Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Guiné 63/74 - P5813: Parabéns a você (79): Clara Schwarz da Silva, 95 anos, uma grande senhora, viúva de Artur Augusto da Silva, mãe do nosso amigo Pepito, leitora do nosso blogue, novo membro da Tabanca Grande (Luís Graça)
Lisboa > c. 1947 > Subindo o Chiado, Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz... (Em 1949, o casal partiria para a Guiné, onde o Artur foi, até 1966, advogado, notário e até substituto do Delegado do Procurador da República; licenciado em direito, esteve de 1939 a 1941 em Angola, como secretário do Governador Geral; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós)... Esta é uma das fotos do álbum de família, já aqui reproduzida, no nosso blogue, um gesto que tanto a sensibilizou a Clara...
1. Texto do editor L.G.:
Acabei de falar, há umas horas atrás, com o meu e nosso amigo Pepito que veio, de propósito de Bissau para estar na festa dos 95 anos da sua querida mãe. Já sabia, com antecedência, da surpresa que ele queria fazer a essa Grande Senhora, que eu, a Alice, o João e a Joana tratamos simplesmente como Clara. É um privilégio ser seu amigo e frequentar a sua casa. É uma honra também ser amigo do seu filho, Carlos Schwarz, mais conhecido pr Pepito. (O Carlos tem mais dois irmãos, Henrique e João Schwarz).
A Clara Schwarz (Silva por casamento com o advogado e escritor Artur Augusto da Silva, 1912-1983) faz hoje 95 anos. Mas não uns 95 anos quaisquer. É uma vida plenamente vivida. É uma mulher independente e cosmopolita. São 95 anos de uma pessoa ainda muito autónomma, que usa com desenvoltura o telefone, o Skype, o mail, a Internet, o blogue… Até há pouco ainda conduzia. Tem uma memória prodigiosa, é culta, é poliglota, e tem um enorme orgulho de seu pai, engenheiro de minas, de origem polaca, judeu, conceituado estudioso do judaísmo em Portugal, arqueólogo, historiador, autor da descoberta e da revelação pública, em 1925, da comunidade cripto-judaica de Belmonte, e que era fluente nove línguas (de seu nome, Samuel Schwarz, 180-1953).
Qual a relação que ela tem connosco, para além da circunstância de ser mãe de um homem a quem a Guiné e os guineenses devem muito ? Se outras não fossem válidas, bastaria invocar aqui o seu papel como co-fundadora do Liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N' Krumah. Mais: foi professora de português (se não me engano), e por ela passaram os melhores filhos da Guiné, a começar pelos principais dirigentes do PAIGC... (É capaz de os citar de cor, e avaliar um a um!)...
Pois a Clara faz hoje anos, no Dia dos Namorados. Fala com muita ternura do seu marido, Artur, como um homem que "conhecia e amava a África" como poucos... O ano passado ofereceu-me um brochura dele, Pequena Viagem Através de África que um dia destes vou aqui reproduzir, com a devida licença da família: é uma conferência que ele pronunciou na Associação Comercial da Guiné, em 1963, no 46º aniversário da sua fundação. É uma admirável lição de sapiência e de sabedoria, que merece ser conhecida por um público mais vasto, incluindo os nossos amigos e camaradas da Guiné...
Três anos depois, em 1966, a PIDE prendia-o no aeroporto de Lisboa. O seu único crime era o de ser defensor de presos políticos... Libertado graças à intervenção pessoal de Marcelo Caetano, seu professor de direito, após cinco meses de Caxias, sem culpa formada, era impedido de voltar à sua querida Guiné, agora a ferro e fogo... Clara recorda o cinismo do governador, Schultz, que era visita da casa dos Silva, e que inclusive acompanhou o Artur, até ao aeroporto, nessa triste viagem sem regresso... Só depois da independência é que Artur voltaria, a convite de Luís Cabral, para desempenhar o lugar de juiz do Supremo Tribunal de Justiça... E lá morreria, em Bissau, em 1983.
É ambém com a mesma frontalidade e coragem que a Clara vem protestar, em 2005, junto do Presidente da Câmara de Belminte pela imperdoável omissão do nome do so seu pai, Samuel, no recém-inaugurado Museu Judaico de Belmonte. Embora tarde, a injustiça foi reparada em 2007.
(...) "S. Schwarz está na origem da descoberta dos cristãos novos de Belmonte. Graças à sua enorme sabedoria ele revelou os ritos e costumes destes cristãos novos, em numerosos livros dos quais o principal, publicado em 1925, 'Os cristãos novos em Portugal no Século XX' , livros esses que são uma referência incontestável tanto para historiadores portugueses como estrangeiros.
"Depois de ter adquirido a Sinagoga de Tomar, ele restaurou-a e doou-a ao Estado Português que também adquiriu a sua enorme biblioteca luso-hebraica.
"Este esquecimento é uma injustiça sem limites ao homem que foi S. Schwarz, de certa maneira uma segunda morte e também uma negação à verdade histórica.
"O Museu Judaico de Belmonte não pode existir perante esta dupla ofensa e deve oferecer à obra de S. Schwarz o lugar eminente que lhe é devido" (...) (Excertos da carta que Clara mandou ao autarca de Belmonte).
Neste dia tão especial para a família e os amigos da Clara Schwarz só queremos fazer-lhe esta homenagem singela, feita a partir da Quinta de Candoz, freguesua de Parede de Viadores, Marco de Canaveses, perto do Rio Douro, a serra de Montemuro ao fundo, um frio de rachar e uma Internet exasperadamente lenta como na Guiné... Obrigado, Clara, pelo tempo que nos dedica, obrigado pela atenção com que nos ouve, obrigado pela sua lição de vida, obrigado pelo seu amor imenso pela Guiné e pelos guineenses. E deixe-me terminar com as palavras que o Artur tanto gostava de citar, e que ele atribuía a esse sábio africano, seu amigo, o Cherno Bokar:
"Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros: ama-se a si póprio. E aquele que ama os que não pensem como ele, ama a Deus, que é pai de todos"... A Clara (e a sua família) é um exemplo dessa enorme capacidade de ouvir, reconhecer, respeitar e admirar os outros, mesmo quando os outros não são exactamente como nós, não pensam como nós... Desejo-lhe, eu e tida a Tabanca Grande, um dia magnífico, ainda para mais em Dia dos Namorados... E que o Amor nunca lhe falte, o Amor dos bisnetos, netos, filhos, demais família e amigos.
PS - A nossa singela prenda de aniversário, é pô-la aqui, debaixo do poilão da nossa Tabanca Grande, a falar com todos os amigos e camaradas da Guiné, a partilhar connosco as histórias de uma vida... A Clara´, que atravessou o Séc. XX e continua a sorrir-nos e a surpreender-nos no Séc. XXI, passa ser a Mulher Grande da nossa Tabanca Grande, o novo membro, o 397º, da nossa tertúlia, (O seu nome figura, desde hoje, na nossa lista alfabética, na letra C)... E daqui a cinco anos, em 2015, vamos apagar-lhe a vela do centenário!... Combinado ?
sábado, 13 de fevereiro de 2010
Guiné 63/74 – P5812: Histórias do Eduardo Campos (9): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 9): Nhacra 4
CCAÇ 4540 – 72/74
"SOMOS UM CASO SÉRIO"
PARTE 9
NHACRA 4
Pela segunda vez iria passar o Natal na Guiné e nesta quadra em particular, estar longe da família significava ficar mais triste do que habitual.
No entanto como éramos jovens, tínhamos a força necessário para ultrapassar todos os obstáculos e, por muito sentimentais que fossemos, ainda tínhamos a arte e engenho para requisitar o pai natal a estar presente nessa noite.
O Natal de 1973
O calendário parecia ter parado no tempo. Se eu estivesse mais ocupado, talvez fosse diferente o meu estado de espírito, assim sendo, mentalizei-me que não podia ter tudo de bom. Afinal eu até estava de “férias” em Nhacra.
Comecei a pensar, vir passar as minhas férias, mas a abundância de “pesos” não era muita e, como tal, não seria com o auxílio destes que eu conseguiria chegar á Metrópole.
Foi então que resolvi solicitar, através de um requerimento, uma “boleia” nos aviões militares, o que me foi concedido.
Em Março de 73, durante 21 dias lá saí Nhacra e apanhei um North Atlas, até á Ilha do Sal, e só dois dias depois é que consegui continuar a viagem para Lisboa, dessa vez num DC 6.
Mas o barato sai caro e, apenas uma semana depois de ter chegado, recebia eu um telegrama dos Adidos de Lisboa, a comunicar-me que eu teria de regressar à Guiné nessa altura, caso contrário não teria direito a nova “boleia”.
A pressa de voltar a Nhacra, não era nenhuma, e, pensando no tempo que ainda tinha por gozar, tive que comprar o bilhete na TAP, tendo-me desenrascado a arranjar os escudos necessários.
Durante a minha permanência por estas bandas, surgiu em 11 de Março, a “intentona” das Caldas da Rainha, e, creio eu, regressei a Bissau no dia 25 desse mesmo mês, altura em que colocaram as bombas no Quartel General.
Quando cheguei a Nhacra, estava o pessoal das transmissões finalmente a trabalhar a sério, construindo um posto de rádio subterrâneo, em betão maciço, já que havia informações que o PAIGC, tinha aviões “MIGS” na Republica da Guiné Conakri, prontos para bombardear na Guiné.
Eu trocava as noites de serviço com os meus camaradas, com muita frequência, porque adorava trabalhar de noite e, assim, aproveitava para ouvir a BBC e outras rádios, o que começou a despertar-me alguma consciência para a vida política.
Por causa de trabalhar de noite, e como é óbvio dormir de dia, num dia dei origem a que a Companhia estivesse na parada, numa formatura geral, aguardando que eu lá chegasse.
Porquê esperarem por mim, pois se eu tinha o meu direito ao descanso matinal? Esta é uma história ainda mal contada, pelo nosso Camarada bloguista, Vasco Ferreira (ex-Alf Mil At Inf da minha companhia), que nesse dia estava de Oficial de Dia, tendo-me obrigado a sair da cama para a tal formatura, mais cedo do que devia. É claro que não me levantei logo, dando muita resistência para abrir os olhos e sair da cama. Ainda hoje continuo a pensar que o nosso amigo ”Vasquinho” me “roeu a corda” nesse dia.
Entretanto fomos surpreendidos com o 25 de Abril, de que me recordo que algumas mensagens recebidas nesse dia, chegaram ao COP 8 com um conteúdo que não fazia sentido nenhum. Será que a referida falta de sentido, estaria relacionada com instruções e código estabelecidos pela malta envolvida no Movimento Revolucionário?
Nunca o saberei!
DOCUMENTOS DE COLECÇÃO COM HISTÓRIA
Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCAÇ 4540
Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5796: Histórias do Eduardo Campos (8): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 8): Nhacra 3
Guiné 63/74 - P5811: Notas de leitura (65): Armor Pires Mota (7): A Cubana Que Dançava Flamenco - A consagração de um grande escritor (Beja Santos)
Queridos amigos,
Este é o mais recente livro do Armor Pires Mota, considero que se trata de uma obra de consagração e merecia que todos nós a lêssemos. Não paro de me interrogar como é que é possível ter mantido num olvido discreto alguém que escreve em tão bom português e tão bem sobre aquela África da nossa juventude.
Um abraço do
Mário
Armor Pires Mota (7)
A Cubana que dançava flamenco: a consagração de um grande escritor
Beja Santos
“Cabo Donato, pastor de raparigas”, “Estranha Noiva de Guerra” e “A Cubana que dançava flamenco” são obras muito afins na arquitectura literária e nos esquadrinhar das memórias. Direi que entrelaçadas, diferentes prismas do mesmo olhar. O que era convencional nos anos 60, desaguou na sinceridade que é possível a quem já nada tem a perder com a dor revelada. Agora, a linguagem vai-se desprendendo, Armor Pires Mota deixa de procurar soluções lisonjeiras, o que é bruto deixa de ser polido, o que é áspero deixa de ser amaciado, os heróis transgridem, vivem alucinados, superam os tempos da realidade, têm uma capacidade quase sobre-humana de conciliar e reconciliar os pólos opostos. A tropa, os seus figurantes, estão no local de combate e quando se encontram com a gente da guerrilha descobrem as aproximações e a disponibilidade do amor. A gente só se reencontra quando se tornou demencial apontarmos as armas uns aos outros.
Estamos perante um autor que se fixou nos territórios onde combateu, esses locais são tratados com uma relativa fidelidade geográfica, ele vai rodando os espaços e os tempos, Bissorã, Mansoa, Mansabá, Bissau, Morés, são nomes constantes, o que muda é a natureza do combate humano, a superação da solidão, a forma natural como a pessoa pratica o heroísmo sem ficar dependente dos seus efeitos ou dar explicações conjunturais. Cabo Donato é um trabalho preparatório, a germinação de uma obra-prima da literatura da Guerra Colonial, “Estranha Noiva de Guerra”, “A Cubana que dançava flamenco” é a consolidação de um género literário de um autor que amadureceu e autonomizou uma abordagem da guerra, misturando tempos, lançando dúvidas no leitor quanto ao delírio dos personagens, socorrendo-se de um género que privilegia o português castiço, quase à Aquilino, os ritmos avassaladores do realismo fantástico, o estilo da reportagem, o discurso confessional e, é importante insistir, uma permanente mensagem de amor cristão, onde o perdão e o reencontro depois de uma viagem cheia de afrontas tudo sublimam. Armor Pires Mota aprecia a catarse, como se escrevesse para arredar fantasmas, misturando a primeira e a terceira pessoa do singular.
Desta vez, o herói chama-se Silas Macário, vive não muito longe de Coimbra, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, é hoje um homem depressivo, muito virado para o que aconteceu em Santambato, no Morés mítico, tão temido pelas nossas tropas. A sua vida está-se a revelar um desastre até que recebe a carta do seu filho, tudo fruto de uma relação apressada com a bela Usita.
É uma linda carta escrita em crioulo, letra tremida, e que assim começa: “N´ka sibi si é carta na bai octchau, abo ki nha mame fala abo que nha papê, lá lundjo na Lisboa nindê ku bu s´ta nel. Si duno, ku sêdo bô, i branco de certeza, pabia ami nim n’ka branco, nim n’ka preto. N’ fica na metade de pintura (Não sei se esta carta vai encontrar ou não quem a minha mãe diz que é meu pai, longe na Lisboa ou onde é. Branco, é de certeza, porque eu não sou branco nem preto. Fiquei a meio da pintura). Assina António Macário, ele quer conhecer o pai e manda-lhe um abraço do tamanho de um poilão.
E as recordações de Silas põem-se a viajar. Oloto pedira-lhe ajuda, em Mansabá, para ir buscar o filho, envolvido na guerrilha. Irresponsavelmente, Silas acede, embrenham-se no mato, são detidos por uma unidade do PAIGC, o alferes Silas Macário torna-se prisioneiro de guerra. Em termos literários, temos a leitura e a releitura de tudo quanto se passou, é como que Silas estivesse a ganhar uma nova maneira de ver as coisas. A adaptação é cruel, a comida insuportável, o comandante Mamadu Indjai ofende, bate e tortura. O tempo ganha uma nova dimensão: “Os dias e os meses arrastavam-se assim com uma lentidão de pedra rolando em terreno difícil e rugoso, entre risos de troça, trabalhos menores ou perigosos emboscando a tropa, enquanto o alferes marcava o tempo, os dias, as semanas e os meses, com rasgos de canivete na casca da calabaceira por debaixo da qual se aninhava uma figueira-brava. Suportava já tragar, por vezes, raízes silvestres, mel, até mandioca. Como os guerrilheiros. O arroz de chabéu entrou na rotina. Também o irandé. Já não fazia caso e, tal como os negros, limpavam os dentes com pauzinhos”.
Vai sofrendo de ataques de matacanhas, passou a ensinar a ler as crianças e até os guerrilheiros. Depois apareceu Usita, que disse estar casada com Mamadu Injdai. Apareceram os cubanos, Ramon Stella, Angel Fuentes e Paco Sanchez. Assim se vive em Santambato, no coração do Morés. Desperta a paixão entre o Usita e Silas, Usita era desprezada porque não dava filhos. Usita, perigosamente, entrega-se a Silas, quer um filho do branco. Nas noites de solidão, Silas recorda Susana, a mulher do capitão com quem tem encontros esporádicos. De Santambato, Silas é deslocado mesmo para o Morés, aqui conhece Conchita, enfermeira e irmã de Ramon Stella. Como se de uma via-sacra se tratasse, Silas é forçado a trabalhar como carregador das forças do PAIGC, assiste a rixas. Conchita, a revolucionária, sente-se atraída por Silas, passam-se a encontrar regularmente. Silas vive a guerra ao contrário, está no meio das forças do PAIGC quando há emboscadas, vê-os matar e vê-os morrer, tudo sem um queixume. Armor Pires Mota vai desenhando conversas frugais, autênticas perguntas/respostas, tudo pontuado de frases breves que tanto falam de África como da sensualidade estabelecida, assim: “Uma nuvem gorda rolava no céu, agitada pelo vento. O vento desfazia os cabelos meio crespos, meio lisos da cubana que, levantando-se de um pulo contente, se foi amoldar nas pernas de Silas Macário que a puxou toda para si, sentindo-lhe o borbulhar do sangue e o bico erecto dos seios”.
Há um ataque a Mansabá, o autor volta a oferecer-nos uma grande imagem do pesadelo da guerra: “O morteiro berrava estrondos. As espingardas esganiçavam-se em cantigas de aço, insuportáveis aos ouvidos, ritmadas, mais volumosas do lado da tropa, quando uma rajada fez com que dois negros deixassem tombar as armas. Vigiavam-no também. Rogou-lhes por cima do corpo esbarrondado não sabe uantas pragas... O sangue jorrou no mato. Na caserna, de luzes apagadas ou frouxas, a tropa aguentara bem o primeiro ímpeto...” O regresso ao Morés é uma verdadeira debandada, com feridos e mortos. Conchita parece viver o amor da sua vida. Silas é forçado a acompanhar as colunas, assiste ao drama daquelas povoações que vivem no jogo duplo. É assim que ele volta a Santambato e que Usita lhe comunica que está grávida.
Armor Pires Mota não é um autor facilmente classificável. Tem uma notória predilecção pelo vernacular, o telúrico, há um chamamento da terra e de toda a cultura rural que lhe inunda as imagens. Sente-se a influência do jornalismo, do espírito da reportagem, mas o seu estilo povoa-se de arremetidas que nos recordam os hispano-americanos, ele explora habilmente a truculência dos desacertos e desalinhados da retórica militar.
Silas é muito diferente de José Joaquim Bravo Elias; este, como Ulisses, prossegue indómito até ao fim da sua missão; Silas é o produto das contingências, como veremos adiante, haverá o dia em que descobrirá que foi dado como desaparecido em combate e o corpo de um cubano está sepultado com o seu nome no cemitério da sua aldeia. Bravo Elias é o carácter de um povo, um valor, uma épica, Silas é o ser humano que espera décadas para redimir e opor-se ao seu destino. “A Cubana que dançava flamenco”, Armor Pires Mota, Imagens & Letras, 2008).
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!
Vd. último poste sobre Armor Pires Mota de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)
Vd. último poste da série Notas de leitura de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P5810: (Ex)citações (57): Os maus exemplos de um 1.º Sargento (Manuel Marinho)
OS MAUS EXEMPLOS
Binta, mais um dia de saída para o mato que era rotina quase diária, procede-se à distribuição das rações de combate, entre nós fazem-se as respectivas trocas de latas, uns gostam da dobrada, outros de conservas, outros ainda preferem apenas os sumos, enfim vocês sabem como era.
Em frente a nós, nesses amanheceres, junta-se um conjunto sempre elevado de miúdos que nos observam nos nossos preparativos, de latas vazias de calda de pêssego na mão, esperam a já habitual distribuição pela nossa malta das possíveis sobras que os nossos organismos já não consomem, por efeito de saturação dos mesmos.
O que começou por ser coisa sem a mínima importância, dar algumas latas de ração, tornou-se numa obrigação por culpa do nosso 1.º.
Distribuem-se latas das rações de combate pelos miúdos, perante a sua alegria incontida, fazemos apelos aos camaradas para que dêem o que não vão comer, estas cenas começaram a ser habituais e causaram azia a um 1.º Sargento que um dia resolveu intervir para acabar com estas pequenas generosidades.
Dirigiu-se a nós e disse mais ou menos isto:
- Esta merda tem de acabar! - Vocês estão a alimentar os filhos dos turras, com o comer do Exército! Estão a dar maus exemplos, depois não se queixem!
Neste caso era uma excepção à regra, mas quantos havia a pensar assim? Adiante….
Perante os nossos protestos e algumas bocas dirigidas ao mesmo, dizendo-lhe que as únicas vítimas inocentes naquela guerra eram as crianças e em surdina, dizíamos:
– Vai mas é para o mato!
As coisas ficaram por ali, mas serviu para comentarmos entre nós a forma de abastecer ainda melhor a miudagem.
Então quando comíamos (mal) no barracão a que se chamava refeitório, as sobras eram entregues aos miúdos que esperavam a distância conveniente, longe de olhares indiscretos para evitar chatices, e lá iam eles todos contentes para as suas tabancas, com as latas fornecidas.
Mesmo alguns dos nossos camaradas (poucos) faziam cara feia, quando ao terminar as nossas refeições, se recolhiam os restos para depois lhes encher as latas, era preciso fazer pedagogia e apelar aos seus melhores sentimentos, o que em verdade se diga não era difícil.
Mesmo que assim fosse, o Exército não dava alimentação decente para o qual tinha todas as obrigações de o fazer, e o que dávamos aos miúdos, não compensava os prejuízos de cabritos que surripiávamos aos pais, para suprir a nossa alimentação.
Convém dizer que se tentava quase sempre a compra junto da população de animais para a nossa alimentação, galinhas, porcos e cabritos, o que não era tarefa fácil, em virtude das suas crenças religiosas.
Tudo o que era negro, era turra ou parente aproximado, e depois nós que andávamos no mato com as milícias, que faziam a mesma guerra ao nosso lado, ouvíamos muitas recriminações e críticas a estas manifestações raciais de mau gosto.
A estas atitudes não era alheio o facto de termos vivido Guidaje, já que deixou revoltas mal resolvidas entre nós, e pelo facto de por essa altura haver sempre Companhias em permanência por causa das colunas que eram feitas, e o desgaste a que éramos submetidos, em permanentes escoltas e patrulhamentos, e a fazer as guardas de sentinela aos postos durante a noite, com intensa actividade operacional, era natural a nossa hostilidade, a comportamentos menos correctos por parte de quem tinha obrigação de dar exemplos.
Felizmente esta foi uma voz isolada, num contexto de guerra em que muitas atitudes similares agravaram o que já era complicado, e foi um acto que não se repetiu porque a razão estava do nosso lado.
Um grande abraço para todos vós.
Manuel Marinho
Foto 1 > Binta > Novembro de 1973 > Elementos do 1.º GCOMB a petiscarem no barracão que servia de caserna. Marinho é o 4.º a contar da esquerda.
Foto 2 > A mesma malta mas tirada do lado contrário.
Foto 3 > Nema > Março de 1973 > De cócoras, eu e o Chico Santos, jogador de futebol do Varzim, e de pé o Tavares, um herói de Guidaje.
Fotos: © Manuel Marinho (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)
Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)
Guiné 63/74 - P5809: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (7): O Ventoínha e o seu rádio fulminado
O VENTOINHA
De baixa estatura e porque andava sempre em correria, este condutor da CART 643 tinha a alcunha do VENTOINHA. Em virtude de haver na altura excesso de Condutores na Companhia, o citado moço foi colocado como impedido do alojamento de Sargentos, alojamento esse que segundo informações passou a ser Bar dos Sargentos das Companhias vindouras, 816 ou 1419?
O seu sonho era ter um rádio/telefonia, para nos momentos de descanso ouvir música e as notícias. Esse sonho era difícil de concretizar, o pré não era mais do que umas centenas de escudos, ainda por cima uma parte ficava na Metrópole.
Juntou a pouco e pouco alguns escudos e comprou em segunda mão a um civil o dito aparelho. Andou de mão em mão a mostrá-lo, e chegado a noite, porque havia fraca recepção, decidiu ligar à antena do rádio militar. A assistência era grande até parecia uma cena do filme O PÁTEO DAS CANTIGAS, os camaradas estavam ansiosos por ouvir aquela fonte.
Mal ligou, caiu uma forte trovoada antecipada por um raio, mas logo por azar foi direito à antena e logo o aparelho começou a deitar fumo.
Claro com a crueldade normal dos jovens ouviu-se dizer:
- Oh Ventoinha a caixa talvez ainda sirva para uma gaiola de periquitos.
Rogério Cardoso
CART 643
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5781: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (6): Rondas e sentido de solidariedade na 643
Guiné 63/74 - P5808: Lembrando um dia duro, obrigado e fortíssimos abraços a todos (José Brás)
Meus camaradas
Ontem foi um dia duro para mim, confesso... explicando*.
De tanta palmada nas costas, ainda hoje ando um pouco inclinado em frente.
De tanto abraço, quase me estrafegaram.
E isto não se faz a um crente, amigos.
Já me lembrava a fábula de John Steinbeck sobre a mãe que por tanto querer aos filhos os matava contra o peito.
Mas pronto, cá vou a caminho das vésperas de 70 (que a idade em que um homem só "sessenta").
Obrigado a todos e se, pela conversa, a uns sei que pagarei continuando a dizer as minhas parvoíces, aos outros que discordam muito ou pouco, apenas lhes posso garantir uma amizade igual à que dedico aos outros.
E envio-lhes aqui uma prenda em forma do retrato de tanto trambolhão
Muito obrigado e fortíssimos abraços a todos
José Brás
Deve ser a isto que se chama "pegar o boi p'los cornos". Na cara de um toiro de 600Kg de João Branco Núncio
...e foi nos toiros que ganhei o gosto pelo vôo (e pelas aterragens de emergência)
Nas matas da Guiné, zona de Mejo o toiro era mais duro, mas tinha de pegar-se
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5795: Parabéns a você (78): José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68 (Editores)
Guiné 63/74 - P5806: Tabanca Grande (202): Raul Rolo Brás, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 2381 “Os Maiorais”, Buba/Quebo/Mampatá/Empada, 1968/70
Nota de M.R.:
Guiné 63/74 - P5805: Agenda Cultural (58): Do Carnaval de Lazarim, Lamego, a Guileje, Região de Tombali... Quem se lembra do pirotécnico Hélder da Costa, da CCAÇ 2617 ? (Luís Graça)
1. Façam-se à estrada e venham até ao Entrudo de Lazarim, Lamego, 13-16 de Fevereiro de 2010....
Lazarim é célebre pelos seus caretos... Neste artigo, de João Garcia, publicado em 1998 no Expresso, há um referência, inesperada, a um camarada nosso, o Hélio da Costa, que estava em Guileje, em 1970... Era de minas e armadilhas, viu morrer dois camaradas, um cabo e um furriel. Em Guileje, perdeu o medo ao fogo... Em Lazarim, era o pirotécnico do Entrudo...
Nesta época, em 1970, passaram por Guileje 2 unidades... (Inclino-me para a hipótese do Hélio ser da CCAÇ 2617, já que na lista do pessoal da CART 2410, elaborada pelo Luís Guerreiro, não encontrei o seu nome):
CART 2410, Os Dráculas (Junho de 1969/ Março de 1970)
CCAÇ 2617, Magriços do Guileje, Março de 1970 / Fevereiro de 1971
Será que alguém, dos Magriços, conhece (ou lembra-se de) o Hélio da Costa, de Lazarim, Lamego ? Vou dar um salto até lá, neste Carnaval de 2010. (LG)
2. Tradições > Viagem ao velho Entrudo > A Arte das Máscaras
João Garcia, Expresso, 21 de Fevereiro de 1998
Caretos é também a designação dos mascarados de Lazarim. Mas ali, na proximidade de Lamego, conta mais a máscara, esculpida em amieiro, do que o fato. E, dado inesperado, nenhuma das práticas do Entrudo está vedada às mulheres... embora tenham o seu risco.
«Uma vez pedi uma máscara, vesti-me, e saí de careto, juntamente com outra moça. Mas eles lá descobriram, fosse pela forma do corpo, fosse pelo andar, e começaram a querer pôr as mãos onde não deviam. Tivemos de fugir», recorda Maria de Lurdes, com 49 anos e muita saudade do tempo em que podia fazer versos para o testamento das comadres.
Na terça-feira, um rapaz e uma rapariga fazem a leitura dos testamentos dos compadres e das comadres, versos compostos em segredo e de crítica aos jovens do sexo oposto. Mandam as regras que só os solteiros possam criticar e só eles sejam alvo de chacota. Do testamento consta a imaginária distribuição de um burro ou burra, que a imaginação divide, cabendo a cada um o órgão ou parte que mais se adequa ao «defeito» que lhe é enunciado.
Todas, mesmo todas, as partes do animais são atribuídas, no meio de quadras que nem sempre dissimulam os palavrões. «As raparigas são mais finas, sabem dizer as coisas de outra maneira. Agora eles, às vezes, dizem tudo por claro», conta Ester Ribeiro, de 19 anos, uma das moças que têm ajudado a compor as estrofes da comadre. Sabe que vai ouvir das boas, mas já está preparada para não ligar. Sempre as raparigas as compuseram, mas só em 1985 se libertaram do porta-voz que fazia, por elas, a leitura das «deixadas» do testamento.
Apesar da permissividade própria do Carnaval, que, dizem os antropólogos, serve para exorcizar e esquecer o passado, nem todos se contentam com um cerrar de dentes. Houve um ano em que a GNR foi chamada e as ofensas valeram multas de 400 escudos, acrescidos de cinco tostões de imposto de selo. No ano seguinte, o testamento só teve uma quadra:
«Vamos ler o testamento / para que ninguém se fique a rir / por causa de 400 e coroa / fica a burra por dividir.»
As máscaras de Lazarim já andam pelo mundo. José Costa, de 24 anos anos, carpinteiro, é o mais jovem artífice. Às caraças tradicionais, muitas de fisionomias com pequenas barbichas, orelhas bicudas ou cornos, está a juntar figuras da banda desenhada: «O ano passado saiu à rua uma do Alf.»
Na primária, os alunos inspiraram-se no Gil, a mascote da Expo. Mais tradicional, Afonso Costa, de 72 anos, vai esculpindo animais, guardas, reis e algumas figuras diabólicas. «Já vendi máscaras para museus dos Estados Unidos, da França e da Alemanha. E há também em Lisboa, no Museu de Etnologia, e no Grão Vasco, de Viseu.» O Carnaval de 1949 valeu-lhe 16 horas de prisão, quando o reboliço na aldeia levou à intervenção da Guarda.
Terminam os festejos com os caretos a emitirem uivos, enquanto pequenas explosões despedaçam os bonecos que representavam a comadre e o compadre. Feitos de arame, papel e palha, armadilhados com pequenas peças de pirotecnia, presidem ao testamento e são sacrificados no final. Quem os faz, por 20 contos cada, é Hélio da Costa: «Na Guiné, em Guilege, em 70, vi morrer um cabo e um furriel. Éramos de minas e armadilhas. No fim da comissão tinha perdido o medo ao fogo.»
Afinal, nem tudo o que é passado se esquece com o Carnaval.
Fonte: At-Tambur.com - Músicas do Mundo (com a devida vénia...)
[ Revisão / fixação de texto / bold / título: L.G.]
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
Guiné 63/74 - P5804: Documentos (10): PAIGC: A agressão contra a missão especial da ONU, Excertos de um relatório de Amílcar Cabral, 1972 (António Graça de Abreu)
1. Mensagem do António Graça de Abreu, com data de 22 de Janeiro último:
Assunto - Relatório da ONU, Abril 1972
Meu caro Luís
Inicialmente coloquei isto como comentário (*) mas creio, com as fotografias do documento, que merece um post.
Deixo ao teu cuidado.
Um abraço,
António Graça de Abreu
Meus caros: Já havia esquecido, mas ontem fui aos meus papéis velhos sobre a Guiné e lá encontrei o relatório da "Missão especial da ONU na Guiné, Abril de 1972."
Está aqui comigo e recomendo a leitura e entendimentos a todos os que passámos pela Guiné na fase final do conflito. Esclarecedor, brilhante, também angustiante. As verdades dos factos. Talvez a publicar no blogue mas são dez páginas em A 4.
Em anexo ao texto dos homens da ONU, são publicados excertos do relatório então escrito por Amílcar Cabral sobre a visita dos homens da ONU.
No nosso blogue temos tido o gosto (eu não) de denegrir a capacidade militar das NT (Guileje, a guerra militarmente perdida, perdida em termos militares, etc.).
Pois, Amílcar Cabral faz exactamente o contrário, exalta e exagera a capacidade militar das tropas portuguesas em Abril de 1972. Leiam as palavras de Amilcar Cabral no seu relatório sobre Missão da Onu:
"No dia seguinte da partida da missão (da ONU), o Estado Maior Português, declarou o estado de prevenção para os 45.000 militares das tropas coloniais existentes no nosso país, dos quais 15.000 se encontram acampados no Sul (...) 10.000 homens das tropas especiais foram transportados durante alguns dias de Bissau para o Sul. Se juntarmos as forças da aviação e da marinha que operaram no decurso da agressão, o número total de homens mobilizados foi da ordem de 30.000."
Isto num pequeno país onde, segundo a missão da ONU, 3/4 do território eram "zonas libertadas pelo PAIGC" que dispunha de 5 a 6 mil combatentes, e onde (agora em Janeiro de 2010) segundo a opinião do diplomata equatoriano da ONU que fez parte da missão, os portugueses, "entrincheirados nos
seus quartéis" apenas "se deslocavam por via aérea."
Tanto dado falsificado!... Difícil fazer a nossa História e a dos povos da nossa Guiné!
Um abraço.
António Graça de Abreu
2. Comentário de L.G.:
No mesmo poste, havia já eu inserido antes um comentário, a 21 de Janeiro, começando por reforçar "as palavras que tu escreveste no teu Diário (Pouca gente em Portugal tinha essa informação privilegiada e detalhada, como tu tinhas em 25 de Junho de 1973, quando chegaste a CUFAR, como alferes miliciano do CAOP1":
"(...) Até Dezembro de 1972, isto era quase tudo território do PAIGC. Havia os aquartelamentos de Catió, Cufar e Bedanda bem defendidos onde a tropa portuguesa não punha muito o nariz de fora.
"Em Abril de 1972 estiveram por aqui observadores do Comité de Descolonização da ONU para conhecer as realidades das zonas libertadas pelos guerrilheiros. Vieram de Conacry, entraram pela zona de Guileje, chegaram até perto de Cufar, sempre a pé, abrigados pelas florestas." (...)
E no mesmo comentário, acrescentava eu: "E depois, dizes, mais à frente e bem, que as coisas mudaram, a partir de finais de 1972, com a reocupação do Cantanhez por dois mil homens das NT... que praticamente não sentiram resistência por parte do PAIGC... Tal como tinha acontecido no Como, em 1964...
"Como tu também sabes, as guerras não se ganham só com as armas e os homens em armas, e as unidades de quadrícula...O Como e o Cantanhez são a prova provada de que não havia 'santuários' (tu mesmo falas em 'zonas libertadas')... Mas não foi aí que a guerra se ganhou ou perdeu... O campo de batalha, a batalhava mais decisivo, não se travava aí, mas nos aerópagos internacionais, nas chancelarias, na Assembleia Geral das Nações Unidas...
"Bem, vamos ler o relatório ? O primeiro que arranjar uma cópia, faz a divulgação no blogue, para que todos possamos perceber qual foi a metodologia, o itinerário e os locais da visita, as observações, as conclusões... Bom dia!"
Como foste tu o primeiro a arranjar a tal cópa, deixa-me dizer-te duas palavras de agradecimento:
Obrigado, António, por teres sabido guardar, preservar, proteger e depois divulgar um documento como este, dactilografado, policopiado, e que seguramente terá interesse para a historiografia dos dois países... Se tiveres tempo e pachorra, podes digitalizar e mandar-nos as restantes páginas que faltam (dez ?)... Muitos dos nossos camaradas não estão habituados a lidar com documentos originais como este. E é importante que tenham acesso a cópias dos documentos originais, sejam das NT sejam do PAIGC... Não tendo formação em história, muitos leitores nossos também não sabem como trabalham os historiadores, como é a sua metodologia (e a sua ética) de investigação, como é isso do recurso à triangulação das fontes ou das versões, etc.
O Amílcar Cabral não era historiador, era um líder revolucionário. O excerto que aqui transcrevemos deve ser visto apenas como um texto de combate político. Não mais do que isso. Na guerra de propaganda, cada uma das partes puxa a brasa à sua sardinha. Spínola também não era historiador, era um cabo de guerra, um líder político-militar. Os seus discursos, defendendo a Guiné Melhor, também devem ser vistos como armas de arremesso político.
Quarenta anos depois, somos capazes de ler e analisar os documentos (escritos, falados, etc.), de um lado e de outro, com a suficiente distância crítica, isenção, objectividade... Pessoalmente congratulo-me por podermos e sabermos apresentar e discutir, aqui no nosso blogue, com naturalidade, sem crispação, documentos sobre a guerra colonial que não têm necessariamente uma leitura única, linear...
Um bom Carnaval (a festa do "Adeus à Carne"). Daqui do Porto, da tua terra, envio saudações para ti, para Lisboa, e para o pessoal das diversas Tabancas deste regulado, de Matosinhos, do Centro, da Linha, da Lapónia... Ainda quero ver se vou ver os caretos de Lazarim, Lamego, onde há o Carnaval mais português de Portugal...
PS - Estou a envidar todos os esforços para poder participar, eu e a Alice, no almoço da Tabanca do Centro, a 26 do corrente...
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Nota de L.G.:
(*) 20 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5680: Efemérides (41): No 37º aniversário da morte de Amílcar Cabral, recordando o sucesso diplomático que foi a visita da missão da ONU às regiões libertadas, no sul, 2-8 de Abril de 1972