1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Abril de 2010:Meu Caro Amigo,
Também de estórias se faz a história de uma Companhia. Por isso, hoje, vão duas narrativas, mais uma, que são duas aglutinadas. São só três, mas podiam ser quatro. Isto até parece táctica para confundir o IN, mas não é.
Outra coisa: até recentemente, a exposição dos "posts" era mais duradoura. Provavelmente haverá boas razões para a alteração que se regista. Parece-me, no entanto, que o blogue não fica a ganhar.
Carlos, para ti e para o Tabancal, vai um grande abraço.
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (35)
De estórias se faz a história de uma Companhia
Estória n.º 1 (incompleta)Seriam duas da manhã, quando acordei, surpreso, com o grito do Tito a simular alguma aflição: "Zé, acorda!".
Havia luz, uma luz amarelada, sumida, garantida pelo ronronar do gerador que, naquela ocasião, providenciava a iluminação periférica ao arame farpado, limite da aldeia e aquartelamento, não fossem os turras cortar o arame na escuridão da noite, e surpreender-nos. Ora, havendo iluminação no exterior, também havia no interior.
A pálida luz revelou-me o Zé Tito, com o riso suspenso do bigode, à Eroll Flynn, com ar de velhaco, enquanto estendia na minha direcção uma garrafa de qualquer "mustela", argumento suficiente para que eu não me chateasse com o importuno, estremunhar e ordenava: "
bebe um bocado, bate-te à hepatite!".
Durante a comissão nós dois fomos sempre clientes dos quartos, nunca dormimos em abrigos, debaixo da terra, lugares onde os odores sudoríferos combinavam com ventosidades expelidas pelos ânus, vulgarmente conhecidas por peidos e bufas, conforme se manifestavam ruidosamente, ou pela calada, e ainda outros cheiros, como restos de comida e o conhecido cheiro da terra, principalmente enquanto húmida, contribuindo no conjunto para ambientes de nausea. Por isso, quais
pi-pis da linha, arranjámos sempre pretexto para dormir nos quartos, lugares muito mais arejados, e com um mínimo de densidade populacional.
Nunca fiz concorrência às toupeiras e, uma ocasião, quando o Trapinhos distribuiu os furriéis no comando dos abrigos, contestei e aleguei que não dormia naquelas condições, além de que tinha que garantir o manuseamento do "81" em caso de ataque do IN. O resto da furrielada só às tantas, ou de manhã, regressava aos aposentos.
Molhei o bico. Voltei a adormecer.
Não sei se por estas, se por outras, é que o Zé Tito, aquando do segundo período de férias na Metrópole, foi à consulta externa no Hospital Militar, onde foi diagnosticado como sofrendo de uma qualquer hepatite, porque, como é sabido, há várias espécies de hepatite que não sei como se distinguem entre si, mas, naquele tempo e circunstâncias, tal maleita, a ser confirmada, dava direito a passar à peluda. Os exames complementares de diagnóstico que lhe fizeram, não lhe propiciaram tanto bem, mas renderam-lhe o prolongamento das férias por mais dois ou três meses, quando já pouco faltava para o final da comissão.
Entre nós havia uma cumplicidade que resultava de sermos amigos da juventude, e termo-nos acompanhado sempre ao longo da tropa, desde o primeiro dia, quando nos apresentámos em conjunto. Para onde um era colocado, o outro seguia o mesmo caminho, e à mesma hora. Coisa do acaso!
Durante o Verão de 71, o Zé escreveu-me um aerograma, descrevendo a nova situação militar em que se encontrava, e dava conta das grandes farras em que andava metido com o Carlos Santa, um amigo comum, mais tarde mobilizado para Nova Lamego, gozo esse patrocinado por umas francesas, descritas como muito jeitosas, alegres e dedicadas, que o aliviavam da ausência da saudosa Guiné. Nessa missiva, ainda me pedia para embrulhar os livros e as camisas, e para lhe mandar para casa, pois, imaginava, já não voltaria ao seio dos camaradas em Bajocunda. Tudo descrito com muito bons modos e delicadeza, que o rapaz tinha uma educação refinada.
Por acaso, nem sequer respondi.
Alguns dias mais tarde recebi novo aerograma, letras largas e margens vazias de texto, onde ele considerava que eu não teria lido o anterior, dava uma breve notícia da actividade na Metrópole e, depois, tratando-me de sacana, verberava para que eu lhe enviasse as camisas e os livros, na medida em que, para a Guiné... jamais!
Por razões quaisquer, de que a mais relevante é a minha tendência para a sorna e o deixar-andar, voltei a não responder. Até que...
Recebi um terceiro aerograma, simples e ordinário, onde me dispensava um tratamento de filho da mãe, e ingrato para com o amigo, leal e dedicado, que voltava a pedir para lhe enviar a merda da encomenda, com as camisas e os livros, coisas que eram pessoais, não interessavam a mais ninguém, e não queria deixar na Guiné. Assinado com um miserável rabisco. Nem lembranças para os camaradas.
O resto da estória espero ter ocasião para contar, quando me reportar à época dos acontecimentos, cerca de um ano mais tarde, corria o mês de Outubro, com vinte meses de comissão.
Em tempo, uma intervenção do camarada Zé TitoCaro Zé Dinis
Ainda bem que te restam algumas memórias dos tempos “trágico marítimos”, no entanto, após leitura atenta da estória n.º 1 (incompleta), apercebi-me de que te esqueceste de contar de que, no último aerograma te disse com letra alterada, de que se não me enviasses os livros e as camisas, os ia buscar pessoalmente a Bajocunda, o que de facto aconteceu.
Também te esqueceste de mencionar de que, quando fui verificar o estado das minhas camisas que tinham ficado à tua guarda, notei um cheiro nauseabundo a merda retardada que verifiquei na altura dever-se à falta de papel higiénico em Bajocunda e, de tu, teres estado na minha ausência a limpar a peida nelas depois de teres limpo o cu aos meus aerogramas, daí nâo mas teres enviado, porque te estavam a fazer geito.
Zé Tito
15ABR2010Na companhia havia uma grande nódoa. No entanto, a furrielada era uma força considerável. Na imagem distinguem-se quatro feras: mim, Zé Tito, Morais e MarinoEstória n.º 2Um belo dia vinha com o Marino na direcção da cantina, talvez proveniente do depósito de géneros, à passagem pela arrecadação do material de guerra, quando demos com o seguinte trabalho: dois militares, o Mário, primeiro cabo mecânico de armas ligeiras, e o Matias, soldado básico, esperto que nem um alho, desventravam a pá e pica a rija terra, consolidada por sóis terríveis, em frente à referida arrecadação, num vértice entre aquele ponto, o quarto do capitão e o gabinete, tudo mais ou menos equidistante, enquanto o Trapinhos, de braços cruzados, comandava a operação.
A torreira do sol, e o inesperado da situação, fizeram que desconfiássemos. O Marino atirou logo, interrogativamente, qual a finalidade do buraco que provocava tanto esforço.
O Trapinhos, praticamente sem se movimentar, os ombros amarrecados, e o peito para dentro, que naquele corpo franzino mais se assemelhava a um fugitivo do Caramulo, fez um ligeiro sorrizinho, e respondeu:
- Estamos a fazer um abrigo.
Rimo-nos. O capitão, especado ao sol, falava como se padejasse a terra ao lado dos outros.
Mas a situação era estranha, porquê ali um abrigo? Aquelas praças tinham lugares reservados em abrigos periféricos, embora, recordo, durante uma flagelação a meio do dia, o Matias atirou-se para uma vala junto do depósito de géneros, praticamente no meio da localidade, e dali, bravamente, disparou uma G3 em improvável direcção que atingisse o IN.
O Marino, no entanto, não era de modas, nem se fez rogado:
- Mas então, para que é que se faz aqui um abrigo?, perguntou.
Respondeu o Trapinhos, voltando a evidenciar outro confiante sorrizinho:
- Então? é para nós. Se houver ataque, fica mais perto - disse a gozar a superior capacidade para discernir sobre como defender o coiro em caso de uma investida dos turras. Ainda não se lhe tinha esgotado o ar de Monalisa, e atirou-nos, agora ele, com uma exclamação surpreendente:
- É aquele trio!!.
Interiorizando a intenção do capitão, de se refugiar ali em vez de comandar a tropa a partir das Transmissões, um pouco mais além, o Marino caracterizou em voz alta, divertida, e imediatamente:
- Um trio de merda!.
Voltámos as costas e rimo-nos da ideia extraordinária.
Estória n.º 3 - (compacto de duas)
3.1O Virgílio Fernandes foi um Foxtrot de comportamento irregular e surpreendente, em conformidade com o nível de sobriedade que apresentava. Felizmente essas oscilações apresentam um saldo positivo, que acentuaram um camarada solidário, bem disposto, bem educado, e orgulhoso do grupo a que pertencia. No entanto, quando bebia excessivamente, tornava-se resingão e chato, inoportuno, provocador, como é norma desses estados comportamentais.
Tive com ele uma única situação dificil, que acabou por se resolver sem deixar marcas de frustração.
Mas trago o Virgílio à colação, para relatar dois episódios em que foram intervenientes, ele e o Trapinhos.
Quando pretendia beber e não tinha dinheiro, o que era frequente, o Virgílio insinuava-se, pedia que lhe oferecessem e, se não dava resultado, fazia trabalhos, "arranjava" géneros alimentares para o petisco, podia tratar de armas, o que fosse preciso.
Um dia, junto à cantina, virada para a parada e ao lado do edíficio do comando, apostou que apalparia o cú ao Trapinhos. Feita a aposta, e porque o "alvo" se encontrava sob o alpendre da secretaria, lá foi o Virgílio naquela direcção, improvisando uma dança a solo, com passos curtos para um lado e outro, até se aproximar o suficiente para lançar uma mão às nádegas que lhe valeriam a cervejinha.
Alcançado o objectivo, o Virgílio desatou numa risada em direcção ao parceiro da aposta, reclamando vitória e o prémio, enquanto à porta da cantina algum pessoal fazia comentários e ria sobre o que acabavam de ver. Nesse dia, ainda houve outra aposta de igual teor, que o Virgílio ganhou, e celebrou no meio de espalhafatosas manifestações.
3.2O outro episódio aconteceu após a chegada do Trapinhos, que estivera na Matrópole em gozo de férias.
Ainda sob o mesmo alpendre, numa ocasião em que descontraidamente ali permanecia algum pessoal, o Virgílio terá perguntado se as férias tinham corrido bem, ao que o Trapinhos correspondeu a dizer que sim, claro, e ajuntou algumas razões para a sua satisfação. Até que levou a mão ao bolso da camisa, tirou uma fotografia, e mostrou-a ao Virgílio que especava os olhos no retrato.
- Quem é? - perguntou este.
- É a minha mulher! - respondeu o Trapinhos.
Seguiu-se um silêncio que o Trapinhos interrompeu com uma pergunta:
- É boa, não é?.
Isto foi o que se comentou durante alguns dias, e a que o Virgílio juntava algumas propostas de intenção, esclarecendo sobre as virtudes fotográficas evidenciadas, enquanto o pessoal ria despregadamente com as narrativas.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 - P6118: História da CCAÇ 2679 (34): Situação geral em Novembro de 1970 (José Manuel M. Dinis)