser apontada já a segunda granada voara pelo ar.


O 111 nada mais sentiu a não ser a explosão, cuja onda de sopro o envolvera. Desfalecera…


A seguir o comandante ordenou o envolvimento e vão encontrar o 111. O seu coração batia ainda, o sangue gotejava-lhe dos ouvidos e uns leves estilhaços estavam cravados na lama do rosto. A arma da baga-baga lá estava meia desmantelada. Junto dela dois corpos dos rebeldes. Perto do 111, a uns cinco metros, se tanto, o corpo dum terceiro rebelde mutilado pela segunda explosão.

Ao visitar o 111 há dias no hospital, vi-o satisfeito e já refeito dos ferimentos. Estava radiante, feliz e nos seus lábios dançava um sorriso maroto de superioridade.

Ao entregar-lhe uma pequena lembrança qualquer e já quando me retirava fiquei emocionado, surpreendido e quedei-me uns instantes a meditar nas palavras dele que se repercutiam em mim: «O maior heroísmo ou coisa que o valha, não são as medalhas ou citações, mas o sentido de amizade e o espírito de corpo para com os nossos camaradas, e acredita meu amigo, quando os vi, não tive medo, só pensei nos nossos».

Senti-me emocionado e a custo retorqui:

«Sem dúvida, 111, a nossa Companhia é uma verdadeira família. Sentimos a morte de um camarada como a de um irmão».

“ÓKEY”
(Pseudónimo de Ramiro Fernandes Figueiredo, ex-Alf Mil Médico)
In «Jornal da Caserna», CCaç. 462, Guiné 1963/1965
Guiné - Ingoré, 29 de Fevereiro de 1964.

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes


Foto: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em: